30.6.22

David Mayor (Direito fundamental)




DERECHO FUNDAMENTAL

 

Un amigo es agua para beber,
cierta manera de pedir un vaso, el grifo
que se abre, las líneas de un río
en el que sumergirse
a leer el claro lado de la vida.


David Mayor

 

Um amigo é água de beber,
certo modo de pedir um copo, a torneira
que se abre, o leito de um rio
em que mergulhar
a ler o claro lado da vida.


(Trad. A.M.)

.

29.6.22

Roger Wolfe (Noite alta)



Es tarde ya en la noche
y la playa está desierta.
Rompe el mar
sobre las rocas.
Un aire cálido,
espeso de salitre
y de recuerdos,
me baña la cabeza.
Cierro los ojos.
Inhalo.
Me dejo llevar.
Y luego pienso,
como casi siempre
que me pasan estas cosas,
en Proust.
Pero no he leído
a Proust.
Qué importa.
La vida es bella.
Quién necesita
a Proust.


Roger Wolfe

 

 

Noite alta
e a praia deserta.
O mar quebra
nas rochas.
Um ar quente,
espesso de salitre
e recordações,
molha-me a cabeça.
Fecho os olhos,
inspiro,
deixo-me levar.
E depois penso,
como sempre que isto
me acontece,
em Proust.
Mas eu nunca li
Proust.
Que importa,
a vida é bela,
quem é que precisa
de Proust?

(Trad. A.M.)

 .

27.6.22

João Cabral de Melo Neto (Contam de Clarice)


 


CONTAM DE CLARICE LISPECTOR

 

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?


João Cabral de Melo Neto

 .

25.6.22

Rocío Wittib (O que não existe)



lo que no existe
lo que nunca ha sido
lo que no será
sin embargo perdura

 

 Rocío Wittib

 

 

o que não existe
o que nunca foi
o que nunca será
perdura no entanto

 
(Trad. A.M.)

 .

24.6.22

Rocío Acebal Doval (Diz-me)



DIME

 

Dime si aún conservan algo
de cierto los poemas que escribimos
cuando todo lo que sabíamos del mundo
tenía que ver con el amor.

Rocío Acebal Doval

 

 

Diz-me se ainda conservam algo
de verdadeiro os poemas que escrevemos
quando tudo o que sabíamos do mundo
tinha a ver com o amor.


(Trad. A.M.)

.

22.6.22

Paulo Henriques Britto (Ecce homo)



ECCE HOMO

 

Não ser quem não se é é coisa trabalhosa. 
Exige a disciplina austera e rigorosa 

de quem, achando pouco simplesmente ser, 
requer o luxo adicional de parecer. 

As essências enganam, e o eu é tão escasso 
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço, 

e nada como a negação da negação
pra efetuar tão delicada operação. 

E pronto: está completo. O homem mais o andróide, 
imune a suave mari magno Schadenfreude

ser e não ser na mais perfeita sintonia. 
Use e abuse. A coisa vem com garantia.


Paulo Henriques Britto

 

 

>>  Antonio Miranda (14p) / Poemargens (9p) / Alguma poesia (5p)

.

 


20.6.22

Raúl Nieto de la Torre (Ninguém sabe)



NINGUÉM SABE ONDE LEVA UMA ESCADA

 


Se posso, eu corro pelas escadas,
é o modo mais rápido de preencher o vazio que vai
de um piso para outro, de um dia para outro,
de uma página em branco a outra página em branco,
onde uma é a neve e a outra apenas o frio da neve.
Quem podia distingui-las sem abrir bem os olhos
sem subir os tristes degraus do mesmo edifício,
uma vez e outra vez,
um dia e outro dia,
até esses degraus serem pequenos precipícios
e meus tropeções voos falhados, mas voos ao fim
e ao cabo, com a emoção do voo
e a impressão de erro de rumo de um homem livre?

Sim, amigos,
se posso, eu corro pelas escadas
e evito o elevador,
sua intimidade aterradora,
sua luz eléctrica pendendo do tempo como baba luminosa,
e evito o tipo amável que me abre a porta
para que eu o acompanhe na sua miséria,
com meu silêncio de poemas não ditos,
porque um poema no elevador
é um esconjuro que se volta contra nós mesmos.

