20.6.22

Raúl Nieto de la Torre (Ninguém sabe)



NINGUÉM SABE ONDE LEVA UMA ESCADA

 


Se posso, eu corro pelas escadas,
é o modo mais rápido de preencher o vazio que vai
de um piso para outro, de um dia para outro,
de uma página em branco a outra página em branco,
onde uma é a neve e a outra apenas o frio da neve.
Quem podia distingui-las sem abrir bem os olhos
sem subir os tristes degraus do mesmo edifício,
uma vez e outra vez,
um dia e outro dia,
até esses degraus serem pequenos precipícios
e meus tropeções voos falhados, mas voos ao fim
e ao cabo, com a emoção do voo
e a impressão de erro de rumo de um homem livre?

Sim, amigos,
se posso, eu corro pelas escadas
e evito o elevador,
sua intimidade aterradora,
sua luz eléctrica pendendo do tempo como baba luminosa,
e evito o tipo amável que me abre a porta
para que eu o acompanhe na sua miséria,
com meu silêncio de poemas não ditos,
porque um poema no elevador
é um esconjuro que se volta contra nós mesmos.

Se eu posso, escolho o sonho de subir as escadas,
como escolhi algumas vezes não matar ninguém
- as escadas por onde caíram os berlindes da criança
e que ele desceu para os apanhar,
e aí olhou para cima para ver as cuecas ao futuro,
mas o futuro não tinha cuecas
(Os berlindes aqui simbolizam os planetas
e o olhar para cima a busca de Deus
e a queda a sua morte, mas quem é a criança?)

Às vezes escuto alguma voz
e então detenho-me,
congela-se a imagem da criança e do homem
e do elevador entre dois andares,
uma voz que me deixa como gelado,
que me chama por esse nome que não dissemos a ninguém
e me grita que não há mais andares,
que ali acaba a minha vida,
que mesmo que eu queira continuar a subir
não posso ir mais acima.

RAUL NIETO DE LA TORRE
Los pozos del deseo
(2013)

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