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26.11.24

Miguel Martins (Naquele dia choveu ao contrário)




(2)

Naquele dia choveu ao contrário
a chuva fina e o seu silvo subiam do chão

e eu caindo da janela
sem um raio de sol que me amparasse.


MIGUEL MARTINS
Seis poemas para uma morte
(1995)

.

9.6.24

Miguel Martins (Gosto de pessoas que aceleram)




Gosto de pessoas que aceleram
ante a inevitabilidade do precipício,
roubando assim alguns segundos
ao indecente gozo de Deus.

 

Miguel Martins

[Blog 1.º esquerdo]

.

 

5.2.24

Miguel Martins (Nem umas palavras)




(4)                                       

Nem umas palavras de despedida
nem “adeus”
Será que depois nos encontramos
na terra linda onde são as coisas que não são
sem medo do fim?
Já moras, Pai, com o teu Cristo
o Cristo que nos salvou a todos
por termos alguém como tu.
Nunca te disse bem quanto te amava
como te amo muito dentro de mim
na terra linda onde são as coisas que não são
com tanto medo de as perder.
Estar a fazer a barba, cair
e partir para o outro lado
sem dizer tudo o que é preciso.
Ou como tu ficar assim à espera
suspenso de nada
à porta de Deus como um pedinte
pedinte de Deus
que só nos pediste que fôssemos melhores
e talvez por isso nos dás ainda mais uns minutos
da tua eternidade.
Vai agora, parte por favor
vai viver com as estrelas e com a alma das flores.
Sei que todos os dias continuarás a madrugar
para colher os odores mais puros.
Já não são precisos sacrifícios
aí é tudo dado num natal perpétuo e permanente.
Até nós te nos vamos dar
como tu te nos deste, como te entregaste cada dia
de manhã à noite

a Mãe
a Paula
o Ricardo
e eu
(por outra ordem espero que não esta
que eu não aguento mais)
vamos voltar a tocar-te o cabelo
o cabelo mais lindo que conheço
e a beijar-te
(como é possível que beijos tão a medo
como os teus quisessem sempre dizer tanto?).

E olha que se eu aí chegar
a essa terra que não mereço
é mesmo só por ti
é para te ver e ficar espantado
como só nos espantamos com os anjos.
Adeus Pai
tem calma.
Eu pensarei em ti todos os dias.

MIGUEL MARTINS
Seis poemas para uma morte
(1995)

 .

22.2.22

Miguel Martins (Provavelmente)




Provavelmente, a próxima vez que ouvires falar de mim         
será quando te disserem que morri
e que morri por minhas próprias mãos
(isso acontece).

Isso acontece do outro lado da ternura,
onde ela é demasiada e coisa rara,
vermelha e branca, ou seja, cor-de-rosa
quase transparente.

São coisas explicáveis e que não carecem de explicação
(já não),
como os incêndios, a fadiga extrema
ou o cheiro agreste da benzina.

São coisas da natureza dos comboios que passam
a alta velocidade
sem se importarem com os ratos e as flores
que nos carris fazem a sua lida.

É a morte,
uma coisa que tudo simplifica.

Miguel Martins

[Canal de poesia]

 .

21.3.18

Miguel Martins (Quem acha)





Quem acha que a vida é para levar a sério
deve andar convencido de que a morte é a
brincar.


Miguel Martins

.

17.12.16

Miguel Martins (Que importa o que não temos?)





(1)

Que importa o que não temos
quando a vida leva tudo o que nos dá

e a morte restitui-nos ao silêncio?



MIGUEL MARTINS
Seis poemas para uma morte
(1995)


.

10.7.16

Miguel Martins (Agora)






Agora, levantava-me...
Lá fora, outra cidade,
inusitada e mansa,
um útero de néon.


Agora, era para sempre
e sem monotonia:
um fogo-de-artifício,
a cona-abelha-mestra.


Agora, era de tarde,
toda lavanda e mel,
ambos em demasia,
exacta demasia.


Agora, tinha sido
um amanhã canoro,
memória antecipada,
um cinzel expectante.


E depois era agora:
o medo de não ser,
o medo de não ter
teu coração no bolso.


Miguel Martins



[Miss Marble]

.

16.4.16

Miguel Martins (Há poetas assim)





Há poetas assim,
uns gramas de aletria, fina e doce,
traficados como se fossem cocaína pura.
Alimento energético, é certo,
adequado ao passo de galope
com que esperam chegar a algum lado
e, ao mesmo tempo, agradável ao olfacto
de quem nunca suou, nem sequer a foder.

