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6.11.23

Vitorino Nemésio (Outro testamento)




OUTRO TESTAMENTO 

 

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis. 

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos. 

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação. 

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência. 

Quando eu morrer...
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei. 

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me – só horizonte – para o mar.
 

Vitorino Nemésio

 .

24.3.20

Vitorino Nemésio (Retrato)




RETRATO



Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.
Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo, Grego, Grego!
Homem, seja onde for.
Romano na ambição,
Oriental no ardil,
Latino na paixão,
Europeu por subtil:
Homem sou, homem só
(Pascal: «nem anjo nem bruto»):
Cristãmente, do pó
Me levante impoluto.


Vitorino Nemésio

.

12.9.16

Vitorino Nemésio (A nascente)





A nascente, aquele atrevimento de Cíbele queimada ia muito mais longe, e floria laranjeiras, enchia de ouriços os pequenos soutos de castanheiros serviçais, estendendo-se, para o norte, em folhas de terras de semeadura e, depois dos ‘roedoiros’ ou pascigos mais pobres, nos pastos dormentes que alimentam de queijo a rua da Prata.
Ao sul, para variar – as vinhas dos Casteletes, naquela quadra do ano já sem um bago ou uma folha, reduzidas a um fio de seiva adormecido nas varas agarradas aos bicos sangrentos do ‘biscoito’.



VITORINO NEMÉSIO
Mau Tempo no Canal
(Pastoral)

.

9.9.16

Vitorino Nemésio (Na Urzelina)





Os primeiros dias do desterro de Margarida correram suaves na Urzelina.

Bem na Urzelina, não.

A casa do capitão José Urbanino – como a conheciam ainda – ficava um pouco retirada da linha da povoação, apontando com os telhados baixos e longos, com a sua eira e o engenho, na direcção da “Serra” – a Serra vaga e toda lombar de São Jorge, mãe de milhares de vacas que parecem encarregadas de berrar de dor por ela e de milhões de vitelas enterradas no seu seio de fogo, virgens do garfo do gourmet.



VITORINO NEMÉSIO
Mau Tempo no Canal
(Pastoral)

.

6.9.16

Vitorino Nemésio (Ao poente)





Ao poente estendia-se a terra lambida e negra que o grande respiradoiro de repente aberto na ilha amontoara ali – a Queimada – com um ar de capuz de penitente envolvido num crime fantástico, e que por isso mesmo o povo chama nas ilhas “mistério”, pois todas elas são dadas a esse fadário telúrico que não teve Abel nem Caim.

A vegetação, porém, começava a ganhar o duelo travado há mais de um século entre aquele borralho negro e as forças escondidas no chão; e a urzela, o pinheiro, a ruivinha que pinta os queijos e as saias, o incenseiro da florinha cerosa e de baga melada vestiam de folhas e de pássaros a desesperada solidão.



VITORINO NEMÉSIO
Mau Tempo no Canal
(Pastoral)

.

30.3.13

Vitorino Nemésio (Arte poética)





ARTE POÉTICA



A poesia do abstracto...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
a exaltação de cada momento
é melhor.
Quando sopra o vento
há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
a primeira fogueira,
apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor...
Uma ideia
só como sangue de problemas;
No mais, não,
não me interessa.
Uma ideia
vale como promessa
e prometer é arquear
a grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
e uma pergunta é dolorida
quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
secura;
Perde -
e diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia...
Por isso, não:
nem o abstracto nem o concreto
são propriamente poesia.
A poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.


Vitorino Nemésio

.

2.5.09

Vitorino Nemésio (Outro testamento)









OUTRO TESTAMENTO






Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.



Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.



Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.



Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.



Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.



Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.



Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.




Vitorino Nemésio


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9.4.09

Vitorino Nemésio (Fava ou recordações)








(Fava ou recordações…)






Que rico dia para semear seja o que for: fava ou recordações!

Para a fava começa a ser tarde, que já se vêem campos aflorados de faveirinhas tímidas, ainda afogadas pela terra empapada e pelo trevo.

Mas para recordações é sempre tempo.

É só meter a mão no saco e tirar.

Quanto mais do fundo, melhor!

As sementes fundeiras são menos arejadas, menos passadas ao crivo; e, assim, é sempre possível que venha no meio do grão estreme alguma papoila ou ervilhaca.

Quem disse que as searas sem monda são as mais proveitosas?

Uma papoila encarnada alegra sempre um trigal; e, quanto à ervilhaca, se não e bonita em seara, é bem-vinda na joeira ao dedo da escolhedora.

Se não houvesse ervilhacas nos granéis, haveria joeiras e joeireiros?

Para quê mós e moleiros senão para se roubar um pouco nas maquias?

A virtude não floresce sem algum pecado ao lado.

O mal e o bem integram o universo moral.




- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (Freiras da Praia).





