30.9.18

Juan Manuel Villalba (Indignação)






INDIGNACIÓN
(fragmentos)


Los recuerdos son ruidos. Parecen caravanas
de furiosas motocicletas
que atronan los caminos comarcales
que cada cual asigna a su memoria.
Por culpa de la lírica estallaron
multitud de veranos inocentes.
Centenares de noches infinitas
se agotaron en vanas construcciones de versos
que sólo conseguían convertirse
en trazos que manchaban el papel.
Si entonas las palabras, ten cuidado.
Aunque no lo parezcan, son cuchillos
que vuelven a su antiguo lanzador.
Todo lo que perdimos está catalogado,
mantenido, aguardando en un mundo paralelo
que nada sabe de nosotros.
Nadie tiene el resguardo que recuperará
de la consigna todo lo extraviado.
Hay gente, objetos, sueños y animales
que una vez decidieron vivir su condición.

Todo lo que perdimos nos aguarda en un mundo
regido por la ley de la orfandad.
Todas las cosas que perdimos
nos conducen al fin a lo que somos
porque somos la resta de una suma imposible.

Juan Manuel Villalba




As lembranças são ruídos, como caravanas
de furiosas motorizadas
atroando os caminhos vicinais
que cada um traça na memória.
Por culpa da lírica explodiram
milhentos verões inocentes.
Centenas de noites sem fim
deram em vãs construções de versos,
meras linhas ou traços a manchar o papel.
Se usas as palavras, tem cautela,
que são punhais, embora não pareçam,
que se viram contra quem os atira.
Tudo o que perdemos está catalogado,
arquivado, à espera em um mundo paralelo
que nada sabe de nós.
Ninguém tem o abrigo que recuperará
da entrega tudo o que se extraviou.
Há gente, objectos, sonhos e animais
que a seu tempo decidiram viver a sua condição.

Tudo o que perdemos nos aguarda num mundo
regido pela lei da orfandade.
Todas as coisas que perdemos
nos conduzem a final àquilo que somos,
pois que somos só o resultado
de uma soma impossível.

(Trad. A.M.)



>>  Poetas siglo XXI (5p) / Father Gorgonzola (3p)


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28.9.18

Marilyn Contardi (Outono nas folhas)






OTOÑO EN LAS HOJAS



Miro las hojas
de la morera
a través
de la ventana

el otoño
ha descansado
en ellas
sin estrujarlas,

fueron sólo
caricias
de color.

Ni saben
que las miro
ni que entran
por los ojos
bellas
gráciles

que animan
todo el ser
hasta hacerle
sentir que es
una rama
llena de hojas,
doradas
entibiándose
al sol.


Marilyn Contardi
 



  



Olho as folhas
da amoreira
através da janela

o outono
pousou nelas
sem as amarrotar

nada mais
do que carícias
de cor.

Não sabem
que as observo
nem que me entram
pelos olhos
belas e
cheias de graça

que animam
qualquer ser
até lhe fazer
sentir que é
um ramo
cheio de folhas,
douradas,
aquecendo-se
ao sol.

(Trad. A.M.)


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26.9.18

Juan Bonilla (Metástase)





METÁSTASIS



Buena palabra para darle al perro
criminal del vecino, o al temible
jefe que nos amarga con sandeces,
pero qué rara nos resulta pronunciada
por la voz triturada de un amigo
con ojos excavados en un rostro
que no parece el suyo. Desde antiguo
sabe escoger la muerte sus pseudónimos.
Prefiere los eufónicos vocablos
alzados en tacones de prestigio
científico. Enciende un cigarrillo
mi amigo y yo contemplo el grano negro
que en su pulmón emite una sentencia
de muerte que otro grano en su garganta
o en su páncreas repite. Qué hago ahora
con mis ganas de celebrar el mundo.
Tres, cinco meses más, qué harías tú,
pregunta sin mirarme envuelto en humo.
Se vive dentro del visor del arma
arbitraría de un francotirador
apostado en quién sabe qué tejado,
el dedo preparado en el gatillo.
Camino por la calle soleada,
siento en la nuca la mirada torva
del francotirador que me asignaron.
Se vive dentro del visor de un arma
que será disparada por borrarte.
No le ahorres trabajo al asesino.


