30.5.21

Ruy Belo (Muriel)




MURIEL

 

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido


Ruy Belo

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28.5.21

Vicente Huidobro (Noite)



NOCHE

 

Sobre la nieve se oye resbalar la noche

 La canción caía de los árboles
Y tras la niebla daban voces

De una mirada encendí mi cigarro

Cada vez que abro los labios
Inundo de nubes el vacío

 En el puerto
Los mástiles están llenos de nidos 

Y el viento
gime entre las alas de los pájaros

 Las olas mecen el navío muerto

Yo en la orilla silbando
Miro la estrella que humea entre mis dedos

 

Vicente Huidobro

 

 

Sobre a neve ouve-se a noite a resvalar

A canção tombava das árvores
e vinham vozes de trás da névoa

Num olhar acendi meu cigarro

Cada vez que abro os lábios
inundo o vazio de nuvens

No porto
os mastros estão cheios de ninhos

E o vento geme
entre as asas dos pássaros

As ondas embalam o navio morto

E eu na beira a assobiar
olho para a estrela que me fumega entre os dedos


(Trad. A.M.)

.

.

27.5.21

José Ángel Cilleruelo (Despedida sem partida)




DESPEDIDA SIN MARCHA            

 

Abre los ojos para no ver nada.
Un niño que aún no la tiene,
se ha quedado sin lengua. Mira. Abre
los ojos. Y los cierra, sin idioma.
La enfermera le limpia, le retira
el pañal húmedo.
Un niño que su cuerpo no conoce,
que no sabe moverlo,
un coágulo con el que desaprende.
Abre los ojos para mirar nada,
sin respuestas, sin reconocimientos.
El oxígeno burbujea, único
lenguaje en el silencio
del cuarto. Y si los cierra
deja hueca la realidad,
desamparada.
Quién seré yo, al que aprieta
su mano, al que sus ojos nada dicen.
Qué será este lugar donde no ha entrado
por su pie. Tiempo que no le acoge.
Se presenta el neurólogo de guardia.
Quién seré yo que hablo
por lo que no consigue ni escuchar.
Yo, que oigo razones, diagnósticos, y digo
que entiendo sin entender.
Cuando abre los ojos y los cierra.
Un niño abandonado por su padre.
Que soy yo. También padre, ahora,
de mi padre.

José Ángel Cilleruelo

[Revista Turia]



Abre os olhos para não ver nada.
Criança que não a tem ainda,
ficou sem língua. Olha, abre
os olhos. E fecha-os, sem palavra.
A enfermeira limpa-o, tira-lhe
a fralda molhada.
Uma criança que não conhece seu corpo,
que não sabe mexê-lo,
um coágulo com que desaprende.
Abre os olhos para observar nada,
sem respostas, sem reconhecimento.
O oxigénio borbulha, única
linguagem no silêncio
do quarto. E se os fecha,
deixa a realidade vazia,
desamparada.
Quem serei eu, a quem aperta
a mão, a quem seus olhos nada dizem?
Que lugar será este, onde não entrou
por seu pé? Tempo que não lhe vale.
Entra o neurologista de serviço.
Quem serei eu que falo por
esse que não consegue sequer ouvir?
Eu, que escuto razões, diagnósticos, e digo
que entendo sem entender,
quando ele abre os olhos e depois fecha.
Uma criança abandonada pelo pai.
Que sou eu. Também pai, agora,
de meu pai.


(Trad. A.M.)

 

 >>  JAC (antologia) / El visir de abisinia (blogue) / Barcelona review (7p) / Zenda (5p) / Wikipedia

 .

25.5.21

Maria Teresa Horta (Tudo ou nada)



TUDO OU NADA

 

Com uma mão
dou-te tudo
com a outra descubro o nada 

uns dias sou
de veludo
outros de raiva vidrada 

Entre a escrita onde me digo
e na escrita 
onde me iludo 

há a escrita onde me escondo
e a outra 
de meu abrigo

Tendo a razão como escudo
na porfia do disfarce
eu escrevo a ventania

 pelo meio da tempestade

 
Maria Teresa Horta

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23.5.21

Miguel Gaya (Estou a esquecer)




Estoy olvidando algunas cosas.
Cada mañana las cosas que olvido
hacen un agujero y se echan a dormir.
No creo que alguna vez acuda a despertarlas.
En sus agujeros sueñan. De su sueño
salen cosas que no olvido. 

 

Miguel Gaya

 

 

Estou a esquecer algumas coisas.
Todas as manhãs as coisas que esqueço
fazem um buraco e põem-se a dormir,
Não creio que vá algum dia despertá-las
Lá no buraco sonham. E do sonho
nascem coisas que eu não esqueço.


(Trad. A.M.)

.



