29.6.21

Antonia Pozzi (A vida sonhada)




LA VITA SOGNATA


Chi mi parla non sa
che io ho vissuto un'altra vita –
come chi dica
una fiaba
o una parabola santa.
Perché tu eri
la purità mia,
tu cui un'onda bianca
di tristezza cadeva sul volto
se ti chiamavo con labbra impure,
tu cui lacrime dolci
correvano nel profondo degli occhi
se guardavamo in alto –
e così ti parevo più bella.
O velo
tu – della mia giovinezza,
mia veste chiara,
verità svanita –
o nodo
lucente – di tutta una vita
che fu sognata – forse –
oh, per averti sognata,
mia vita cara,
benedico i giorni che restano –
il ramo morto di tutti i giorni che restano,
che servono
per piangere te.
 

Antonia Pozzi

 

Quem fala comigo não sabe
que eu vivi outra vida
- como quem diz
uma fábula ou
uma parábola sagrada.
Porque eras tu
a minha inocência,
tu, que uma onda branca
de tristeza cobria,
se eu te chamava com lábios impuros;
tu, que deixavas correr lágrimas doces
do fundo dos olhos
postos no alto
- e mais bela eu te aparecia.
Ó véu
tu – da minha mocidade,
minha veste clara,
verdade sumida –
ou laço de luz
- de uma vida inteira
que foi sonhada acaso -
oh, por te haver sonhado,
vida minha,
bendigo os dias que me restam -
o morto ramo de todos os dias que restam,
que servem só para te chorar.

(Trad. A.M.)

.


27.6.21

Pablo García Casado (Garner, NC)




GARNER, NC

 

pongamos que él tiene 30 y ella 17
música de tom jones los dos bailando muy juntos
en el centro de la pista pongamos que se deciden 

que ella se entrega en el servicio de caballeros 

que pasan tres días y tres noches encerrados
en el hollyday inn baño piscina vistas a la carretera
que él es un maníaco
que ella hace cosas delante de una handycam sony de 8 mm.
cosas que al principio duelen y luego duelen más 

que despierta en la cuneta de la 95
aturdida por el efecto de los somníferos casi desnuda
como los hijos de la mar 

y que espera el autobús en algún punto del mapa
después de caminar toda la noche
con los zapatos blancos en la mano
fogueada por los faros de todos los camioneros

 
Pablo García Casado

 

 

ponhamos que ele tem 30 e ela 17
música de tom jones os dois a dançar muito juntinhos
no meio da pista ponhamos que se decidem

que ela se entrega no wc cavalheiros

que passam três dias e três noites encerrados
no hollyday inn banheiro piscina vistas para a estrada
que ele é um maníaco
que ela faz coisas diante de uma handycam sony 8mm.
coisas que a princípio doem e depois doem mais

que acorda na berma da 95
aturdida pelo efeito dos soníferos
quase desnuda
como os filhos do mar

e que espera o autocarro nalgum ponto do mapa
depois de caminhar toda a noite
com os sapatos brancos na mão
batida pelos faróis de todos os camionistas


(Trad. A.M.)

.

26.6.21

Silvina Ocampo (As caras)




LAS CARAS

 

Las caras de los hombres que en mi vida he encontrado
me persiguen y viven adentro de mi espíritu.
Las caras de los hombres que he encontrado en mi vida
me miran y me abruman.
Podría dibujarlas pero nunca me atrevo.
Algunas tienen cuerpos y llevan en las manos
anillos y collares, flores de terciopelo,
algunas son mansiones, son jardines, son ríos,
algunas son un viaje, una playa, un desierto.
Algunas son de mármol, algunas son fenicias,
algunas son romanas, griegas y perniciosas
con los rasgos borrados.
Algunas tienen penas, muchas penas algunas,
y largas cabelleras que lloran en el viento.
Algunas son horribles, casi siempre me advierten
que un peligro me acecha.
Algunas tienen horas marcadas en los ojos
y son como clepsidras,
me despiertan de noche.
Algunas me quisieron
y movieron los labios para decir mi nombre.
Algunas no entendieron nunca lo que les dije
ni supieron por qué las miré largamente.
Algunas son anónimas
llevan frutas y fuentes, manos de terracota,
como las estaciones.
Algunas se arrodillan, buscan algo en la tierra.
Algunas como pájaros siempre estiran el cuello.
Algunas se inclinaron
y escribieron sus nombres sobre mi corazón
sin que yo lo advirtiera.
Algunas fueron mías, algunas se alejaron
y perdieron su sexo, su virtud y su candor;
fueron como la imagen
del infierno en el mundo
que tratamos, en vano, de olvidar.
Algunas fueron deidades
que no olvidaré nunca.

