1.1.23

A.M.Pires Cabral (Malta revisitada)




MALTA REVISITADA

 

Eu podia falar de muitas terras. Escolho Malta.
A ela torno meus passos afluentes.
Percorro a quelha única, observo
um homem lavrando em falso na encosta defronte. 

Converso com um velho. Agita no ar uma mão seca
 – 
um trôpego utensílio –
e explica resignado por que Malta é pequena,
as casas negras e o chão de lama. 

Examino o adro tosco, o túmulo da lenda.
Imagino cobra e homem coabitando
– 
em tempos muito antigos, quando Malta
nunca se envergonhava da sua pequenez. 

Entro à capela, passo-lhe em revista
os temidos carcomidos santos,
as gratas tábuas de milagres, os livros
do culto, com cheiro a rato e a sacristia; 

Maravilho-me da arte elementar
que pintou tais anjos, tais demónios,
e dos excessivos azulejos
que de importuna cor vibram no ar fechado. 

Visto a escola, com prévio arrepio.  Tenho que subir
a um pardieiro nu e perfurado.
No quadro em férias, uns restos de deveres.
Sobre a mesa da mestra, um cachecol. 

Das crianças, sinais certos, comoventes:
uma folha rasgada, uma lousa, um nome na carteira...
Ali detêm seus lugares seis crianças:
seis bichos sonhadores seu tempo hipotecado. 

Malta! Que força gregária em ti existe,
para com laço tenacíssimo prenderes
duas dúzias de longínquos corações?
Que força, que prisão é essa que 

também a mim sitia e desatina?
Revisito Malta e é como visitar
um tão casto lugar como uma furna,
impassível de presente e de futuro, 

um lugar bom para morrer em combate,
um lugar mau para estar de olhos abertos,
oh! nunca um neutro lugar para conhecer
 – 
um trágico lugar. 

Abandono Malta refeito até à mágoa,
deixo-a intacta e preta em seu lugar,
comovo-me ao volante de um TS.
(Que juros cobrou Malta da minha comoção?)
 

A. M. Pires Cabral

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