Se eu posso, escolho o sonho de subir as escadas,
como escolhi algumas vezes não matar ninguém
- as escadas por onde caíram os berlindes da criança
e que ele desceu para os apanhar,
e aí olhou para cima para ver as cuecas ao futuro,
mas o futuro não tinha cuecas
(Os berlindes aqui simbolizam os planetas
e o olhar para cima a busca de Deus
e a queda a sua morte, mas quem é a criança?)

Às vezes escuto alguma voz
e então detenho-me,
congela-se a imagem da criança e do homem
e do elevador entre dois andares,
uma voz que me deixa como gelado,
que me chama por esse nome que não dissemos a ninguém
e me grita que não há mais andares,
que ali acaba a minha vida,
que mesmo que eu queira continuar a subir
não posso ir mais acima.

RAUL NIETO DE LA TORRE
Los pozos del deseo
(2013)

 .

19.6.22

Roberto Juarroz (Desbaptizar o mundo)



(40)                      

Desbautizar el mundo,
sacrificar el nombre de las cosas
para ganar su presencia.

El mundo es un llamado desnudo,
una voz y no un nombre,
una voz con su propio eco a cuestas.

Y la palabra del hombre es una parte de esa voz,
no una señal con el dedo,
ni un rótulo de archivo,
ni un perfil de diccionario,
ni una cédula de identidad sonora,
ni un banderín indicativo
de la topografía del abismo.

El oficio de la palabra,
más allá de la pequeña miseria
y la pequeña ternura de designar esto o aquello,
es un acto de amor: crear presencia.

El oficio de la palabra
es la posibilidad de que el mundo diga al mundo,
la posibilidad de que el mundo diga al hombre.

La palabra: ese cuerpo hacia todo.
La palabra: esos ojos abiertos.


Roberto Juarroz

[Life vest under your seat]

 

 

Desbaptizar o mundo,
sacrificar o nome das coisas
para lhes ganhar a presença.

O mundo é um chamamento nu,
uma voz não um nome,
uma voz com seu eco às costas.

E a palavra do homem é uma parte dessa voz,
não um sinal com o dedo,
nem um rótulo de arquivo,
nem um perfil de dicionário,
nem uma cédula de identidade,
nem uma bandeirola a assinalar o abismo.

O ofício da palavra,
para além da pequena miséria
e da pequena ternura de designar isto ou aquilo,
é um acto de amor, criar presença.

O ofício da palavra
é a possibilidade de o mundo dizer o mundo,
a possibilidade de o mundo dizer o homem.

A palavra, esse corpo para tudo.
A palavra, esses olhos abertos.


(Trad. A.M.)

.

17.6.22

Armindo Rodrigues (O sol na água pousa)



O SOL NA ÁGUA POUSA



Alado, o sol na água pousa 
e dele treme a água amedrontada, 
que a ardente imagem lhe devolve em rosa 
e em si própria um distante sonho ousa 
de céu amargo, que não sonha nada. 


Armindo Rodrigues

 .

15.6.22

Piedad Bonnett (Ofertório)



OFERTORIO

 

Como un regalo acepto tu silencio,
con todo
lo que contiene su rigor de roca.
Con todas las preguntas que caben en su círculo,
su arañazo, su lágrima y su vientre
de tambor que golpeo
y donde sólo el golpe me responde.
Como algo que es,
que no puede no ser
acepto tu silencio.
Con todo lo que tiene de respuesta,
de grito figurado, de impotencia,
de palabras cosidas con largos hilos falsos.

Porque todo
lo que un hombre quiere soñar cabe en el puño
cerrado del silencio.

Te ofrezco a cambio
todo el silencio que tu oído pide,
que tu corazoón pide,
y de puntillas
salgo de ti.
(Yo, que siempre he creído en las palabras).

 

Piedad Bonnett

 

 

Como um presente aceito o teu silêncio,
com tudo
o que contém seu rigor de pedra.
Com todas as perguntas que cabem no círculo,
seu arranhão sua lágrima e seu ventre
de tambor que bato
e onde só o bater me responde.
Como algo que é,
que não pode deixar de ser.
aceito o teu silêncio.
Com tudo o que tem de resposta,
de grito figurado, de impotência,
de palavras cosidas com longos fios falsos.

Porque tudo
o que um homem sonha cabe no punho
fechado do silêncio.

Ofereço-te em troca
todo o silêncio que pede teu ouvido,
que pede teu coração,
e saio de ti
em bicos de pés.
(Eu, que sempre acreditei nas palavras).


(Trad. A.M.)

.