Silvina Ocampo

[Life vest under your seat]

 

 

As caras dos homens que na
minha vida encontrei
perseguem-me e vivem dentro de mim.
As caras dos homens que encontrei pela vida
afligem-me, a olhar para mim.
Podia-as desenhar, mas nunca me atrevo.
Algumas têm corpo e usam nas mãos
anéis e colares, flores de veludo,
algumas são mansões, são rios, jardins,
algumas uma viagem, um deserto, uma praia.
Algumas são de mármore, algumas fenícias,
algumas são romanas, gregas e perniciosas,
de traços apagados.
Algumas têm penas, muitas penas algumas,
e longas cabeleiras que choram com o vento.
Algumas são horríveis, e avisam-me sempre
que um perigo me espreita.
Algumas têm nos olhos hora marcada
e são como clepsidras,
acordam-me de noite.
Algumas amaram-me
e mexeram os lábios para dizer meu nome.
Algumas não entenderam aquilo que eu lhes disse
nem souberam porque eu as olhei longamente.
Algumas são anónimas
andam com frutas e fontes e mãos de terracota
como as estações.
Algumas ajoelham, buscam algo no chão,
algumas como pássaros esticam sempre o pescoço.
Algumas inclinaram-se
e escreveram os nomes no meu coração,
sem que eu desse conta.
Algumas foram minhas, algumas se afastaram
e perderam o sexo, a virtude, a candura;
foram como que a imagem
do inferno neste mundo
que cuidamos, em vão, de olvidar.
Algumas foram deidades
e eu nunca hei-de esquecê-las.


(Trad. A.M.)

.

24.6.21

José Carlos Ary dos Santos (O objecto)




O OBJETO 

 

Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão. 

Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão.
Mas se forem de vidraça
e logo foram janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono. 

E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa. 

E se o prato for de merda
e o literato de esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão. 

   Assim se chamam as coisas
   pelos nomes que elas são.

 

José Carlos Ary dos  Santos

 .


22.6.21

José Ángel Cilleruelo (Hölderlin)




HÖLDERLIN

 

Que haya un puente
de piedra. Que la corriente
lo abrace por la cintura,
cariñosa, y después sin decir nada
se vaya y yo
me quede. Y por su arena
transiten carruajes.
Que entren
con fardos voluminosos.
Que salgan
con los sacos en el adral
y el paso muy ligero.

Y me tiemble la mano
con la que escribo cartas.

Que el sendero
se adentre por la umbría,
y la arboleda
lo oculte de inmediato
y parezca tiniebla
en lugar de aquel bosque.
Que la ventana donde lo contemplo
dé a un afuera y no dé a un adentro.

 José Ángel Cilleruelo 

 

Que haja uma ponte
de pedra. Que a corrente
a abrace, carinhosa
pela cinta, e depois se retire
sem dizer nada
e que eu fique. E pelo areal
circulem carruagens.
Que entrem
com fardos volumosos
e saiam com os sacos entre as grades,
em marcha apressada.

E que me trema a mão
com que escrevo as cartas.

Que o caminho
entre pela sombra
e o arvoredo o oculte de imediato
e pareça treva
em vez de tal bosque.
Que a janela de onde o vejo
dê para fora, não para dentro.

(Trad. A.M.)

 .


21.6.21

Pablo Albornoz (Entre as sepulturas)




entre las tumbas
brillan en ambos mundos
las luciérnagas


Pablo Albornoz




entre as sepulturas
brilham em dois mundos
os pirilampos

(Trad. A.M.)

.

19.6.21

Fernando Assis Pacheco (Bom rei Afonso)




BOM REI AFONSO

  

Lavava-se só de raro em raro
e só como o gato mas era um tal
furor entre as damas e suas aias
que se conta de uma dona Ilduara
Veilaz a filha do crego manco
tê-lo chamado um fim de tarde
no meio de forte trovoada
a Rendufe onde então demorava
para a comer (e recomer é claro)
nas três posições principais
o que ele fez com brio e recato
e isso atira para uma conta calada
mesmo em termos de História Pátria
e sem da Igreja o beneplácito
gritando ela ao fim de cada round
senhor senhor mais do que ao mel
vós a erva-babosa me cheirais

ah e tudo isto para fortalecer a alma!