Massa e açúcar, como disse, muito,
mas também o leitinho da infância,
um toque exótico a canela do Ceilão
e o ingrediente secreto,
que pode ser qualquer coisa
e dizem as más línguas que é apenas
uma irreprimível vontade de parecer interessante.

Sim, há poemas que só se assemelham
ao remate perfeito de uma consoada vulgar,
antes de cada um regressar a casa,
maldizer a família e dar início
à gestação de umas saudades nobres,
que aguardarão um ano pela matança.

Melhor dizendo, parecem-se com tudo
menos com poesia, essa grainha
de uva alojada na cárie de um molar,
que há que suportar só com morte interior,
porque essas coisas acontecem sempre
quando todos os dentistas se mascaram de renas
e vão passar uns dias à puta que os pariu.



Miguel Martins

[Hospedaria Camões]

.

26.11.15

Miguel Martins (Para o meu pai)





                                       (Para o meu pai)


Muito poucos foram os dias cuja acidez não tragaste do princípio ao fim,
vinho branco retintado pela morte dos teus sonhos, um a um,
e uma bola de fogo a crescer-te no estômago, uma inteireza brutal,
virada do avesso, como se uma queda tão lenta, tão evidentemente
queda, tão claramente desesperada do futuro, pudesse ser exemplo
para quem nem sequer ouve os tiros e as fábricas de fabricar cadáveres,
ufanos da sua própria falta de desejo. Eu sei, não o duvides, António:
não podias ter vivido de outro modo e, mesmo assim, a vida ficará,
para sempre, a dever-te a maior parte dos teus anos, talvez todos,
menos algumas horas de olhos ancorados entre Jersey e Granville
(onde nunca foste), menos alguns passeios entre a mística flora
intestinal do mundo, menos algumas tardes entre as coxas ardentes
de uma qualquer beirã, cujo nome recordas, e a quem foi dado o dom
de ser mais natural que a pureza dos padres. Apenas por isso escrevo,
agora, este poema e, se quiser pensar, o que não quero, talvez conclua
que já só por ti sujo os dedos de papel: é para tentar pagar-te um pouco
dessa dívida, para imaginar-te a sorrir de olhos fechados,
como quando à memória te acudia o nome de uma gueixa que leras
entre lençóis frios, no tempo em que ainda tinhas fé na madrugada.



Miguel Martins

[O único verdadeiro deus vivo]

.

13.5.15

Miguel Martins (Uma caixa de cimento fresco)





Uma caixa de cimento fresco. Deita-o
lá dentro. Mete-te na mota, arranca, não
penses mais nisso. A sul, há mulheres
cujo futuro é um avião que não deixa
traços no céu. A norte, se preferires,
... há-as engarrafadas, em decilitragens
as mais diversas. Com os homens
é a mesma coisa, dois dedos de conversa
e uns quantos cubos de gelo. Meia
hora chega para ir repondo o stock
de episódios com que fingir que estamos
vivos. Isso deve bastar-te, excepto
se te achares mais do que os outros
e Deus te livre de uma coisa dessas.
É isso: aprende a metafísica das
t-shirts brancas, das curvas apertadas,
da velocidade calma. O resto é
conversa de poetas, filósofos, historia-
dores, que fumam mais do que vêem
e lêem mais do que assobiam ao sair
à rua. O resto é uma perda de tempo
e não eras tu o tal que tanto nos
maçava com a iminência da
morte, com a falência da Sociedade
por quotas, com a genealogia
dos suínos? Aproveita agora esta
oportunidade de não ser nada
contigo; juro-te que ninguém
te vai levar a mal; envia, apenas,
um postal de Tânger e um contacto,
para o caso de o Emanuel ou a
Angelina quererem ir de férias e
precisarem de um sítio onde ficar.
Não é pedir muito em troca da
tua liberdade. Vá! Uma caixa de
cimento fresco. Deita-o lá dentro.
Sabes do que estou a falar. Ver-
melho escuro. Isso. O coração.


Miguel Martins

.

29.12.14

Miguel Martins (Ponho palavras)





ponho palavras onde vou morrer
e estremeço porque a vida se dissipa
como água derramada no soalho

entre muitas outras coisas escrever
é procurar nos confins

além tempo e sucessão de espaços
a demorada nomenclatura do efémero


Miguel Martins

[Luz & sombra]

.

5.7.14

Miguel Martins (Dizem)





Dizem que a vida me foi dada à borla.
Só eu sei quanto isso me custa.


Dizem que não penso nos outros.
Deus sabe o tempo que gasto a pensar nisso.


Dizem que tenho um ego agigantado.
É a única coisa que tenho.


Dizem que vou acabar sozinho.
Têm razão.