Consultar: DGLB (bio-biblio-excertos-linques) / Revista da Armada (Nemésio e o mar)




27.3.09

Vitorino Nemésio (Tovim, Coimbra)









(Tovim, Coimbra)





Tovim, Coimbra.

Está um tempo torvo, gelado.

Chove a potes.

As oliveiras molhadas parecem chorar a sua viuvez de azeitona.

Mas quando vem um olho de sol e a terra enxuga, as cavas desatam os fumozinhos do húmus e tudo parece desentranhado em promessas.

O vale é verde, sim, mas distante…

A esta hora os toros de pinheiro estarão mais descascados, talvez com barbas de líquenes.

Um silvo de locomotiva abala a montanha na direcção dos povoados e sentem-se os porquinhos grunhir de regalo no cortelho, com os róseos focinhos na água quente, grossa dos mimos de farinha.

Qualquer dia vão-lhes ao chiadoiro; entretanto, cevam e fossam, felizes.

A vida animal parece ditosa ao homem saudoso e mísero, carregado de responsabilidade, de recordações, de projectos.

Só o verde dos pinhais e das culturas o aquieta e reconforta.

Oiço cavar.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (Freiras da Praia).


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8.3.09

Vitorino Nemésio (Caçadores, ainda)






(Caçadores, ainda…)




Fui sempre traseiro em tudo…

Caçador de saudades não é feito para mandar grãos de chumbo ao peito de codornizes.

Meu tio e meu compadre bem me davam o exemplo agachando-se por trás das paredes, de sobrancelha tensa ao rés dos ligadoiros, o cano da espingarda disfarçando o seu gris nas pedras silenciosamente acamadas ao jeito do enfiamento.

Eu lá ia com eles até ao sainte da vila, aos primeiros restolhos ainda muito vigiados pelo passo das carroças de lenha, mais chocalheiras que matracas.

Mas, ao subir da canada, precisamente quando os bandos das calhordas começavam a desenvolver-se no céu como as peças de pano que meu pai rasgava bruscamente à mão, só com uma talhadela de tesoura - dava-me uma quebreira, uma lassidão sem nome.

E, com o passo mais lesto e fofo que meu tio ou meu compadre à saga do esquivo galinheiro, batia em direcção à capoeira doméstica.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (Um tiro falhado).


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23.2.09

Vitorino Nemésio (Caçadores)









(Caçadores…)





Conhecia-se o tempo bom pelo madrugar das matilhas e pelo bater da bota cardada rente às bermas da estrada.

Um cheirinho a coiro e a cotim misturava-se ao relento das vendas acabadas de abrir.

Experimentando as culatras, os expedicionários baforavam as primeiras fumaças do dia, com que a esperança da morte desportiva prefigurava no ar imaginárias chumbadas.

A canzoada, sem precisão de trompa para acusar o alerta, vinha farejar os coelhos cruzados no melhor do dia: o momento da tensão da partida, em que todo o mundo parece um coelho pendurado pelas pernas.

E tudo se passava tão longe da mísera realidade da ilha sulcada de grutas semeadas de bosta seca e de galhaduras de reses outrora arrastadas no enxurro, que Tejo, Mondego, Lis (pegara a moda corográfica no chamadoiro dos cães) não eram rios regando uma pátria ancestral e nebulosa, mas perdigueiros legítimos lambendo as canelas de seus donos.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (Um tiro falhado).


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6.2.09

Vitorino Nemésio (Buarcos, ainda)







(Buarcos, ainda…)




Na tarde por um pouco outoniça, cheia do pó das tamargueiras, deixo o banheiro em paz e sigo a orla da praia, alisada e deserta até ao forte.

Esta gente da costa é durázia e insistente.

O tempo escreve-lhe na pele como em papel pautado.

As caras encortiçadas vão fechando o segredo do viver, os olhos vão-se orlando de resistência e duração, os dedos engrossam e apertam o cigarro fumado até à ponta, último lume que os interessa quando já quase tudo se apagou.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (O lagosteiro do lugre).


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23.1.09

Vitorino Nemésio (Buarcos)



. . . . . . [Jorge Rodrigues]





(Buarcos)






Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno - diz o ditado.

Mas só à borda do mar se faz (quando faz) o dito certo.

Anos há que trazem a amostra do Outono ao arrepio do horizonte.

Uma primeira andorinha deserta o beiral encalmado da casinha do pescador.

Já não se sabe bem se é a que arribou em Março ou a que ela própria chocou.

Filhas e mães, na espécie, têm quase a mesma envergadura, irmanam-se no voo e nas voltas à busca do cibo.

O vento ponteiro à praia de Buarcos arrepiou os juncos e as tamargueiras empoadas na casca da estrada troada pelas carroças do peixe e pelos carros de bois da rede.

Já abana os toldos remendados das barracas de banho pobres e, pela terra dentro, nos campinhos de milho encamisado, um esboço de tufão do equinócio cria uma intimidade outoniça nas figueiras sujas de pó.