Juan Bonilla

[Apología de la luz]







Bela palavra para dar ao filho da mãe
do cão do vizinho, ou ao temível
chefe que nos aborrece com merdices,
mas tão estranha nos parece pronunciada
pela voz triturada de um amigo
de olhos escavados num rosto
que não parece o dele. De há muito
sabe a morte escolher seus pseudónimos,
preferindo eufónicos vocábulos
com os saltos altos do prestígio
científico. Meu amigo acende
um cigarro e eu contemplo o grãozinho
negro que emite no seu pulmão uma sentença
de morte, que outro grão lhe repete na garganta
ou no pâncreas. O que é que eu faço agora
com minha vontade de celebrar o mundo?
Mais três meses, cinco, o que farias tu,
diz-me ele, sem me encarar, envolto em fumo?
Vivemos dentro do visor da arma
arbitrária de um franco-atirador
postado sabe-se lá em que telhado,
com o dedo preparado no gatilho.
Caminho pela rua soalheira,
sentindo na nuca o olhar turvo
do franco-atirador que me destinaram.
Vivemos dentro do visor de uma arma
que será disparada para nos apagar.
Não poupemos o trabalho ao assassino.

(Trad. A.M.)


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24.9.18

Antonio Cabrera (Amor fati)






AMOR FATI



El crepitar
de unas ramas de olivo
que se queman sin prisa tras la poda,
el ímpetu del pájaro en el cielo,
su timidez en el arbusto, el áspero
zarzal y la humareda
me están pidiendo
una confirmación, su debido registro
entre lo que sucede.
                                          Necesitan
el sí callado que he de darles
para poder hacer en su existencia
un hueco a mi existencia muda.
Comprendo que se trata
-como en el lazo entre la flor y el día-
de un destino recíproco,
de un mutuo ser en lo que es, sin más.
(Ninguna plenitud,
tampoco, aún, ninguna pérdida.)

Acepto estar aquí, y estar mirando
estas cosas sin cifra.
Acepto, juzgo, doy
al aire
el mismo aire
que me sustenta a mí.

Antonio Cabrera




O crepitar
de alguns ramos de oliveira
a queimar sem pressa depois da poda,
o ímpeto do pássaro no céu,
a sua timidez no arbusto, o áspero
silvado e a fumarada
como que me pedem
uma confirmação, o devido registo
no rol do que acontece.
                               Requerem
o sim calado que hei-de dar-lhes
em troca de um espaço para a
minha muda existência.
Compreendo tratar-se
 – tal como no laço entre a flor e o dia –
de um destino recíproco,
de um mútuo ser no que é, sem mais.
(Nenhuma plenitude,
mas também, por agora, nenhuma perda).

Aceito estar aqui, e estar a olhar
para estas coisas sem número.
Aceito, julgo, dou
ao ar
o próprio ar
que a mim me sustém.

(Trad. A.M.)


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22.9.18

Antonio Rivero Taravillo (O frigorífico)




EL FRIGORÍFICO



Nuestro diccionario no cuenta
con voz exacta para su sonido,
una onomatopeya que describa
este ruido que ahora
emite lamentándose.

Como tripas sonando
tras mala digestión o hambre de antiguo,
él, que guarda nuestra comida,
suelta la queja de un mamut
que duerme y sueña
en esa glaciación discreta
tras de la puerta blanca.

Solloza lastimero,
y te dan ganas
de darle unas pastillas
del cajón silencioso que hay al lado.

¿Qué nos quiere decir, tan gemebundo?
¿Por qué musita con sus labios yertos
en su intestino oscuro?

¿Nos reprenden la carne, las verduras,
por no estar presos, y seguir
a su costa nuestro destino
de estar afuera y vivos, escuchándolo?


