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11.3.25

Fernando Assis Pacheco (Não pude amar mais ninguém)




não pude amar mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso 

e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro

Fernando Assis Pacheco

 .

25.9.22

Fernando Assis Pacheco (Memórias do contencioso-1)



MEMÓRIAS DO CONTENCIOSO 


E sequem-se-me os dedos a cabeça estoire 
e não fique de tudo uma palavra 
se a maldição for tanta que eu te esqueça 

 e não reste sequer o chão e não de quantas ruas e não já reste a cidade
 e seja a memória deste homem um escárnio ocultado por quinze gerações de vindouros 
com seus cães que se deitam aos pés das pessoas 
e parecem adivinhar a linguagem monstruosa das narinas resfolegando 

 se a maldição for tanta e tão perfídia 
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça 


Fernando Assis Pacheco 


26.8.22

Fernando Assis Pacheco (Contas de cabeça)




CONTAS DE CABEÇA

 

Amar-vos inda mais que só vos amo
a vós parentes meus de minha casa
e mesmo se amianto ardera em brasa? 

a pata já no visgo se atezana
um dia que eu morrer quem é que chamo? 

o 115 não que mal atrasa
esse chumbo cravado numa asa
a vós açanarei do alto ramo? 

é costeio é açamo cai-se à vasa
gritar-vos inda mais que só vos amo?


Fernando Assis Pacheco

 .

19.6.21

Fernando Assis Pacheco (Bom rei Afonso)




BOM REI AFONSO

  

Lavava-se só de raro em raro
e só como o gato mas era um tal
furor entre as damas e suas aias
que se conta de uma dona Ilduara
Veilaz a filha do crego manco
tê-lo chamado um fim de tarde
no meio de forte trovoada
a Rendufe onde então demorava
para a comer (e recomer é claro)
nas três posições principais
o que ele fez com brio e recato
e isso atira para uma conta calada
mesmo em termos de História Pátria
e sem da Igreja o beneplácito
gritando ela ao fim de cada round
senhor senhor mais do que ao mel
vós a erva-babosa me cheirais

ah e tudo isto para fortalecer a alma!


Fernando Assis Pacheco

..

25.4.21

Fernando Assis Pacheco (Tentas, de longe)



TENTAS, DE LONGE

 

Tentas, de longe, dizer que estás aqui. 
Com passo triste caminha na rua o Outono.
E o meu coração debruça-se à janela 
a ver pessoas e carros, e as folhas caindo.  

Mastigo esta solidão 
como quando era pequeno e jantava 
diante dos pais zangados: 
devagar, ausente.

 
Fernando Assis Pacheco

.

11.8.20

Fernando Assis Pacheco (Poeta no supermercado)





POETA NO SUPERMERCADO


1
Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2
Um homem tem que viver,
e tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.
Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz - como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.


FERNANDO ASSIS PACHECO
Cuidar dos Vivos
(1963)

.

17.8.17

Fernando Assis Pacheco (Então agora vamos ficar sem o Ruy Belo?)




ENTÃO AGORA VAMOS FICAR SEM O RUY BELO



Quando morre um poeta é fatal a ANOP
«sempre em cima do evento» debita o seu telegrama
tantos anos uma «obra ímpar» etc.
foi assim com o Ruy Belo mas o flash
pedia para se não dar a notícia o que me levou
à conclusão irresistível de que mais uma vez este
se entretinha a reinar aos cowboys
ó Ruy tu mascarado de Jesse James o vingador vingando
as malas-artes da retórica idiota
o que me levou à conclusão irresistível de que
esperaria mais pormenores para «confirmação da informação»

