31.1.23

Amadeu Baptista (A inquietação)




A INQUIETAÇÃO

 

Os cavalos progridem sobre a página
Em branco, enche-se de cintilações
O rio que aqui corre, a lua assoma
Por detrás das colinas, onde todos os brilhos

Se reúnem, todos os sortilégios.
As crianças acordam e leio-lhes
Em voz alta, talvez também me ouças
Na parte incerta em que estiveres,

Não sei se em Elsinore, se em York,
Não sei se longe ou perto desta
Doença incógnita que nos cerca.

Está frio, o mar acentua a inquietação. 
Mas sei que o céu é um caminho 
Que nunca muda de nome para nós.

Amadeu Baptista

 .

29.1.23

Alberto Szpunberg (De que ramo)




(XX) 

 

De qué rama, por fin, de qué savia
crecen y se estremecen,
en el aire de qué madera
los amantes que navegan
y hacia qué playa
los cuerpos como huellas
se celebran en la arena,
heridos de sol al mediodía,
del deseo de qué mar, siempre de viaje
y nunca, aun si la muerte, nunca
de regreso, nunca.

 
Alberto Szpunberg 

[Marcelo Leites]

 

 
De que ramo, enfim, de que seiva
crescem e estremecem,
no ar de que madeira
os amantes que navegam
e para que praia
os corpos como rasto
se celebram na areia,
feridos de sol ao meio-dia,
do desejo de que mar, sempre de viagem
e nunca, mesmo se a morte, nunca
de regresso, nunca.
 

(Trad. A.M.)

 .

28.1.23

José Antonio Martínez Muñoz (Resistência)




RESISTENCIA, SIN EMBARGO

 

 Esta vida es hostil, bien lo sabéis,
 no le basta privarnos de lo grande y
 se complace humillándonos lo humilde,
 y nos priva de patria y utopías
 y hurga obsceno en despensas y mesillas
 y deja su amarillo entre los libros,
 las fotos, la memoria y las cosas,
 los huesos y los días y los sueños,
 que nada de eso importe, mis amigos,
 vamos a seguir vivos, mano en mano,
que no saldremos vivos de esta vida,
 aunque nunca vencidos, sin embargo.


José Antonio Martinez Muñoz 

[No supiste

 

Esta vida é ruim, bem sabeis,
não só nos priva do grande, como
se compraz em humilhar-nos
e nos rouba pátria e utopias
e remexe indecente em mesas e dispensas
e deixa o seu amarelo entre os livros,
as fotos, a memória e as coisas,
os ossos e os dias e os sonhos,
que nada disso importe, meus amigos,
vamos continuar vivos, mão na mão,
que não sairemos vivos desta vida,
embora jamais vencidos, não obstante.


(Trad. A.M.)

.

26.1.23

Eduardo Guerra Carneiro (Que seja de amor)




Que seja de amor. Sim. A idade alterou alguns planos.
Ou talvez não. Dizias? As sílabas e o seu duplo sentido.                
Reinventá-las para uso próprio. Fustigá-las com jeito.
Alterar o símbolo. Que seja um novo poema. De amor.
Assim poderei noite após noite segredar-te alguns planos.


Eduardo Guerra Carneiro

 

 >>  Edições 50kg (8p) / A viagem dos argonautas (info) / Wikipedia

.

24.1.23

Adolfo González (Que estranho gozo)




QUÉ EXTRAÑO GOZO! 

 

¿Cómo es posible,
amor,
que esté escuchando
aquí,
en el silencio,
que esté escuchando
yo,
sin el que escucha,
las seis oscuras cuerdas
de la luz?

 

Adolfo González

 

 

Como é possível,
amor,
que eu esteja ouvindo
aqui,
no silêncio
que esteja ouvindo
eu,
sem o que ouve,
as seis escuras cordas
da luz?


(Trad. A.M.)

.

23.1.23

Abelardo Linares (Como falar de mim mesmo)




CÓMO HABLAR DE MÍ MISMO?

 

¿Cómo hablar de mí mismo, cómo presentar
mi verdad sin que algo me traicione?
¿Cómo atender la voz que en mi interior me habla
cuando la vida afuera ensordece mi oído?
¿Cómo huir de las grandes palabras
sin que me huya todo lo grande que hay en ellas?
¿Cómo renunciar a lo que brilla en la belleza
si quisiera escribir con todos mis sentidos
y el halago del verbo no es distinto al del cuerpo?
¿Cómo buscar en mí lo que permanece
si el olvido es la llave de mi jardín perdido?
¿Cómo evitar que el verso condescienda al asombro
sin que así desfallezca su misteriosa llama?
¿Cómo lograr que todo lo que en mí tiembla ahora,
tiemble en ti que me lees y al fin nazca el poema?