14.6.22

David Mayor (Consciência de classe)



CONCIENCIA DE CLASE

 

Divido a los escritores entre los que no escriben  —mi padre,
 tornero fresador, era uno de ellos—
y los que no saben vivir sin escribir —aquí pongo a mi maestro:
Quijotes ambos adentrándose por caminos sin camino,
inmortales en su luz artificial y letra de imprenta,
siempre destronados por la mejor página que han leído,
siempre jóvenes y bellos pese al cruel tiempo de los días
y la parca que nos asombra,
siempre en un mundo que se derrumba.
No prefieren la vida al honor, ni por salvar la vida
pierden la razón de vivir que escribió Juvenal.
Me acompañan más por la actividad que por la creación,
más por la práctica que por la obra.
Con ellos sé de dónde vengo y adónde voy. 

Con el resto, por mucho oficio que tengan en la vida
y sus costumbres,
no atacaría Troya, no la defendería.

David Mayor

 

 

Divido os escritores entre aqueles que não escrevem
- meu pai, torneiro, era um destes -
e os que não sabem viver sem escrever – aqui conto o meu mestre:
ambos espécie de Quixotes, trilhando caminhos sem caminho,
imortais em sua luz artificial e letra de imprensa,
sempre destronados pela melhor página lida,
sempre belos e jovens apesar do tempo cruel,
sempre de pé num mundo em derrocada.
Não preferem a vida à honra, nem para salvar a vida
perdem a razão de viver de que falou Juvenal.
Acompanham-me mais pela actividade que pela criação,
mais pela prática do que pela obra.
Com eles sei donde venho e para onde vou.

Com outros, por muito ofício que tenham na vida e costumes,
eu não atacaria Tróia, nem a defenderia.


(Trad. A.M.) 


>>  Anton Castro (4p) / David Mayor (blogue) / Laura Spagnesi (tese e trad. ‘Conciencia de classe’)

.


12.6.22

António Cabral (Trás-os-Montes)



TRÁS-OS-MONTES

 

Trás-os-Montes é uma sombra pintalgada de sol
com um rio ao fundo
para disfarçar.


ANTÓNIO CABRAL
Emigração Clandestina
(1977)

.

10.6.22

Cecilia Casanova (Destino)




DESTINO


Ni el pájaro pese a sus alas
puede volar
más allá de lo escrito


Cecilia Casanova

 


Nem o pássaro apesar das asas
consegue voar
para além do escrito


(Trad. A.M.)

.

9.6.22

Miguel Veyrat (Testamento ológrafo)




TESTAMENTO OLÓGRAFO

 

Devuélveme Atienza tus colinas, 
el gris de los jirones con que tejes 
el chopo dolorido de la tarde. 

     Atienza verde vaguada 
de lágrimas cautivas 
que ahora son torrente. 

...tuvimos otras tardes muy distintas... 
    Por ejemplo: 
yo te repetía, cerca la boca 
de tu corazón de trigo 
               Atienza 
               Atienza 
               Atienza 
               Atienza mía 

casi siempre al partir, cuando el castillo 
erguía hacia atrás su sombra 
y su reproche. 


Hoy, ya dispuesto al gran viaje 
confieso que soñé con dormir entre otras tierras 
alimentar raíces diferentes 
iluminar distintas sementeras. 
Hoy, seguro de tu luz proclamo, ruego 
y pido: 
que dentro de un momento 
cuando muera 
alguien me recoja -no temáis 
que estoy ya tan liviano como 
un pájaro-
y me ponga aquí desnudo,
abierto en cruz y con la boca
contra tu mano de tierra.

     Así, serena mi alma en tu luz
bajo tu seno
aguardaré mi último desguace.


Miguel Veyrat

 

 

Devolve-me Atienza tuas colinas,
a cinza dos remendos com que teces
o choupo dorido da tarde.

Atienza verde talvegue
de lágrimas cativas
que já fazem torrente.

… outras tardes tivemos, bem diferentes…
               Por exemplo:
eu dizia-te, boca a boca
de teu coração de trigo
               Atienza 
               Atienza 
               Atienza 
               Atienza minha
quase sempre ao partir, quando o castelo
deitava para trás sua sombra
e censura.

Hoje, pronto já para a grande viagem
confesso que sonhei dormir noutras terras
alimentar outras raízes
iluminar outras sementeiras.
Hoje, seguro da tua luz, proclamo, peço
e requeiro:
que ao morrer dentro de instantes
alguém me recolha – sem problema,
que estou leve como um pássaro –
 e me deponha aqui desnudo
aberto em cruz e a boca
contra tua mão de terra.

