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6.12.23

Manuel de Freitas (Becherovka)




BECHEROVKA 

 

Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar "o que fazia". 

Escrever, sobre a morte, não é
exactamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha "obra". 

Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida. 

Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou.

 
Manuel de Freitas 

[Hospedaria Camões]

 .

3.8.23

Manuel de Freitas (Melingo, 2011)




MELINGO, 2011



Não sei o que vos diga.

Vinha do outro lado do mundo
e vestia-se com rosas e arame.

Tinha a poesia no corpo.

Perante isso – graça
ou desencanto –
somos todos meros escriturários.


 Manuel de Freitas

[Arquivo de cabeceira]

 .

28.4.22

Manuel de Freitas (Há dias em que poderia)


 


Há dias em que poderia jurar que
estão tristes os olhos do meu gato,
mas não, é apenas a melancolia
ilícita que o meu devaneio lhes empresta.
Os gatos tristes, se é que os houve,
morreram talvez num Inverno fugaz e antigo.
E, no fundo, acabo por gostar mais deste.

É por desrazões semelhantes que se escreve
um poema, essa coisa singela
absoluta em frivolidade.


Manuel de Freitas

[Arquivo de cabeceira]

 .

1.3.18

Manuel de Freitas (5010509001229)





5 010509 001229



É o que se chama um "higiénico": latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia do gato.
É tímido, inseguro e - por isso mesmo -
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.

Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.

A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.


Manuel de Freitas



.

5.12.16

Manuel de Freitas (Chão antigo)





CHÃO ANTIGO



É pena que já não existam
esses lugares imundos – puros, quero eu
dizer – onde a morte entrava
sem ter de pedir licença.
Lugares onde eram por igual sinceros
o sono, o vómito ou a sombra de um abraço
(Maiakovski e Céline tinham a mesma importância
e a sorte de não serem futebolistas).

É pena que já não possamos
comemorar no chão a derrota
do corpo pela manhã. Ao lavarem
os copos, da última vez, houve duas
ou três gerações que se partiram.
Talvez eu pertencesse a uma delas – mas
isso, ao poema, importa muito pouco.

Há um lugar que escreve sobre
a ausência de todos os lugares.
Tonéis de vários tamanhos
onde inscrevi, por distracção,
o único nome verdadeiro.
Estou a falar, naturalmente,
de tabernas.
Mas talvez não seja apenas isso.


 MANUEL DE FREITAS
A flor dos terramotos
(Averno)


.

26.6.16

Manuel de Freitas (A Humanidade em Agosto)





A HUMANIDADE EM AGOSTO



Era uma tarde assim, como já sabíamos
ou devíamos, pelo menos, calcular:
insuportável o calor, duvidosa a alegria.
Mas íamos fazer compras e
era Agosto, mês de pouca gente

que viu, como nós, o autocarro
parar bruscamente.
Quatro pequenos cães, de famílias
por certo bem diferentes, atravessavam
num sereno susto o alcatrão. Desconheciam
que tudo (sim, não é apenas o tabaco)
pode matar num dia qualquer os que estão vivos.

Seguiam quase ordeiros, sem caminho.
E não sabiam. Como poderiam saber
que eram as vítimas ocasionais
de umas férias mais tranquilas
para esses mesmos que, na sua excessiva
humanidade, os abandonaram à nenhuma sorte?

E a caravana passou, rodeada de silêncio.
O mais pequeno e farrusco, o que
vinha atrás, parecia não acreditar ainda
que era este o seu destino, nem urbano
nem campestre; simplesmente intolerável.
Doía muito ver-lhe os olhos, e ser humano
como os humanos que ali se libertaram
dele, para garantir a liberdade que não têm.

Pouco tempo depois, o autocarro arrancou.
Chegaremos mais devagar à mesma morte. Mas
chegaremos. Eu sempre achei a humanidade o que
de pior havia sobre a terra. Preferia, às vezes, não ter razão.


Manuel de Freitas

[Arquivo de cabeceira]

.

1.4.16

Manuel de Freitas (Não sei o que vos diga)





Não sei o que vos diga.
Vinha do outro lado do mundo
e vestia-se com rosas e arame.

Tinha a poesia no corpo.

Perante isso – graça
ou desencanto –
somos todos meros escriturários.


Manuel de Freitas

.

16.11.15

Manuel de Freitas (Sombras)





SOMBRAS



Iluminar o mundo - com palavras,
velas, algum vinho.
Dito assim, quase parece simples.