Antonio Rivero Taravillo




O dicionário não tem
uma entrada exacta para aquele som,
uma onomatopeia que descreva
aquele ruído que está a fazer agora,
como queixando-se.

Quais tripas roncando
sobre uma má digestão ou fome antiga,
ele, guardião da nossa comida,
solta a queixa de um mamute
que dorme e sonha
nessa glaciação discreta
por trás da porta branca.

Soluça ressentido,
e até dá vontade
de lhe dar umas pastilhas
do gavetão silencioso que há do lado.

O que nos quer dizer, tão gemebundo?
Porque é que sussurra, de lábios hirtos,
nos seu escuro íntimo?

Repreendem-nos a carne, as verduras,
por não estarmos presos lá dentro, vivendo
nosso destino de estar fora e vivos, a ouvi-lo?

(Trad. A.M.)

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20.9.18

Gioconda Belli (Culpas obsoletas)





CULPAS OBSOLETAS



Cómo será, me pregunto,
no sentir incesantemente
que uno debería ocupar varios espacios al mismo tiempo?
No pensar, mientras se tumba uno con un libro,
que se debería estar haciendo otra cosa.
Asumir, como hacen los hombres,
la importancia del tiempo
que dedicamos al propio enriquecimiento.

Las mujeres
tenazmente sentimos
que le estamos robando tiempo a alguien.
Que quizás en ese preciso instante
se nos requiere
y no se cuenta con nosotras.
Precisamos
todo un entrenamiento
para no borrarnos, minimizarnos,
constantemente.

¡Ah! ¡Mujeres, compañeras mías!
¿Cuándo nos convenceremos
de que fue sabio el gesto
de extenderle a Adán
la manzana?


Gioconda Belli

[Emma Gunst]




Como será, pergunto eu,
não sentir continuamente que devíamos
ocupar vários espaços ao mesmo tempo?
Não pensar, enquanto nos deitamos com um livro,
que devíamos estar a fazer outra coisa?
Assumir, como os homens fazem,
a importância do tempo
que dedicamos ao nosso enriquecimento.

Nós, mulheres,
sentimos sempre
que estamos a roubar o tempo a alguém.
Que talvez nesse preciso instante
alguém nos reclama e
não pode contar connosco.
Precisamos de muito treino
para não nos apagarmos, constantemente,
para não nos minimizarmos.

Ah! Mulheres, companheiras!
Quando é que nos convenceremos
de que aquele gesto
de oferecer a maçã a Adão
foi muito sábio?

(Trad. A.M.)

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16.9.18

Rui Knopfli (Auto-retrato)





AUTO-RETRATO



De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes,
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber,
o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada do seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.


Rui Knopfli


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14.9.18

Leopoldo Castilla (Distancia)






DISTANCIA


Entre un punto y otro
la distancia más grande es la desolación 
del punto.

Leopoldo Castilla




>>  El placard (62p) / Fund. Konex (bio) / Portal de Salta (perfil)

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12.9.18

Fernando Luis Chivite (Uma mulher a estender um lençol)






