9.9.11

José Rentes de Carvalho (Caminho pela cidade)






Caminho pela cidade com um sentimento de desconforto, pois sem ser nela totalmente um estranho, também lhe não pertenço.

Sou o passante que deambula pelo cenário da sua juventude e revê com outros olhos os lugares que a marcaram, despertando negrumes, surpreso ao dar-me conta de como foram profundas mas inúteis as dores de então, passageiras as alegrias, paralisantes aqueles sonhos em que as dimensões do mundo eram constantes e harmoniosas.

Terei de facto sido assim?

Melancólico, deixo que o passado desfile em cenas que não são de vida vivida, mas painéis desbotados num panorama de artifício.

Não me interessam as ruas, as gentes, as casas, as vibrações do dia soalheiro.

Vou ensimesmado, descobrindo que nem a experiência dos anos me ajudará a conciliar as vozes desencontradas que dentro de mim ora animam a agir, ora me censuram os actos, as palavras, os desejos.

Que me culpam por não ser capaz de duma vez para sempre sacudir os entraves da memória, me acusam de fraqueza por retornar aos lugares onde sofri com um impulso tão irreprimível como o que dizem que leva os assassinos a rever o lugar onde, ao matar, também de certo modo morrem.


- J. RENTES DE CARVALHO, La Coca, Quetzal (2011), p. 33.


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