22.5.21

Adolfo González (Escrita poética)



ESCRITURA POÉTICA

  

Escribo porque escribo,
escribo por lo mismo que la rosa florece. 

Escribo para nada, sólo para escribir,
igual que el río fluye para seguir fluyendo,
para no desbordarse,
para hacer lo que un río debe hacer. 

Escribo, a ratos, como si bailara,
siguiendo el ritmo de una música
lejana, o muy de dentro.
Pero escribo también
-y sobre todo-
desde una quietud
asombrada, dejando
constancia del misterio,
de este eterno
instante que es la vida,
con breves testimonios,
con fugaces imágenes,
con palabras que copio del destino
-libro abierto al azar-
y que a veces consiguen sorprenderme.

Escribo, en todo caso,
siempre al dictado de una voz callada,
que se hace escuchar
precisamente por callada.

Escribo y escribo.
Escribiré
hasta que Dios o el tiempo así lo quieran.
No el poema que sueño algunos días
cuando no tengo el lápiz en la mano.
No:
escribo -escribiré-
el extraño poema que me sienta a la mesa
sin pedirme otro esfuerzo
que el mismo del frutal para dar fruto.
El poema que surge, inesperado,
como un relámpago en la noche
o un claro entre las nubes;
o, más humildemente,
como un grupo de versos o líneas
que de tarde en tarde se me ocurren.

 
Adolfo González

 

 

Escrevo porque escrevo,
pela mesma razão que a rosa floresce.

Escrevo para nada, só por escrever,
tal como rio corre para continuar a correr,
para não transbordar,
para fazer o que um rio deve fazer.

Escrevo, com intervalos, como se bailasse,
seguindo o ritmo de uma música
distante, ou de cá de dentro-
Mas escrevo também
– e acima de tudo –
de uma quietude assombrada, deixando
registo do mistério,
desse eterno instante
que é a vida,
com breves testemunhos,
fugazes imagens,
palavras que copio do destino
 – livro aberto ao acaso –
e que às vezes conseguem surpreender-me.

Escrevo, em qualquer caso,
ouvindo sempre o ditado de uma voz
silenciosa, que se faz escutar,
precisamente por silenciosa.

Escrevo e escrevo.
E escreverei
até que Deus e o tempo assim o queiram.
Não o poema que sonho alguns dias
quando não tenho o lápis na mão.
Não:
Escrevo – escreverei –
o estranho poema que me faz sentar à mesa
sem pedir-me outro esforço
que a própria árvore para dar fruto.
O poema que surge, inesperado,
como um relâmpago na noite
ou uma limpaça entre as nuvens;
ou, mais humildemente,
como um conjunto de versos ou linhas
que de tarde em tarde me ocorrem.

(Trad. A.M.)

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20.5.21

Antonia Pozzi (Decerto nem é verdade)



Forse non è nemmeno vero
quel che a volte ti senti urlare in cuore:
che questa vita è,
dentro il tuo essere,
un nulla
e che ciò che chiamavi la luce
è un abbaglio,
l’abbaglio estremo
dei tuoi occhi malati–
e che ciò che fingevi la meta
è un sogno,
il sogno infame
della tua debolezza. 

Forse la vita è davvero
quale la scopri nei giorni giovani:
un soffio eterno che cerca
di cielo in cielo
chissà che altezza.

 Ma noi siamo come l’erba dei prati
che sente sopra sé passare il vento
e tutta canta nel vento
e sempre vive nel vento,
eppure non sa così crescere
da fermare quel volo supremo
né balzare su dalla terra
per annegarsi in lui.
 

Antonia Pozzi

 

 

Decerto nem é verdade
o que às vezes sentes gritar no teu peito,
que esta vida é um nada
e aquilo que chamavas a luz
é uma ilusão,
a grande ilusão da tua vista doente
- e o que pintavas como a meta
é um sonho
o sonho apenas
da tua fraqueza.

Se calhar a vida é mesmo
tal como a descobres na infância,
um sopro eterno que busca
de céu em céu
sabe-se lá que alturas.

Mas nós somos é como a erva dos campos
que sente o vento passar-lhe por cima
e canta inteira no vento
e vive no vento
e não sabe todavia crescer
para deter esse voo supremo
nem elevar-se acima do chão
para afogar-se com ele.

(Trad. A.M.)

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18.5.21

Daniel Cotta (Beethoven explicado a surdos)




BEETHOVEN EXPLICADO PARA SORDOS

 

Por más que quieras, sí, por más que busques,
por más que desentrañes la semilla,
por más que auscultes el tictac del suelo,
por más que espíes su porqué a la perla,
por más que le preguntes a la muerte,
por más soles que apagues, por más lunas
que enciendas, por más fuegos que alimentes,
no podrás,
Beethoven, no podrás:
el mundo seguirá hablándote entre dientes.