Abelardo Linares

 

 

Como falar de mim mesmo, como mostrar
a verdade sem algo me atraiçoar?
Como atender a voz que me fala cá dentro
quando a vida fora me ensurdece os ouvidos?
Como fugir das grandes palavras
sem que me fuja o que de grande há nelas?
Como renunciar ao que brilha na beleza,
querendo eu escrever com os sentidos,
se o mimo do verbo não é diferente do do corpo?
Como buscar em mim o que permanece,
sendo o olvido a chave de meu jardim perdido?
Como evitar que o verso ceda ao assombro
sem desfalecer sua chama misteriosa?
Como lograr que tudo que em mim treme agora
trema em ti que me lês, nascendo enfim o poema?


(Trad. A.M.)

.

21.1.23

Alexandre O'Neill (Primeira advertência)




PRIMEIRA ADVERTÊNCIA SÉRIA 

 

Coaxa o tempo. Zurra quando calha.
Pipila, o coitadinho. À beira charco,
plofa. 

Não te iludas. 

Testaruda, a besta arrancará
do meandro de túneis
– para bramir, à luz sem uma prega,
o tempo. 

Está atento.
 

Alexandre  O’Neill

 .

19.1.23

Vicente Muñoz Álvarez (Poesia)




POESÍA

 

El único refugio
la única salida

el único lugar
donde acudir

cuando en tu interior
todo está ardiendo.


Vicente Muñoz Álvarez

 

 

O único refúgio
a única saída

O único lugar
a que acudir

Quando dentro de ti
está tudo a arder.


(Trad. A.M.)

.

>>  Mi vida en la penumbra (seu blogue) /   Repoelas (5p) / Poetas siglo XXI (8p) / Librerantes (entrevista) / Wikipedia


18.1.23

Vicente Luis Mora (Diário de um amor)




DIARIO DE UN AMOR HECHO PEDAZOS

  

Uno de enero:
el amor es no tener 
que decir te quiero

*

Su risa hace
de este salón abierto
cámara de gas

*

Me asfixio inspiro
por el auricular 
si marco el número

*

Abre los ojos
no está diciendo nada
y se le entiende todo

*

Tres de febrero:
me dice que no la mire
aún la estoy viendo

*

Digo futuro
y describo viajes
prorrumpe en silencio

*

Siendo tan chica
cómo pudo inventarse
daño tan grande

*

Gracias al móvil consigo
llevar su silencio
conmigo

*

Más que el te quiero 
que no dije me matan
los que me dijo

*

Junio: mar espejo
olas arrugan la frente
quiero que llegue el invierno

*

Se cumplió mi sueño
perdí
mi sueño

*

Vida: migajas
con una digestión
desesperante


Vicente Luis Mora

 

 

Um de Janeiro:
o amor é não ter
que dizer amo-te

*

O seu riso
faz desta sala aberta
uma câmara de gás

*

Asfixio, inspirando
pelo auricular 
ao marcar o número

*

Abre os olhos,
sem dizer nada,
mas entende-se tudo

*

Três de Fevereiro,
diz-me que não olhe para ela
e ainda estou a vê-la

*

Digo futuro
e descrevo viagens
rompe em silêncio 

*

Sendo tão pequena
como é que pode fazer
um mal tão grande

*

Com o telemóvel consigo
suportar o seu silêncio 
para comigo

*

Mais do que o amo-te
que eu não disse, matam-me
 os que ela me disse a mim

*

Junho, mar de espelho
as ondas enrugam a testa
quero que venha o Inverno

*

Meu sonho cumpriu-se
perdi
meu sonho

*

Vida, migalhas
com uma digestão 
exasperante.


(Trad. A.M.)

 .

16.1.23

Vasco Graça Moura (Ah, as palavras)




AH, AS PALAVRAS!                       

 

fiz uma longa aprendizagem,
muitas rasuras e rascunhos,
muitos registos de passagem,
muitos borrões e gatafunhos
são outros tantos testemunhos
do meu mester, das minhas lavras,
uso a cabeça e às vezes punhos
de renda ou não. ah, as palavras!


Vasco Graça Moura

[Ciberduvidas]

.

14.1.23

Valeria Pariso (E se nos déssemos conta)




y si nos diésemos cuenta
que todo lo que llamamos amor es otra cosa,
que lo vivido hasta aquí no es más que un cuerpo
compartiendo con nosotros la ignorancia y la sed.
 