Mas chovia muito e resguardou-se
cada um na sua tão pequena chama
ou numa cómoda e fria indiferença.

Talvez fosse de esperar. As velas,
porém, continuaram a arder.
Enquanto cinco rostos se reflectiam na parede
e a poesia era, de novo, a única luz.


Manuel de Freitas

[Arquivo de cabeceira]

.

16.4.15

Manuel de Freitas (Weinen)





WEINEN, KLA GEN, SOR GEN, ZA GEN (BWV 12)



A carne é triste, mas eu leio pouco,
menos ainda do que o meu gato,
que talvez desculpe um dia
o indemonstrável possessivo
que escrevi sem muita convicção.

Pode-se fazer tanta coisa, à noite.
Ouvir por exemplo Bach
— o pai — tendo por único
cuidado uma atenção distraída
ao gelo que estala no copo
de vidro indonésio. Sim,
não me parece que eu seja,
para já, «politicamente correcto».

— Ou experimentar o amor,
de novo e sempre o amor,
com frias e esgotadas lágrimas
de lume. E, se o amor não
vem (acontece), posso ir dizê-lo
a ninguém, à porta de bares sombrios,
sem esperar sequer um poema.

Porque nem tudo se escreve,
percebe acordando o gato.
Possa ele também não saber,
neste Inverno, que a carne
é mesmo uma coisa muito triste.


Manuel de Freitas

[Canal de poesia]

.

15.12.14

Manuel de Freitas (III-Grande Hotel de Paris)





III (GRANDE HOTEL DE PARIS)



A morte, claro. Existem porém
dias grandes, irredutíveis a versos,
em que a indecisão da luz
nos açoita de felicidade.

São dias raros, futuras
imagens do nada, o suficiente
para que a palavra amor substitua
o primeiro cigarro da manhã.

Chegámos tarde. O quarto 203
trazia-me de novo o teu corpo.
E até a música dos sinos
vinha deitar-se connosco.


Manuel de Freitas

[As folhas ardem]

.

17.6.14

Manuel de Freitas (Sub rosa)





SUB ROSA



Não somos os últimos, pois se
há coisa que o mundo sempre fez bem
foi acabar. De novo e sempre: acabar.

Mas já não trabalhamos com o ouro
e temos um certo pudor tardio
em falar de deus, do amor ou até do corpo.

As metáforas arrefecem, talvez contrariadas.
São casas devolutas, mães risonhas
ou sombrias cujo grito deixámos de escutar.

Do lixo, porém, temos um vasto
e inútil conhecimento. Possa
ele servir de rosa triste aos
que não cantam sequer, por delicadeza.

Manuel de Freitas

[Silva]


.

7.2.14

Manuel de Freitas (Pressa de viver)

 




PRESSA DE VIVER



Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
─ e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI - que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas’
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-Io
─ «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos é
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
─ quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
─ e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.


Manuel de Freitas

[Canal de poesia]

.

1.8.13

Manuel de Freitas (Antes do último comboio)





ANTES DO ÚLTIMO COMBOIO



Às vezes, é tão bom esquecer a literatura
- e, acima de tudo ou de nada, a poesia,
com os seus devaneios de donzela perra,
a latir mazelas, agruras e evidências.


Passeámos juntos pelo arraial
de Oeiras, sob o rumor contínuo
de comboios e sardinhas (menos pontuais
mas boas). Luzes, carrosséis e bares
pediam-me a demora que não pude ter,
enquanto os gatos, soberanos, atravessavam
devagar a noite. Falávamos de nada, calmamente.


Às vezes - ou melhor: sempre - sabe bem
deixar para outro dia a literatura, pensar que
os poetas não passam de estátuas inúteis num jardim
concebido por bestas que nem sequer os leram.


É inegável que um churro ou uma imperial
são muito mais necessários do que qualquer soneto.
De uma maneira ou de outra, as luzes vão em breve
apagar-se, indiferentes ao riso que nos juntou
e que veio cair, por azar, no chão deste poema.


Manuel de Freitas


[O último tango]

.

22.2.13

Manuel de Freitas (Haiku do Beco São Miguel)





HAIKU DO BECO SÃO MIGUEL



As palavras são para as ocasiões,
o luto é quotidiano.

Não passou por aqui o amor.


Manuel de Freitas



[Donne-moi ma chance]

.

8.6.12

Manuel de Freitas (Inventário plebeu)






INVENTÁRIO PLEBEU




A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.


Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois – e aquém – de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)


Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
ou o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.


O sexto – não, não me apetece falar aqui do sexto.


Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).


Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.



Manuel de Freitas



[As folhas ardem]


.

4.11.11

Manuel de Freitas (Stabat mater)






STABAT MATER




Benilde, ao balcão, reza de pé
a novena do Menino Jesus
de Praga. Alguém, que nunca
mais vi, tinha a mesma devoção
– e um mapa de heroína
a servir-lhe de braços.


Custa-me interromper a
novena para pedir, claro,
mais uma cerveja.
Tão diferentes modos de rezar,
debaixo do relógio que há vários anos
nos diz que ainda não são quatro.


Prevêem, na rádio, uma descida
da temperatura. É tudo o que
me importa saber.
Enquanto Benilde, ao balcão,
continua a rezar ao Menino Deus.


Fez-se silêncio. Tem
uma garrafa vazia ao lado.
Acendo um cigarro
em memória de Pergolesi
e escrevo, sem querer,
o primeiro poema do ano.



Manuel de Freitas


[Hospedaria Camões]


.

25.6.11

Manuel de Freitas (Praça das Flores n.º 5)





PRAÇA DAS FLORES N.º 5




Tarde chuvosa de Verão a redimir
o luminoso e opressivo cansaço de Lisboa.
Abrigo-me numa taberna agora sombria
devido ao cinzento súbito do céu.

Aqui o tempo é uma ferida menor, vejo-o
pelas tardes sempre iguais destes homens
a jogar dominó, a zaragatear por vezes
acerca de importantes questões,
metafísicas inerentes a este jogo.

Que calma, esta do vencido
pagando cervejas aos vencedores,
o vinho tépido servido por alguém
que sem pressas nem angústias
envelhece por detrás do balcão.

É uma calma suave e perturbante, talvez
como a chuva lá fora, e encanta-me
esta singeleza profunda, a sedução de
exauridos olhares que a vinho sobrevivem.

Dir-se-ia ter nos meus ombros
toda a tristeza do mundo, ainda que
o mundo pouco valha ao pé desta taberna
na tarde molhada da cidade. E contudo
sinto-me estranho como em qualquer lugar,
espião não da casa do amor mas na da
morte quotidianamente vivida.

A melancolia pode às vezes ser isto,
um modo de sobreviver ao vazio, o comovido
jeito de pôr a mão sobre o mármore da mesa
e pedir outro martini, fresco
se faz favor.



Manuel de Freitas

.

15.5.11

Manuel de Freitas (Mário)






MÁRIO





"O tempo que aos outros foge
cai sobre mim feito ontem",
como dizia o outro
que não consentiu em sê-lo.
E nestes tempos de rarefacção
e escárnio uma glosa pode às vezes
dar um jeito danado — para
aqueles que ficam, claro.


Ah, Mário, quantos eléctricos
eu apanhei ou perdi
em frente à lápide sóbria
que celebra não sei se a ti
se ao abandono corriqueiro
de um escritório de aluguer...
Coisas da vida, entenda-se,
os percursos e os discursos
que confluem no trânsito homicida
de um dia qualquer, como os outros.


Enquanto Lisboa se resigna
a ser esta mistura podre
de melancolia e paz
que para mim está bem
e vai dando
para a curta viagem dos ossos.


Nos Cafés também "espero a vida
que nunca vem ter comigo",
a putéfia. Nada mudou. Nada,
Mário. Só que nos "Cafés", agora,
pedem-se empréstimos para comprar
carro e casa ou manuseiam-se discos
por sinal merdosos, propícios
a uma época que voa ao rés da Bolsa.
A vida, claro, continua sem aparecer por aqui.


Mas lepidópteros ainda há,
uivando de alegria alegre — e restos
de nada nas coisas, a chamarem-nos de tão longe
para a proximidade do fim.


Era só para te dizer isto.


MANUEL DE FREITAS
Game over
(2002)





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26.3.11

Manuel de Freitas (Tema sem variações)






TEMA SEM VARIAÇÕES




Sempre soubeste: a morte
Sempre sentiste: a morte.
As tabernas, fechadas, eram
apenas uma espécie de refrão.


Mas isso, terás de convir,
não desculpa o facto
de andares há vinte anos
a escrever o mesmo.


Faz como as tabernas: cala-te.



MANUEL DE FREITAS
A Nova Poesia Portuguesa
(2010)


[A natureza do mal]

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