Daniel Cotta

 

 

Por mais que queiras, sim, por mais que busques,
por mais que desentranhes a semente,
por mais que auscultes o tique-taque do solo,
por mais que espies à pérola seu porquê,
por mais que perguntes à morte,
por mais sóis que apagues, por mais luas 
que acendas, por mais fogueiras que atices,
não poderás,
Beethoven, não poderás:
o mundo falar-te-á sempre entre dentes.

(Trad. A.M.)

 

 >>  Crear en Salamanca (7p) / Faro de Vigo (entrevista) / Carlos Alcorta (recensão) /  Wikipedia


17.5.21

Carlos Iglesias Díez (Sábado)



SÁBADO

 

Las horas crecen a la velocidad de pequeñas llagas.
En el interior, trato de sofocar el humo de tus preguntas.

Tal vez la realidad tenga tus ojos y, al verte,
mis palabras huyan.

Tal vez la torre del silencio
vuelva a arder
entre tú y yo.


Carlos Iglesias Díez

 

 

As horas crescem à velocidade de pequenas chagas.
Cá dentro, trato de sufocar o fumo de tuas perguntas.

Talvez a realidade tenha os teus olhos e, ao ver-te,
as minhas palavras fujam.

Talvez a torre do silêncio
volte a arder
entre mim e ti.


(Trad. A.M.)

.

15.5.21

Adília Lopes (Arte poética)



 

ARTE POÉTICA

 

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Adília Lopes

[Emma Gunst]

 .

13.5.21

Miguel d'Ors (Algo em mim)




ALGO EN MÍ

 

Tourón, Ponte-Caldelas,
tierra de Cotobade.
                    Los montes de mi estirpe:
ásperas cumbres, prados sosegados.

Augas Santas, Famelga.
                       De las rocas y el tojo
por donde en los inviernos ronda el lobo
reconozco algo en mí,
                      y de esos verdes líquidos
en los que se recuestan apacibles las vacas,
algo también.
              Loureiro, Carballedo,
As Lagóas, Xesteira, Vilanova.

De pronto, huraña y tierna,
es mi alma lo que veo
extenderse en la tarde ilimitada.


Miguel d´Ors

  

Tourón, Ponte-Caldelas,
terras de Cotobade.
               Os montes de minha estirpe:
ásperos cumes, prados serenos.

Augas Santas, Famelga.
               Das rochas e tojo
por onde o lobo ronda no inverno
algo em mim reconheço,
               e algo também
desses verdes líquidos
em que se recostam as vaquinhas.
               Loureiro, Carballedo,
As Lagoas, Xesteira, Vila Nova.

De repente, esquiva e terna,
é minha alma que eu vejo
a estender-se na tarde ilimitada.


(Trad. A.M.)

.


12.5.21

Hugo Vera Miranda (Uma noite com Madonna)



UNA NOCHE CON MADONNA

 

Sueño que estoy con Madonna
En el bar de Manos Limpias.
Hacemos el amor frenéticamente
Me dice que soy el mejor.

Tiene siete orgasmos
Yo veinticuatro.
Despierto.
Madonna me abraza.
Me dice: Hugo. Solo fue un sueño.


Hugo Vera Miranda

[Inmaculada decepción]

  

Sonho que estou com a Madonna
no bar de Mãos Limpas.
Fazemos amor freneticamente,
diz-me que sou o melhor.

Tem sete orgasmos,
eu vinte e quatro.
Acordo.
Madonna abraça-me,
e diz-me: Hugo, foi só um sonho.


(Trad. A.M.)

.

10.5.21

Natália Correia (Verdadeira litania)


VERDADEIRA LITANIA PARA OS TEMPOS DA REVOLUÇÃO

 

Mário nós não somos todos burgueses
os gatos e os ratos se quiseres,
os literatos esses são franceses
e todos soletramos malmequeres.
Da vida o verbo intransitivo
não é burguês é ruim;
e eu que nas nuvens vivo
nuvens! O que direi de mim?
Burguês é esse menino extraordinário
que nasce todos os anos em Belém
e a poesia se não diz isto Mário
é burguesa também.
Burguês é o carro funerário.
Os mortos são naturalmente comunistas.
Nós não somos burgueses Mário
o que nós somos todos é sebastianistas.

Natália Correia

 ____________________

(*) Citação clara de Mário Cesariny ('Litania para os tempos de revolução', de Nobilíssima Visão, 1959).

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8.5.21

Miguel Barnet (Quando minha imagem se desvanece)



Cuando mi imagen se desdibuja
en el espejo
 y máscaras remotas, enigmáticas,
se adhieren a mi rostro,
máscaras de tantos que dejaron sombras
indelebles, peregrinas en el tiempo ,
hurgo en el fondo de mi mismo
palabras sueltas, voladoras,
palabras de tanta estación,
de tanto azoro,
que me den una respuesta,
una señal quizás,
cualquiera que sea su signo
para descifrar mi letra en el oráculo.