Miguel Martins

[Antologia]

.

22.2.14

Miguel Martins (Parece)





PARECE



Parece
que não vale a pena
Parece
que já não vale a pena
Parece
que já nada vale a pena
Parece
que AQUI já nada vale a pena.


Miguel Martins

.

11.10.13

Miguel Martins (Sou eu)





SOU EU



São as minhas mãos que tremem até não poder segurar os talheres
sou eu sentado na cama, transido de medo de acordar para viver
sou eu a vomitar de medo como desde os tempos da escola primária
sou eu a driblar o futuro, acabando por sair pela linha lateral
sou eu agora em espasmos, assemelhando-me a um campo de minas
sou eu agarrando-me aos poucos que me disseram alguma coisa
eu tentando não cair, não sabendo como vim parar a esta copa
sou eu com a morte nos olhos que trago dentro dos meus olhos
eu, fidelíssimo traidor, não entendendo porque me achei só
eu a fugir de encontrar-me e sempre na exaustão de me encontrar
eu em cada vivo, em cada morto, em cada esquina da cidade
sou eu não conseguindo adormecer e, adormecendo, não dormindo
sou eu sem saber fugir a uma luxúria que jamais me faz feliz
eu a habitar um corpo doloroso, como semáforo amarelo
eu vendo outra coisa em cada coisa e em tudo palavras de papel
eu carregando o peso do passado sobre um futuro inexorável
eu mais mortal que os mortais e defrontando a imortalidade
sou eu com a cara e a alma à venda nos escaparates insensíveis
eu pedindo esmola a quem despreza o que lhe posso dar
sou eu rindo-me de mim para evitar chorar por tudo o mais
sou eu irremediavelmente sozinho para toda a eternidade
sou eu sem música de fundo, vendo-me num espelho desbotado
sou eu a fumar como se me defumasse para me poder comer
sou eu silenciando um grito por minuto e escrevendo no mel
eu vestindo toda esta nudez, só para só amar a verdade do amor
e se isto é difícil de entender, dizendo-te outra coisa não seria eu.


Miguel Martins


[Abro páginas]


.




14.8.13

Miguel Martins (Era o Inverno de 69)





Era o Inverno de 69.
Havia notícias como há sempre,
e suponho que fizesse frio.

A parentela acorria,
acotovelava-se ao redor da cama,
fingia estar feliz, ou talvez estivesse,
sabe Deus porquê. (Ao mesmo tempo,
abrigava-se da chuva.)

Nunca fui tão pequeno, nem tão pouco
parvo. A partir de então, industriaram-me
nas artes e ciências de estar vivo,
excepto a respiração, que é oferecida:

comer, roubar, fugir,
ser intramuros e existir na gleba,
e desistir
silenciosamente.

Sim. Foi, para mim, o Inverno dos Invernos.

E não há meio de acabar.


Miguel Martins


[Hospedaria Camões]

.

24.3.13

Miguel Martins (Na noite clara da tua morte)





Na noite clara da tua morte Pai
parto de vez para a margem da brandura
Levo nos olhos esta luz de dor
feixes opacos medas de cansaço
(como as que carregavas)
seara que nasce no sonho condenada
quando na alma a chama esmoreceu
Chegou-me a mim: já nada perdura
Querias saber o que era aquele nada
contra o qual lutava – sou eu
vazio de ti. Poupámos o Futuro.


Miguel Martins

.

18.10.12

Miguel Martins (A vida tarda)





A vida tarda
enquanto esta demonstração democrática do Demo
se demora entre ademanes e esgares,
como se tudo não passasse de uma farsa
velha e medíocre,
levada à cena, em sessões contínuas,
desde que uma salamandra se fez gente,
gente escondida
com o rabo de fora.
Resta-nos correr no sentido inverso
aos ponteiros do relógio e procurar,
inglórios, o pântano primordial
e, nele, nossos recantos de calor estagnado,
passar a borracha da noite sobre o carvão do vento,
correndo o risco de tudo esborratar,
e ter esperança ou, pelo menos, fé
nas propriedades curativas das folhas brancas.
Imaginem comigo:
o branco mais profundo
sugando-nos para dentro de si
como o olho de um furacão,
olho terrível e encantador
de répteis.
Antes de mergulhar, permitam-me apenas
um cálice de licor de ervas amargas
e o clangor lânguido de um oboé tibetano.
E depois - só depois - o abismo imenso,
antediluviano,
da nossa morte inteira e sem mentiras,
sem conta-gotas a dosearem tudo,
até a beira-mar
e até o medo.


Miguel Martins


[O único verdadeiro deus vivo]



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