Valeria Pariso

[Tanto te queria]

 

 

e se nos déssemos conta
que tudo o que chamamos amor é outra coisa
que o vivido até aqui não é mais do que um corpo
partilhando connosco a ignorância e a sede.
 

(Trad. A.M.)

.

13.1.23

Santiago Aguaded Landero (Gastrosofia para salvar o mundo)




 GASTROSOFÍA PARA SALVAR/TERMINAR EL MUNDO

 

MI MADRE vivió en la cárcel de su cuerpo.
Ella me dijo: “el mundo comienza en la cocina”.
No importa lo que comamos “cerdo o flores,
siempre estamos completando un círculo un vínculo”.
Paracelso dijo: “lo que comes eres”.
En el carbón de la cocina está la lluvia del pasado.
En la mesa está la carne de antiguas mordeduras
y nuestros huesos asumen la reumática pesadumbre del alma.
En la mesa está el pan desnudo
de aquella luz sorbiendo el frío de la noche inflamada.
En la mesa está el mar exhausto de sardinas y sirenas.
En la mesa está el negro aceite de la tierra.
En la hamburguesa del macdonald
está el fragor de la selva sin apenas ranuras para el sueño.
En la mesa está la oscura gravedad de la luna, la sangre
que cierne sus símbolos sobre la sombra de tus ojos,
En la mesa está el estrepito rutilante de la luna llena de lamentos;
el intangible enigma de tanta realidad (in)soportable.
En la mesa están los calostros del sol nutriendo tus irisados labios.
En la cocina está el frío acondicionado que calienta el planeta.
En la mesa de mármol está la excelsa roca
abierta como un grito en gótica penumbra.
En la mesa está el rumor omiso de la muerte animal.
En la mesa está el jinete hambriento de corazones y sediento de sangre.
Acaso el mundo no acabe en la mesa de la cocina,
pero sí acaba en la memoria oculta del paisaje perdido.
El mundo terminará con agua o con fuego,
con la misma materia del origen, compacto herraje
para párvulas bocas hambrientas de sustancia.
El mundo terminará lleno de lágrimas
cuando el último hombre dé el último mordisco
a su mujer muerta.


Santiago Aguaded Landero

 

 

Minha mãe viveu na prisão de seu corpo.
Dizia-me: “o mundo começa na cozinha”.
Não importa o que se come, “porco ou flores,
estamos sempre a completar um círculo, um vínculo”.
E Paracelso disse: “tu és aquilo que comes”.
No carvão da cozinha está a chuva do passado.
Na mesa está a carne de antigas mordidas
e os nossos ossos assumem o pesar reumático da alma.
Na mesa está o pão desnudo
da luz sorvendo o frio da noite inflamada.
Na mesa está o mar exausto de sardinhas e sereias.
Na mesa está o óleo negro da terra,
no hamburger do macdonald
está o fragor da selva quase sem frestas para o sonho.
Na mesa está a gravidade da lua, o sangue
que prende os símbolos na sombra de teus olhos.
Na mesa está o estrépito rutilante da lua cheia de lamentos;
o enigma intangível de tanta realidade (in)suportável.
Na mesa estão os colostros do sol nutrindo teus lábios irisados.
Na cozinha o frio condicionado que aquece o planeta.
Na mesa de mármore a excelsa rocha aberta como um grito na penumbra gótica.
Na mesa o rumor omisso da morte animal.
Na mesa o ginete faminto de corações, sedento de sangue.
Talvez o mundo não finde na mesa da cozinha,
mas sim na memória oculta da paisagem perdida.
O mundo acabará com água ou fogo,
com a mesma matéria do princípio, compacta ferragem
para bocas famintas de sustância.
O mundo acabará em lágrimas
quando o último homem der a última trinca
na sua mulher morta.


(Trad. A.M.)

.

11.1.23

Mário Cesariny (Raio de luz)




RAIO DE LUZ

 

Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos. 

Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos.

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.

Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.
 

 Mário Cesariny

 .

9.1.23

Roger Wolfe (Verdades matemáticas)




VERDADES MATEMÁTICAS

 

Tú y yo, está visto,
somos líneas paralelas.

A mí de pequeño me dijeron
que dos líneas paralelas
se hacen secantes
-es decir: se cruzan-
en el infinito.

Vamos a tener
que armarnos de paciencia.

 

Roger Wolfe

 

 

Tu e eu, está visto,
somos linhas paralelas.

A mim, em pequeno, ensinaram-me
que duas linhas paralelas
se tornam secantes
- quer dizer, cruzam-se –
no infinito.