Voltarão ainda as calmas do Agosto continental e do Setembro das colheitas, mas os céus de pérola e chumbo já aí estão planeados: as malhas do banhista já servem para recatar a pele susceptível.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Histórias de Mateus Queimado (O lagosteiro do lugre).




4.1.09

Vitorino Nemésio (Azorean torpor)









(Azorean torpor…)





Hoje madruguei em Angra, a velha cidade açoriana ainda adormecida no seu bioco de névoas.

Não é o nevoeiro conhecido das nossas latitudes continentais europeias, nem o nevoeiro londrino, envolvente e raso ao solo, que refrange a luz a amarelo e se faz solidário com tudo.

É uma massa de vapor de água esparso em véus, que se ajeitam às formas arredondadas dos montes de pedra-pomes e se esparramam aqui e acolá em estratos – ora movediços, ora estáticos - compondo de repente uma espécie de campânula sobre a ilha.

Essa tampa de terrina tanto pode abafar-nos por uns dias como durar apenas uma manhã ou uma tarde - ou, ainda, resolver contrair-se e cobrir só um recanto do ambiente, e finalmente dissipar-se, deixando em seu lugar um amplo azul-celeste, cortado a tons de opala, que uma ou outra nuvem leitosa e meio esvaída vem manchar.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, 1956, Segundo corso (Os moinhos do donatário).
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5.12.08

Vitorino Nemésio (Lagoa do Negro)







(Lagoa do Negro)




Com cerca de vinte anos de raiz na ilha Terceira, eu nem ouvira sequer falar na lagoa do Negro, quanto mais enxergá-la!

E, contudo, embora aqui levasse uma meninice sedentária, algumas vezes passara pela estrada central, do Sul ao Norte da ilha, onde, a uns dois terços do caminho de Angra aos Biscoitos, por uma leve ruga aberta no Pico da Bagacina, se alcança esse magnífico bebedoiro e banheira do gado seco da ilha.


- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, Segundo corso (A Lagoa do Negro), 1956.


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23.11.08

Vitorino Nemésio (As cidades dos Açores)





(As cidades dos Açores…)




As cidades dos Açores não foram urbes traçadas a rego de arado, nem empórios crescidos em embocaduras de rios férteis, nem aglomerados feitos em arraiais de feiras ou em grandes nós de comunicações terrestres naturais.

De nove ilhas que conta o arquipélago só duas tiveram durante quatro séculos o timbre de cidade: a Terceira e S. Miguel.

Angra e Ponta Delgada cresceram primeiro como fixadores das populações dotadas de maior área insular, e logo como chaves de situações geográficas mais acessíveis e demandadas.

Das ilhas maiores só uma - o Pico - não chegou a atingir densidade citadina.

O seu dispositivo montanhoso maciço (inútil farol de noite lhe chamou Chateaubriand), a porosidade do seu solo pouco propício à agricultura e impróprio para a pastorícia de prados especializaram-na na pesca, no vinho e nas frutas - três géneros que, por si sós, dificilmente geram mesteirais e mercadores, ou seja, o húmus dessa coisa febril e às vezes monstruosa que se chama uma cidade.



- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, Primeiro corso (Corisco), 1956.

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15.4.08

Vitorino Nemésio (A concha)






A CONCHA




A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.


Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.


E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.


A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.



Vitorino Nemésio




Fonte: Jornal de Poesia

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Antes, aqui: Loa / Um verso

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11.4.06

Um verso (12)









Um verso de Nemésio
(este também tem muitos):




“O tempo gasta a minha voz como se fosse o seu pão”.


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16.3.06

Vitorino Nemésio (Loa)





LOA




Meu Menino Jesus dos triguenhos no prato,
Não enxugues a tua lágrima de vidro,
Não apagues a tua estrela de prata suspensa no quarto ainda morno,
Não deixes envelhecer os velhos tios de retábulo
Ajoelhados em torno:
Deixa estar as palhinhas urinadas no estábulo,
Que a chuva cheira bem e o pão tufa no forno.
Dorme, Menino Jesus, aquele milho amarelo
Que o Joaquim Pacheco secou na escuridão do seu muro,
E manda um navio de nevoeiro
Ao poeta que embarcou no FunchalDeixando o lenço de sua mãe molhado no último adeus.
Anda, Menino Jesus, e não me queiras mal
Se eu te disser que assim é que te sinto Deus.
Manda o navio de nevoeiro
Pela primeira vaga que vires redonda e rebentada:
Tua mão outra vez a atira contra a noite,
Como se não tivesse batido nessa grande praia parada.
E deixa as minhas faltas à missa,
Esquece os pontos fracos da minha velha teologia,
E o orgulho, a razão, o materialismo passageiro…
Mandes tu pelo mar o navio de nevoeiro!



VITORINO NEMÉSIO
O Bicho Harmonioso
(1938)

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18.1.06

Um verso (4)






Um verso de Nemésio
(se bem me lembro, Vitorino):




“Com medo de o perder, nomeio o mundo”.

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