Assim, de alma serena e em teu seio
aguardarei meu último alento.


(Trad. A.M.)

.

7.6.22

Amadeu Baptista (Sentido)



SENTIDO


Deixou de fazer sentido voltar
Para casa para comer sozinho,
Para dormir sozinho, para viver
Sozinho. Nenhum cão me espera, 

Nenhuma jarra onde tenhas posto
Um ramo de rosas amarelas, 
Um lenço perfumado, uma almofada
Em que tenham ficado as tuas marcas 

De sono agitado. Deixou de fazer
Sentido ter em frente este horizonte
De pedras que o mar já não contém, 

Este tecido de espuma a desfazer-se.
O que aqui ardia já não arde
E a noite é sempre longa e mutilada.
 

Amadeu Baptista

 .

5.6.22

Pedro A. González Moreno (Duas chamas)




(25)

 

Dos llamas siempre pueden
entrelazarse en una sola luz,
pero dos pieles tienen
sonidos muy distintos al rozarse,
son bordes diferentes de una misma distancia. 

Por eso la caricia es como un huésped
que llega y que se asoma pero nunca se queda;
un huésped, como el aire, condenado
a quedarse en el filo de todo lo que toca,
condenado a quedarse
a este lado del cuerpo que se llama intemperie.

Y por eso es invierno fuera de ti, por eso
hay escarcha en mis manos,
que querrían ahora
tocar -si se pudiera- tu memoria,
ser tan sólo una sombra vagando en tus recuerdos
y ver el mundo desde ti, tocarlo
desde ti; ser tan sólo
un oculto destello de la luz con que miras. 

 

PEDRO A. GONZÁLEZ MORENO
Calendario de sombras
(2005)

 

Duas chamas podem sempre
enlaçar-se numa só luz,
mas duas peles têm
sons bem diversos ao roçar,
são margens diferentes duma só distância.

Por isso a carícia é assim como um hóspede
que vem e assoma mas não permanece;
um hóspede, tal como o ar, condenado
a ficar no fio de tudo o que toca,
condenado a ficar
deste lado do corpo chamado intempérie.

E por isso é Inverno fora de ti, por isso
há geada nas minhas mãos,
que gostariam agora – se pudessem –
de tocar a tua lembrança,
ser uma sombra apenas vagando nas tuas recordações
e ver o mundo do teu prisma, tocá-lo
do teu lado; ser tão só
um oculto clarão da luz com que olhas.

(Trad. A.M.)

.

4.6.22

Pablo Neruda (Soneto LVXXIX)




SONETO LXXIX

 

De noche, amada, amarra tu corazón al mío 
y que ellos en el sueño derroten las tinieblas 
como un doble tambor combatiendo en el bosque 
contra el espeso muro de las hojas mojadas.

Nocturna travesía, brasa negra del sueño
interceptando el hilo de las uvas terrestres 
con la puntualidad de un tren descabellado 
que sombra y piedras frías sin cesar arrastrara.  

Por eso, amor, amárrame el movimiento puro, 
a la tenacidad que en tu pecho golpea 
con las alas de un cisne sumergido,  

para que a las preguntas estrelladas del cielo 
responda nuestro sueño con una sola llave, 
con una sola puerta cerrada por la sombra.
 

Pablo Neruda

 


À noite, amor, amarra teu coração ao meu
e que ambos em sonho vençam as trevas
como um duplo tambor combatendo no bosque
contra o muro espesso das folhas molhadas. 

Nocturna travessia, brasa negra do sono
interceptando o fio das uvas terrestres,
com a pontualidade de um trem desgovernado
que sem parar arrastasse a sombra, as pedras frias. 

Por isso, amor, ata-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate
com as asas de um cisne submerso, 

para que às perguntas estreladas do céu
nosso sonho responda com uma só chave,
com uma porta só, fechada pela sombra.
 

(Trad. A.M.)

 .

2.6.22

Almeida Garrett (Olhos negros)




OLHOS NEGROS

 

 Por teus olhos negros, negros,
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores...
E eles a dizer que não.
E mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são;
Que os azuis dão muita esp'rança,
Mas fiar-me eu neles, não.
Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim...
Nunca mais dizem que não.
 

Almeida Garrett

 .