seguiram-se telefonemas de recurso a localizar em férias
o João Miguel Fernandes Jorge não estava
no Bombarral em casa dos pais não estava na Consolação
Lisboa: ele próprio atende e diz
que o Ruy Belo foi-se em Queluz de não entende o quê
asma ou parecido há o problema do funeral quando
mas certamente para a aldeia «João» e ele
responde baixo «sozinho» «tinha vindo tratar de una papéis»
a porra da a triste da a caca da vida que levamos sacudida sobre os ombros
passa esse dia do telegrama da ANOP os jornais afinal noticiam
redijo setenta linhas que acompanho com uma chamada de primeira página em positivo sobre rede pensando muito na hipótese de um dia um colega meu sacar da máquina um telex ou ouvir ao bigophone olha o gajo marchou dá lá recados
e o chefe (o meu sucessor de carteira) breve a «duas colunas com foto» havendo apesar de tudo um certo cuidado porque era da «malta»
e tu que eras da malta não tive cuidado nenhum fui um coiro devia esmerar-me
devia mesmo esmerar-me

então agora ficamos sem o Ruy Belo


Fernando Assis Pacheco


.

2.1.16

Fernando Assis Pacheco (Pranto por Manuel Doallo)





PRANTO POR MANUEL DOALLO



Podia-se ter esborrachado qualquer 23 de Agosto
véspera do San Bartolomé e ele na moto
correndo de Vitoria para as mozas de Ourense
e para as tazas em que era ainda mais exímio

e deixa-se morrer unha serán poñamos
por caso desolada agora pai de filhos
a última queixa: que lhe doía um braço
em troques há tanto sacana que parece de ferro

vaite ó carallo ó morte que me levas
o meu primo galego Manuel Doallo
morte merdeira
coisa ruim de cinza e névoa e cinza

nem nunca nestas terras se me eu lembro
houve um outro rapaz de tanto garbo
como il que era cáseque um rei e querem
que eu o chore e ao coração coitelo?

barqueira que mo levas puta infame
eu berro e berro à soedá do rio


Fernando Assis Pacheco

[Cómo cantaba mayo]

.

22.6.15

Fernando Assis Pacheco (Elegia)





ELEGIA



Já não me lembra bem o pide Catarino
nem já chove como chovia nas manhãs da minha rua
nem haverá talvez cinco leitores o que se chama interessados
na vida que eu levava: um erro e um desperdício

eram tantas as mulheres enganando os meus passos
tão inclemente o estudo dos poetas antigos
que pensei concorrer à função pública
onde estaria de todos esses males ao abrigo

com 40 mil habitantes no melhor dos casos
a cidade tinha um ar modesto e a puxar para o triste
sempre os mesmos cães magros sempre a mesma gente lenta
o mesmo nevoeiro subindo em espiral do rio

nesse tempo ainda os meus pais eram da família
que depois perdi em anos consecutivos
e eu julgava-os imortais como deuses de luz clara
brilhando à mesa sobre a grande toalha de linho

nem tão-pouco pretendo aborrecer agora os meus filhos
com histórias dessa que enterrada está Coimbra
nós vamos no oco da onda ébrios de sal mordente
o que vem dar à praia é espuma fria e olvido


Fernando Assis Pacheco

.

2.5.14

Fernando Assis Pacheco (O dia em que nasci)





O dia em que nasci meu pai cantava
versos que inventam os pastores do monte
com palavras de lã fiada fina
cordeiro lírio neve tojo fonte

esta é uma velha história de família
para dizer como ele e eu chegámos
à raiz mais profunda do afecto
da qual nunca jamais nos separámos

nem Deus feito menino teve um pai
que o abraçasse e lhe cantasse assim
desde a primeira hora até ao fim

fui vê-lo ao hospital quando morria
olhos parados num sorriso leve
tojo cordeiro lírio fonte neve


Fernando Assis Pacheco


[Assirio & Alvim]


.

24.1.12

Fernando Assis Pacheco (Um tal F. A. P.)