UNA MUJER EXTENDIENDO UNA SÁBANA



Ocurren un montón de cosas que somos incapaces de explicar.
Vamos de un sitio a otro, tomamos algunas decisiones,
creemos haber hecho algo y no hemos hecho
absolutamente nada,
y sin embargo ese no hacer nada es lo mejor que tenemos.
Recuerdo una mañana en la que todo se mantuvo en silencio.
Yo había optado por el camino equivocado
y en lugar de subir la escalinata de piedra
y atravesar apresuradamente la puerta
del olvido de uno mismo,
me adentré en la ciudad.
Era muy joven
y estuve dando vueltas por las calles medio vacías
sin saber a dónde ir.
La ciudad estaba allí, ante mí,
como un enorme artefacto peligroso que yo no sabía utilizar,
pero no sentí ninguna clase de temor sino en todo caso
sencillamente asombro y soledad.
Se abrían las puertas de las primeras tiendas
y la gente ocupada agachaba la cabeza
preparándose para su nuevo día de trabajo.
Sin embargo lo que recuerdo con más intensidad es una calle
en la que siempre daba el sol.
Aquella mañana atravesé muy despacio aquella calle.
Atravesé aquella calle con una lentitud infinita
y al llegar al final me di la vuelta.
Quizá pasé una hora yendo de un lado a otro
con la mayor lentitud que puede alcanzar deliberadamente un ser humano.
No sé lo que es el tiempo, todo el mundo se arriesga a decir algo
y al final la mayor parte de las veces suena bastante estúpido.
Aquella hora ha sido la hora más ancha de mi vida
y sin embargo
ignoro la verdadera naturaleza de lo que allí ocurrió,
pues en verdad no hice nada.
Durante toda mi vida he recordado esa hora,
la luz de aquella calle, el sol en las fachadas de las casas,
todo eso. Y lo he recordado
con mayor nitidez y con mayor emoción a medida que pasaban
los años. Me veo allí de nuevo pasar de un lado a otro,
los detalles no son siempre los mismos,
aunque ignoro por qué.
A veces descubro una mujer extendiendo una sábana
al otro lado de una ventana,
o el rótulo de un almacén o de una tienda
que no había visto antes.
Pero lo que no cambia en ningún caso
es el sentimiento que me trae esa imagen,
la sensación de estar libre
y a salvo.
Supongo que será completamente inútil
tratar de darle más vueltas al asunto.
En ocasiones creo intuir el verdadero valor
de lo que allí pasó,
pero al instante siguiente ya no estoy tan seguro.
Hay algo que me impide hacer el esfuerzo de intentar explicarlo.

FERNANDO LUIS CHIVITE
Calles poco transitadas
(1998)





Há um monte de coisas que acontecem
que a gente não consegue explicar.
Vamos de um sítio para outro, tomamos algumas decisões,
acreditamos que fizemos alguma coisa
e não fizemos absolutamente nada,
e todavia esse nada é o melhor que fizemos.
Lembra-me uma manhã em que estava tudo em silêncio,
eu tinha escolhido o caminho errado
e em vez de subir a escadaria de pedra
e atravessar correndo a porta do esquecimento de mim mesmo,
fui pela cidade dentro.
Era muito jovem
e pus-me às voltas pelas ruas quase vazias
sem saber onde ir.
Ali estava a cidade, diante de mim,
como um grande artefacto perigoso que eu não sabia utilizar,
mas não senti qualquer temor, mas antes
solidão e assombro simplesmente.
Abriam as portas as primeiras lojas
e as pessoas atarefadas baixavam a cabeça
preparando-se para o novo dia de trabalho.
Contudo, o que lembro mais intensamente é uma rua
que tinha sempre sol.
Nessa manhã atravessei essa rua muito devagar,
atravessei essa rua com infinita lentidão
e ao chegar ao fim virei-me.
Passei para aí uma hora de um lado para o outro,
com a maior lentidão que um ser humano deliberadamente pode alcançar.
O tempo eu não sei o que é, toda a gente se arrisca a dizer uma coisa
que as mais das vezes depois parece um bocado estúpida.
Aquela hora foi a hora mais larga da minha vida,
e todavia
não sei muito bem o que ali se passou,
pois na verdade não fiz nada.
Durante a vida toda recordei essa hora,
a luz daquela rua, o sol nas fachadas das casas,
isso tudo. E recordava-o
com mais nitidez e mais emoção à medida que os anos
passavam. Vejo-me ali a passear de um lado para o outro,
os detalhes não são sempre os mesmos,
não sei bem porquê.
Às vezes descubro uma mulher a estender um lençol
do outro lado de uma janela,
ou o cartaz de uma loja ou armazém em que antes não reparara.
Mas o que não muda nunca
é o sentimento que essa imagem me traz,
a sensação de estar livre e a salvo.
Não adianta dar muitas mais voltas ao caso,
às vezes creio perceber o verdadeiro valor do que ali se passou,
mas no momento seguinte já não estou tão seguro,
e algo me impede de fazer o esforço de tentar explicá-lo.