Fernando Assis Pacheco

..

17.6.21

Oscar Hahn (Conselho de velho)




CONSEJO DE ANCIANOS

 

Cuídate Adán cuando salgas al mundo 
en busca de la costilla perdida  

Podrías encontrarla de pronto 
podría no caber en tu pecho  

Y podría atravesarte el corazón 
como un cuchillo de hueso 


Óscar Hahn
 

 

Cuidado Adão quando saíres para o mundo
em busca da costela perdida 

Podias encontrá-la de repente
podia não te caber dentro do peito

E podia trespassar-te o coração 
como um punhal de osso

 

(Trad. A.M.)

 .

16.6.21

José María Valverde (Nos anos da fome)




En los años del hambre -como dicen
los que no la han saciado todavía-
estudiantillo imberbe, acompañé
algún tiempo, en mañanas de domingo,
a los visitadores de los pobres,
sencillos caballeros, casi todos
profesores modestos y abstraídos,
de raído gabán y claras gafas.
Entre el barro o el vaho, avergonzados
de dar un duro en vales para pan,
tomados por algunos como agentes
de la Embajada nazi, comprobaban
lo mismo, año tras año, consternados:
la familia entre latas, con el cerdo,
padres y niños, todos sifilíticos,
menos la mayorcita, que era de antes
que el marido… “los malos compañeros,
¿sabe?” -casi en defensa, la mujer-
“lo que le pasa a un hombre”; y en la esquina,
un muchacho tullido -“y menos mal”,
según la madre, “que al fundarse el chico
yo estaba muy robusta”-; éste pedía
libros, pero ¿cuál darle a un pobre inmóvil?
(yo le llevé María Chapdelaine);
y, como única baja, la gallega
muerta de hambre, dejando dos hijitas,
pero con gran entierro de un Seguro
que, en nuestras mismas huellas, les cobraba
más de nuestra limosna, porque el pobre
quiere morir en grande, por el miedo
de seguir siendo pobre al otro lado…
Luego, en la fría sala parroquial,
decía el presidente, en grave rito: .
“¿Se aprueba el acta ?” y todos, abrumados,
bajaban la cabeza: “Sí, se aprueba”.


José María Valverde

 

 

Nos anos da fome – como dizem
os que ainda a não saciaram –
estudantito imberbe, acompanhei
algum tempo, aos domingos de manhã,
os visitadores dos pobres,
cavalheiros simples, quase todos
professores modestos e absortos,
de capote coçado e óculos claros.
No meio da lama ou do bafio, envergonhados
de dar um duro em vales para pão,
tomados às vezes por agentes
da embaixada nazi, constatavam
o mesmo, consternados, ano após ano:
a família no meio de latas, com o porco,
pais e filhos, todos sifilíticos.
menos a maiorzinha, que era de antes
do marido… ‘más companhias, sabe?’
- a mulher, à defesa -
‘o que acontece a um homem’; e na esquina,
um rapaz paralítico – ‘e menos mal’,
dizia a mãe, ‘que ao tempo da gravidez
eu estava robusta’; ele pedia livros,
mas que livro dar a um pobre paralítico?
(eu levei-lhe a Marie Chandelaine);
e como baixa única, a galega
morta de fome, deixando duas filhitas,
mas com um grande enterro de estadão,
de custo superior à nossa esmola, pois o pobre
quer morrer em grande, com medo de no outro mundo
continuar a ser pobre…
Depois, na fria sala da sacristia,
o presidente dizia, grave, na fórmula ritual:
-‘Aprova-se a acta?’ e todos, esmagados,
baixavam a cabeça: ‘Sim, aprovada’.


(Trad. A.M.)


>>  A media voz (24 p) /  Wikipedia

.


14.6.21

Daniel Jonas (Três rosas)




Três rosas choram, brancas e tombadas.
No mármore em murmúrio nada se ouve
E tudo o que é é nada do que houve…
Oblíqua cai a chuva nas lombadas…
Na biblioteca parda tudo tomba:
As rosas, as velhinhas, hirtos círios.
E agora tudo chora, grutas, lírios,
E as gárgulas do choro são a tromba…
É nada o que nos move, a paz, a guerra…
Tanto saber errado e tanto crânio!...
O príncipe é que estava certo, o dânio!
E as rosas murcharão, quem as enterra?
Mas quase me esquecia ao que vinha:
Passar-te a mão pela pele tão lisinha…


Daniel Jonas

[Acontecimentos]

 .