Miguel Barnet

 

Quando minha imagem se desvanece
no espelho
e máscaras remotas, enigmáticas,
aderem ao meu rosto,
máscaras de tantos que deixaram sombras
indeléveis, peregrinas no tempo,
escavo no fundo de mim mesmo
palavras soltas, aladas,
palavras de tanta estação,
de tanto sobressalto,
que me dêem uma resposta,
um sinal talvez,
de qualquer signo que seja,
para decifrar minha letra no oráculo.


(Trad. A.M.)

.

7.5.21

Mario Miguez (Eu sujo tudo)



Ensucio todo hablando demasiado.                 
Cobarde charlatán, ruidoso hipócrita,
solo de mis mentiras me quejo.
Qué duro me es callarme para lograr
una palabra humilde y necesaria
tras de la cual yo quede imperceptible.
Debo callar, permanecer callado.
Aunque lo sé de siempre, no lo cumplo:
mi voz tengo que hacerla de silencio.


Mario Miguez

 

  

Eu sujo tudo por falar demasiado.
Cobarde charlatão, ruidoso hipócrita,
queixo-me só de minhas mentiras.
Quanto me custa calar-me para achar
uma palavra humilde e necessária
por trás da qual eu fique imperceptível.
Devo calar-me, permanecer calado.
Desde sempre o sei, mas não o cumpro:
minha voz tenho de fazê-la com silêncio.


(Trad. A.M.)

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5.5.21

Eugénio de Andrade (Este país é um corpo exasperado)



Este país é um corpo exasperado,
a luz da névoa rente ao peito,
a febre alta à roda da cintura.  

O país de que te falo é o meu,
não tenho outro onde acender o lume
ou colher contigo o roxo das manhãs.  

Não tenho outro, nem isso importa,
este chega e sobra para repartir
com os corvos - somos amigos.
 

Eugénio de Andrade


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3.5.21

Mario Benedetti (Garrafa ao mar)




GARRAFA AO MAR

 

Meto estes seis versos na garrafa
com o secreto desígnio de que um dia
chegue a uma praia quase deserta
e a ache uma criança e a abra
e em vez de versos tire pedrinhas
e socorros e alertas e búzios.


Mario Benedetti

(Trad. A.M)

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2.5.21

Mariano Crespo (A família)




LA FAMILIA 

 

La familia es un armario lleno de cadáveres
que hieden por navidad
y por todos los santos huelen a flores.  

La familia es un abrigo que pica
y que protege
hasta que sabes que te identifica
y que te anula. 

La familia es ese gusto por mandar 
y obedecer
al que llamamos orden. 

Por asesinar al padre y a la madre,
o llevarlos a los altares,
que es igual pero no es lo mismo 
porque es un trabajo más limpio. 

La familia es una vocación suicida de hacer de dioses. 

Por eso don Vito nos parece tan cercano.
Por eso hay mañanas que nos levantamos Corleone. 

La familia es una secta. 

Un lugar de cuyas cercas es sano escaparse
si no se comete la torpeza
de perpetrar otra cerca, una secta nueva,
como comúnmente se hace. 

La familia es el arroz en día de bodas
y la tierra y el reparto en día de luto.
La familia es el esperma, el ovario y el revolver.
La familia es la soga en la casa del ahorcado.
El silencio cómplice.
La llamada de la sangre. 

Además de eso, 
en ocasiones, 
nos parecemos físicamente, 
lo que nos jode. 
 

Mariano Crespo 

 

A família é um armário cheio de cadáveres
que cheiram mal pelo natal
e fora disso cheiram a flores. 

A família é um agasalho que pica
e que protege 
até saberes que te identifica
e te anula. 

A família é aquele gosto de mandar
e obedecer
a que chamamos ordem.

De assassinar pai e mãe,
ou de pô-los num altar,
o que é igual mas não vale o mesmo,
porque é um trabalho mais limpo. 

A família é uma vocação suicida de imitar os deuses. 

Por isso don Vito nos parece tão próximo,
por isso há dias em que nos levantamos Corleone. 

A família é uma seita. 

Um lugar de cujos muros é saudável fugir,
se não arranjamos novos muros,
uma seita nova, como geralmente se faz. 

A família é o arroz do dia de casamento, 
e a terra e a partilha em dia de luto.
A família é o esperma, o ovário e o revólver.
A família é a corda em casa do enforcado,
o silêncio cúmplice,
o apelo do sangue. 

Além disso,
por vezes,
somos parecidos fisicamente,
e é chato.

(Trad. A.M.)

 .