(Trad. A.M.)

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10.9.18

Questão antiga (CA-1)





QUESTÃO ANTIGA



Quando me prende amor
porque me lembra a mor-
te?


(A.M.)

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8.9.18

Federico García Lorca (Desejo)




DESEO



Solo tu corazón caliente,
y nada más.

Mi paraíso un campo
sin ruiseñor
ni liras,
con un río discreto
y una fuentecilla.

Sin la espuela del viento
sobre la fronda,
ni la estrella que quiere
ser hoja.

Una enorme luz
que fuera
luciérnaga
de otra,
en un campo de
miradas rotas.

Un reposo claro
y allí nuestros besos,
lunares sonoros
del eco,
se abrirían muy lejos.

Y tu corazón caliente,
nada más.


Federico García Lorca




Só teu coração ardente,
nada mais.

Meu paraíso um campo
sem rouxinol
nem liras,
um rio discreto
e uma fontinha.

Sem a espora do vento
na fronde,
nem a estrela que pretende
ser folha.

Uma luz enorme
que fosse
pirilampo
de outra,
num campo de
olhares rasgados.

Um repouso claro
e aí nossos beijos,
sinais sonoros
do eco,
abrindo-se na distância.

E teu coração ardente,
nada mais.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Luz & sombra (J.E. Simões)


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6.9.18

Federico Díaz-Granados (Notícia da fome)






NOTICIA DEL HAMBRE 



Me habita el hambre. Y todos me lo dicen.
No es el miedo ni la duda
apenas un ritmo intacto que no toca con su sal la orilla.
Es el hambre, quizá un leve testamento
o esta insistencia en destruir la casa
y renovar la piedra en sueño.

Es poco lo que recuerdo de mí a esta hora, el disperso,
el que a la intemperie es un poco de hierba,
una palabra sin traje con olor a otras tierras
y que mira con cara de extranjero todas las prestadas alegrías.

Llega el hambre con su mismo azar y su idéntico augurio.
La lluvia está debajo de la carne
y pocas cosas recuerdan al viejo amor
que ya no cuenta.

Es el hambre. Y todos me lo dicen.
No es el leve testamento ni la tristeza de las noches.
No es la poesía
ni la música que traduce el tiempo.

Un poco de hambre
y el cansancio de llenar la estantería de ausencias.


FEDERICO DÍAZ-GRANADOS
Hospedaje de paso
(2003) 





Habita-me a fome. E todos mo dizem.
Não é medo nem dúvida
apenas um ritmo intacto que não chega à margem.
É a fome, um testamento talvez
ou esta insistência em destruir a casa
e renovar a pedra em sonhos.

É pouco o que recordo de mim nesta hora, o esparso,
o que um pouco de erva é na intempérie,
uma palavra sem véstia a cheirar a outras terras,
a olhar com cara estranha as alegrias emprestadas.

Vem a fome com seu acaso e seu idêntico augúrio.
Chove por dentro da carne
e poucas coisas lembram ao velho amor que já não conta.

É a fome. E todos mo dizem.
Não é o testamento nem a tristeza das noites.
Não é a poesia
nem a música que o tempo traz consigo.

Um pouco de fome
e o cansaço de carregar as estantes de ausências.


(Trad. A.M.)


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4.9.18

Mário de Carvalho (Um frasco em cada mão)





(Um frasco em cada mão) 



Eu preparava-me para descrever agora melhor o gabinete de Bernardo, e já ensaiava vários ângulos, com movimentos cinematográficos do olhar, a que não faltava um contrapicado, quando alguém, truz, truz!, bateu à porta e me estragou os arranjos.

A porta entreabriu-se e espreitou uma cara feminina, sorridente, a mais não poder.

Eva, a – por assim dizer – namorada de Bernardo, apresentava-se triunfal com dois boiões, dos de compota, um em cada mão.