UM TAL FERNANDO ASSIS PACHECO




Vivo com ele há anos suficientes
para poder dizer que o reconheceria
num dia de Novembro no meio da bruma
é como uma pessoa de família


adorava os pais mas tinha medo
quando zangados se punham aos gritos
e se chamavam nomes odiosos
não invento nada vi-o crescer comigo


chorava então desabaladamente
e eu com ele sentindo-nos perdidos
o cobertor puxado sobre a cabeça
seria trágico se não fosse ridículo


mesmo depois a noite que urinasse
no pijama era um protesto civil
encharcou assim grande parte das Beiras
não lhe perguntem se foi feliz


Fernando Assis Pacheco



[Sons da Escrita]


.

11.10.11

Fernando Assis Pacheco (Louvor do Bairro dos Olivais)






LOUVOR DO BAIRRO DOS OLIVAIS




Não tive nunca nada a ver com as
guitarras estudantes; eu vivia
num lento bairro da periferia
onde a chuva apagava os passos das

pessoas de regresso a suas casas
fazia compras na mercearia
e algum livro mais forte que então lia
já era para mim como um par d'asas

amigos vinham ver-me que eu servia
de ponche ou Madeira malvasia
para soltar as línguas livremente

um que bramava um outro que dormia
eu abria a janela e só dizia
ao menos estas ruas têm gente



FERNANDO ASSIS PACHECO
A Musa Irregular
ASA (1996)



[Antonio Cicero]


.

23.5.11

Fernando Assis Pacheco (A namoradinha de organdi)






A NAMORADINHA DE ORGANDI

 


Como na dança ritual dos patos colhereiros se te amei
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava


cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicínias
pensando numa cena infeliz à moda do Harold


eu sonhava contigo?
eu assoava-me ao pijama!


Fernando Assis Pacheco



.



1.4.11

Fernando Assis Pacheco (Mas agora que vai descer)






MAS AGORA QUE VAI DESCER  A NOITE NA MINHA VIDA





Triste de mim mais triste que a tristeza
triste como a mão que segura o copo
como a luz do farol esgaçando a névoa
triste como o cão manco
deixado na estrada pelos caçadores

triste como a sopa entretanto azeda
mais triste que a idiotia congénita
ou que a palavra ampola

triste de mim triste e perdido
entre duas ruas
uma que vai para o Norte outra para o Sul
e ambas cortadas aos peões
que não cooperam devidamente
(com este governo de merda é claro)

triste como uma puta alentejana
num bar de Ourense
que me viu à cerveja e lesta
me chamou compadre
vozes que a gente colecciona
a tarde triste os anos tristes

a grande costura da tristeza
do esterno ao baixo ventre

triste e já sem nenhum reparo
a fazer à metafísica
senão que é um défice
porventura do córtex cerebral



Fernando Assis Pacheco

.

20.10.10

Fernando Assis Pacheco (Seria o amor português)






SERIA O AMOR PORTUGUÊS



(Variações sobre um fado)



Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.


Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.


Nada me importa, mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.


Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.


Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?




FERNANDO ASSIS PACHECO
Cuidar dos Vivos
(1963)



[Luz & Sombra]

.

17.8.10

Fernando Assis Pacheco (F.A.P. fecit)






F.A.P. FECIT




Este livro é teu que me aturaste
desvairos saüdades amorios
desde o primeiro mal cozinhado verso
ó cúmplice
um que me lê com respeito e vagar
a quem devo chamar prestante amigo
neste mundo de tanta cabronada

o livro é o que é nenhum enleio
nenhuma assinatura a baixo preço
não estou nessa tal lista e tem também
a confissão banal dos mil cagaços
de morrer (dores intercostais músculos
caindo na barriga da perna)
como se eu fosse à noite um filho terno
e teu, leitor, que o não desamparaste



Peçam grandiloqüência a outros
acho-a pulha no estado actual da economia



E não sublinhem o que não escrevi



A ti compadre irmão saúdo e já termino
com só o fósforo duma estrela
na lixa do fim da tarde




Fernando Assis Pacheco



.