Vamos ter de
munir-nos de paciência.


(Trad. A.M.)

.

8.1.23

Rocío Wittib (Nada tem a ver)




el frío nada tiene que ver con el invierno
el invierno es una luz apagándose
pero el frío no se acaba nunca
arde igual que un recuerdo
arde al volver a la piel


 
Rocío Wittib

  

nada tem a ver com o inverno o frio
o inverno é uma luz a apagar-se
mas o frio não acaba nunca
arde assim como uma lembrança
arde ao tornar à pele
 

(Trad. A.M.)

 .

6.1.23

Cassiano Ricardo (As andorinhas de António Nobre)




AS ANDORINHAS DE ANTÔNIO NOBRE 

 

—Nos
—fios
—ten
sos 

—da
—pauta
—de me-
tal 

—as
— an/
do/
ri/
nhas
—gri-
tam 

—por
—fal/
ta/
—de u-
ma
—cl'a-
ve
—de
—sol
 

Cassiano Ricardo

 .

4.1.23

Roberto Juarroz (Talvez a vida)




(6)

 

Tal vez la vida sea una copia
de un proceso que se cumple en otra parte.

Tal vez vivamos solo en un espejo
o en la tibia granulación de una pantalla.

Tal vez haya otras copias.

Tal vez la vida sea tan sólo
la copia de una copia.

Roberto Juarroz

 

 

Talvez a vida seja uma cópia
de um processo que se cumpre em outro lugar.

Talvez se viva só num espelho
ou no grão indiferente duma pantalha.

Talvez haja outras cópias.

Talvez a vida seja apenas
a cópia de uma cópia.


(Trad. A.M.)

.

3.1.23

José Antonio Martínez Muñoz (Beatus ille)




(BEATUS ILLE)

 

bien-
aventurado

que conservas el
habla

bien-
aventurado

que oyes que-
brarse el
vidrio
de las almas

donde ardió
la hoguera de la tribu
en la ceniza fría
en la oquedad
húmeda del mundo
se oficia la nada

José Antonio Martínez Muñoz

 

 

bem-
aventurado
tu

que conservas a
fala

bem-
aventurado
tu

que ouves a que-
brar-se o
vidro
das almas

onde ardeu
a fogueira da tribu
na cinza fria
na ocuidade
húmida do mundo
o nada se oficia


(Trad. A.M.)

 

>>  Puentes de papel (recensão- J.L.Morante) / Un camino en el aire (outra- S.Mondéjar)

.

 


1.1.23

A.M.Pires Cabral (Malta revisitada)




MALTA REVISITADA

 

Eu podia falar de muitas terras. Escolho Malta.
A ela torno meus passos afluentes.
Percorro a quelha única, observo
um homem lavrando em falso na encosta defronte. 

Converso com um velho. Agita no ar uma mão seca
 – 
um trôpego utensílio –
e explica resignado por que Malta é pequena,
as casas negras e o chão de lama. 

Examino o adro tosco, o túmulo da lenda.
Imagino cobra e homem coabitando
– 
em tempos muito antigos, quando Malta
nunca se envergonhava da sua pequenez. 

Entro à capela, passo-lhe em revista
os temidos carcomidos santos,
as gratas tábuas de milagres, os livros
do culto, com cheiro a rato e a sacristia; 

Maravilho-me da arte elementar
que pintou tais anjos, tais demónios,
e dos excessivos azulejos
que de importuna cor vibram no ar fechado. 

Visto a escola, com prévio arrepio.  Tenho que subir
a um pardieiro nu e perfurado.
No quadro em férias, uns restos de deveres.
Sobre a mesa da mestra, um cachecol. 

Das crianças, sinais certos, comoventes:
uma folha rasgada, uma lousa, um nome na carteira...
Ali detêm seus lugares seis crianças:
seis bichos sonhadores seu tempo hipotecado. 

Malta! Que força gregária em ti existe,
para com laço tenacíssimo prenderes
duas dúzias de longínquos corações?
Que força, que prisão é essa que 

também a mim sitia e desatina?
Revisito Malta e é como visitar
um tão casto lugar como uma furna,
impassível de presente e de futuro, 

um lugar bom para morrer em combate,
um lugar mau para estar de olhos abertos,
oh! nunca um neutro lugar para conhecer
 – 
um trágico lugar. 

Abandono Malta refeito até à mágoa,
deixo-a intacta e preta em seu lugar,
comovo-me ao volante de um TS.
(Que juros cobrou Malta da minha comoção?)
 

A. M. Pires Cabral

 .