12.6.21

Cristina Peri Rossi (Amar)




AMAR

  

Amar é traduzir
- seja, trair.

Saudosos para sempre
do paraíso, antes de Babel.


Cristina Peri Rossi

(Trad. A.M.)

.

11.6.21

Oliverio Girondo (Milonga)





MILONGA 



Sobre las mesas, botellas decapitadas de “champagne” con corbatas blancas de payaso, 
baldes de níquel que trasuntan enflaquecidos brazos y espaldas de “cocottes”. 

El bandoneón canta con esperezos de gusano baboso, 
contradice el pelo rojo de la alfombra, imanta los pezones, los pubis 
y la punta de los zapatos. 

Machos que se quiebran en un corte ritual, la cabeza hundida entre los hombros, 
la jeta hinchada de palabras soeces. 

Hembras con las ancas nerviosas, un poquitito de espuma en las axilas, 
y los ojos demasiado aceitados. 

De pronto se oye un fracaso de cristales. 
Las mesas dan un corcovo y pegan cuatro patadas en el aire. 

Un enorme espejo se derrumba con las columnas y la gente que tenía dentro; 
mientras entre un oleaje de brazos y de espaldas estallan las trompadas, 
como una rueda de cohetes de bengala. 

Junto con el vigilante, entra la aurora vestida de violeta. 


Oliverio Girondo 





Sobre as mesas, garrafas decapitadas de champanhe com gravatas brancas de palhaço, 
baldes de níquel que trasladam braços escanzelados e costas de ‘cocottes’. 

O bandoneão canta a espreguiçar-se, como um bicho baboso, 
contradiz o pelo encarnado dos tapetes, imaniza os mamilos, 
o púbis e a ponta dos sapatos. 

Machos a partir-se num corte ritual, de cabeça afundada entre os ombros, 
a fuça inchada de palavras soezes. 

Fêmeas de ancas nervosas, um pouquitito de espuma nas axilas e de olhos oleados de mais. 

Ouve-se de repente um fracasso de vidros. 
As mesas dão um pinote, atiram quatro coices no ar. 

Um espelho enorme desaba com as colunas, mais as pessoas que tinha dentro. A par do guarda, entra a aurora vestida de violeta

 (Trad. A.M.)

.

9.6.21

Vasco Graça Moura (Ofício de morrer)


OFÍCIO DE MORRER

 

eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas. 

uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura

encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde. 

vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos 

no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo. 

ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, mesmo sem buzinas
excessivas. encheu um copo de água. e esperou. 

quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes; 

que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição

demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros e nenhum 

remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras. 

foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou. 

não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica. 

não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo. 

não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades 

e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.


Vasco Graça Moura

 [Poesia &limitada]

 .

7.6.21

Daniel Cotta (Eu faço testamento todas as noites)




Yo dicto testamento cada noche:
dispongo mis zapatos, mi camisa,
la piel que llevo puesta
para el cuerpo que ocupe mañana mi huella en el colchón.
Le lego mis pupilas, mi garganta,
mis manos, mis heridas,
mis miedos, mis deberes por cumplir…
Y sobre toda obligación, le lego
las arcas de cariño acumulado
por quien me eligió ayer
como heredero,
que a su vez lo heredó de tantos cuerpos
y cuerpos que murieron cada noche
haciendo testamento de su amor.
Que mi heredero de mañana
no muera sin haber incrementado
en algo el patrimonio familiar.

Daniel Cotta

[Jose Antonio F.S.]
 

 

Eu faço testamento todas as noites,
disponho dos sapatos, da camisa,
da pele que uso,
a favor do corpo que amanhã ocupe o meu lugar no colchão.
Lego-lhe as pupilas, a garganta,
as mãos, as feridas, os medos,
os meus deveres por cumprir...
E lego-lhe ainda, livre de encargos,
as arcas de carinho acumulado
por quem antes me escolheu 
a mim como herdeiro,
e que o herdou por seu turno de tantos corpos
e corpos que morreram todas as noites
fazendo testamento de seu amor.
Que meu herdeiro de amanhã 
não morra sem acrescentar
em algo o património familiar.