O que eu passo agora a contar é inacreditável.

Prossigo a custo, após uma perplexa hesitação.

A vida, não raro, ficciona, devaneia, absurdiza e eu hei-de conformar-me a ela, mais do que ao famoso pacto de verosimilhança outorgado com o leitor.

Mas reparem no conteúdo dos frascos para que não digam que estou a mentir.

Um está vazio, pronto, não conta.

E o outro?


MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)

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2.9.18

Ernesto Pérez Vallejo (Uma vez escrevi um poema)






UNA VEZ ESCRIBÍ UN POEMA QUE NO TENÍA A PALABRA COÑO



Duerme,
parece como muerta y solo duerme,
apenas se la oye respirar,
casi como un suspiro, aún más leve,
como brisa de mar pero en caliente
tragar el mismo aire que ella suelta
se parece a besarla sin el beso.

Duerme,
apenas se ha movido en estas horas,
un giro inesperado a media noche,
más culpa del calor que ella desprende
que de la dulce inercia de su espalda.

Parece como muerta y solo duerme,
tan bella como siempre por ejemplo,
igual que cuando baila o cuando miente,
cuando rompe mi cintura en el pasillo,
igual que cuando ríe o cuando odia,
cuando queda desnuda en la penumbra,
cuando sale vestida por la puerta,
igual que cuando llora o cuando canta
o me invita a otra fiesta entre sus piernas.

Su cabello en la almohada como un charco,
sus manos alejadas de su rostro,
su pecho izquierdo buscando la salida
de un pijama al que le faltan dos botones
y le sobran unos cuantos todavía.

Duerme,
se traga toda la oscuridad de este cuarto,
parece iluminada por un foco,
parece un foco iluminando la noche,
luna creciente que se cuelga en mis retinas,
que mengua cada vez que parpadeo
o llena cada vez que hallo el vacío.

Duerme,
ya casi son las nueve y el reloj,
hará que su bostezo me despeine,
su aliento de verano me consuma,
sus dedos afilados me perviertan
dirá sus buenos días y con un beso
hará cumplir con creces sus palabras.

Se mueve en el tic tac muy suavemente,
sus ojos son columpios de jardín,
su boca el tobogán de mis sonrisas,
despierta sutilmente, ya no duerme
y yo sigo soñando.


Ernesto Pérez Vallejo






Dorme,
parece morta, mas está só a dormir,
mal se ouve respirar,
um suspiro quase, mais leve ainda,
uma brisa do mar, mas quente,
respirar o mesmo ar que ela
é parecido a beijá-la sem o beijo.

Dorme,
mal se mexeu nas últimas horas,
uma volta inesperada à meia noite,
culpa mais do calor que dela emana
do que da suave inércia das suas costas.

Parece morta, mas está só a dormir,
tão bela como sempre, por exemplo,
como quando dança ou quando mente,
quando me parte pela cinta no corredor,
como quando se ri ou odeia,
quando se põe nua na penumbra,
quando sai vestida porta fora,
como quando chora ou se põe a cantar
ou me convida para outra festa entre pernas.

O cabelo na almofada como um charco,
as mãos afastadas da cara,
o peito esquerdo a sair do pijama
a que faltam dois botões,
mas sobram ainda uns quantos.

Dorme,
engole o escuro todo do quarto,
parece iluminada por um foco,
parece um foco a iluminar a noite,
lua em crescente suspensa dos meus olhos,
a minguar quando eu pestanejo
ou a encher quando encontro o vazio.

Dorme,
são nove quase e o relógio
fará o seu bocejo despentear-me,
tragar-me seu hálito de Verão
e seus dedos afiados perverter-me,
dará o seu bom-dia e com um beijo
cumprirá por acréscimo as suas palavras.

Move-se mui suavemente no tic-tac,
seus olhos um baloiço de jardim,
a boca o tobogã de meus sorrisos,
desperta subtilmente, não dorme já,
mas eu continuo sonhando.

(Trad. A.M.)

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