(Trad. A.M.)

 .

6.6.21

Nicanor Parra (Agnus Dei)



AGNUS DEI

 

Horizonte de tierra
astros de tierra
Lágrimas y sollozos reprimidos
Boca que escupe tierra
dientes blandos
Cuerpo que no es más que un saco de tierra
Tierra con tierra - tierra con lombrices.
Alma inmortal - espíritu de tierra.

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Dime cuántas manzanas hay en el paraíso terrenal.
Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Hazme el favor de decirme la hora. 

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Dame tu lana para hacerme un sweater. 

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Déjanos fornicar tranquilamente:
No te inmiscuyas en ese momento sagrado.


Nicanor Parra

 

Horizonte de terra
astros de terra
Lágrimas e soluços reprimidos
Boca que cospe terra
dentes brandos
Corpo que é apenas um saco de terra
Terra com terra – terra com minhocas.
Alma imortal – espírito de terra. 

Cordeiro de deus que tiras os pecados do mundo
Diz-me quantas maçãs há no paraíso terreal.
Cordeiro de deus que tiras os pecados do mundo
Diz-me por favor que horas são. 

Cordeiro de deus que tiras os pecados do mundo
Dá-me a tua lã para fazer uma camisola.

Cordeiro de deus que tiras os pecados do mundo
Deixa-nos fornicar tranquilamente:
Não te imiscuas nesse momento sagrado.
 

(Trad. A.M.)

_________________

 
> Outra versão:  Insonia (Henrique Fialho)


4.6.21

Armando Silva Carvalho (O corvo)



O CORVO

  

O céu desta cidade não me vence.
Ao ver a lua cheia num rasgão de nuvens
esqueço-me das casas da minha casa,
das ruas da minha rua, das vidas da minha vida.
Há uma noite acesa no meu mundo. 

E tu deitas na mesa.
Primeiro as mãos que não querem esperar
pelo corpo à beira do colapso
que julgo financeiro
em matéria de sexos pois são muitos e novos
os que tu disfarças. 

Depois vem o aparelho da fala com a tua metafísica
varrida por vassouras de metal pungente
que correm pelo teu rosto e tu tão bem disfarças
com a faca do riso entreaberta. 

Por fim o teu cabelo. É belo olhá-lo.
E belo vê-lo pousar como um corvo
na toalha branca do jantar.
E ver por fim a natureza que te ocupa
o órgão do prazer,
a música de Bach ou o ramo de luz
que cresce dos teus olhos. 

Não vejo o teu coração, deixei de ver a lua.
E o céu desta cidade não me vence.


Armando Silva Carvalho

 .


2.6.21

Miquel Martí i Pol (Paisagem incendida)




PAISAGEM INCENDIDA

 

Corta o ar de vidro o diamante
do teu olhar.
                              Tudo é breve
por trás da cortina que me separa
da tarde agonizando no meio de um grande
silêncio.
               Quando voltarmos a ver-nos, toda
a quietude será paisagem incendida,
reduto de desígnios, de esperanças.

 

Miquel Martí i Pol

(Trad. A.M./ sobre versão cast. Joan B. Fort i Olivella)


.

1.6.21

Manuel Rico (A primeira janela)



LA PRIMERA VENTANA

 

La ventana que ya no es. La muerta
ventana que dejó, temblorosas,
imágenes aún vivas contra el tiempo y la arena. 

La ventana de las casas en que he vivido,
mas ante todo
la ventana de entonces, la que daba
a un campo sin ciudad y vertederos,
a las calles huidizas de los huidizos, al frío vertical
y al calor imprevisto y a la niebla. 

La ventana abierta a la avenida
y a los escaparates, al blanco y negro frágil
de los sueños vacíos.
La ventana
tras la que crecieron tus ojos, creció el mundo
y el domingo.
La ventana.


Manuel Rico


[Zenda]

 

 

Janela, que já não é. A morta
janela que deixou, tremidas,
imagens vivas ainda contra o tempo e a areia.

A janela das casas em que vivi,
mas sobretudo
a janela de então, que dava
para um campo sem casas e aterros,
para as ruas esquivas dos esquivos,
para o frio vertical e calor imprevisto
e névoa.

A janela aberta para a avenida
as vitrinas, o branco e negro frágil
dos sonhos vazios.
A janela onde cresceram teus olhos,
mais o mundo
e o domingo.
A janela.


(Trad. A.M.)

.