Mostrar mensagens com a etiqueta Eça de Queiroz. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Eça de Queiroz. Mostrar todas as mensagens

10.8.16

Eça de Queiroz (O Doutor)





Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável, mas de aspecto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o Doutor.

Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra, persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos, como num profundo trabalho cerebral.

Respeitador fervente das instituições, das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, «tem V. Exª carradas de razão»; que era geralmente considerado como um excelente moço.



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

.

7.8.16

Eça de Queiroz (Dois partidos)





Mas havia entre os Reformadores e os Nacionais ideais opostos? (...)

Em Religião, que eram os Reformadores? Católicos, Apostólicos, Romanos. E os Nacionais? Idem.

Em Política, o que eram os Reformadores? Conservadores constitucionais. E os Nacionais? Idem.

Não tinham ambos o mesmo amor pela dinastia? – O mesmo.

Não eram ambos sustentáculos dedicados da propriedade? – Dedicadíssimos.

Não desejavam ambos a estrita aplicação da Constituição, só da Constituição, de toda a Constituição? – Desejavam-na ambos, ardentemente.

Não eram ambos centralizadores? Eram.

Não estavam ambos firmes na manutenção de um exército permanente? Firmíssimos, ambos.

Não tinham ambos um nobre rancor aos princípios revolucionários? Um rancor nobilíssimo.

E em questões de Instrução, de Imprensa, de Polícia, não tinham ambos as mesmas óptimas ideias? Absolutamente as mesmas.

Não eram ambos patriotas? Fanaticamente!



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

.

4.8.16

Eça de Queiroz (Um ministério gasto)





O ministério Cardoso Torres, ao fim da última sessão parlamentar, estava gasto.

Esta expressão a que eu chamaria, se me não contivesse o respeito, a «gíria constitucional», refere-se a um fenómeno venerável e repetido, que eu nunca compreendi bem, apesar das explicações benévolas que me foram dadas por conservadores, republicanos e cépticos.

Há ministérios que se gastam.

E todavia, esses ministérios, como os outros, administram o tesouro com honestidade, fazem o expediente das secretarias com suficiente regularidade, mantêm no país uma ordem benéfica, não oprimem nem a imprensa nem a consciência, são respeitosos para com o Chefe de Estado, acompanham com dignidade, ao Alto de S. João, todos os defuntos ilustres, falam nas Câmaras com honrosa correcção, são na vida privada cidadãos estimáveis, e no entanto – ao fim de alguns meses desta rotina honesta, pacata e higiénica – gastam-se.



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

.

1.8.16

Eça de Queiroz (Uma nódoa)






O Estandarte dizia:

«É imenso como torpeza; mas nós aplaudimos, porque um ministério que assim procede, inspira, ipso facto, um nojo genérico.

Este governo não há-de cair – porque não é um edifício. Tem que sair com benzina – porque é uma nódoa!»



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos


.

29.7.16

Eça de Queiroz (O ministério bexigoso)





O ministério antecedente, denominado Ministério Bexigoso (de cinco ministros, coincidência singular, três eram picados das bexigas) não caíra segundo os métodos parlamentares: aluíra, sumira-se.

Em plena maioria, sem razão, sem discussão, de repente, desaparecera – caso singular, depois, muitas vezes repetido, e comparável à conhecida catástrofe da corveta Saragoça.

A Saragoça, num dia delicioso de Junho, num mar tão calmo como uma larga taça de leite, sem borrasca, sem vento, caiu no fundo do mar.

O casco, parece, estava tão podre que se dissolveu como açúcar numa xícara de chá.

Um indivíduo que estava na esplanada vendo-a dar uma curva magnífica sob um sol resplandecente, abaixara-se para apertar um atilho do sapato, e, ao erguer-se, não viu mais a corveta: sondou ansiosamente com o óculo o horizonte azul-ferrete; olhou aflito em redor, pela praia; mesmo, num gesto grotesco mas muito naturalmente instintivo, apalpou sofregamente as algibeiras: – nada!

O mar brilhava sereno, azul, imóvel, coberto de sol.



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos


.

26.7.16

Eça de Queiroz (O Desembargador Amado)





O Sr. Desembargador Amado era de uma boa família do Norte e tivera uma carreira singularmente fácil.

Dizia-se dele: «aquele deixou-se ir e chegou».

Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até à sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa.

Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente.

Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.

O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal: – Aquele ventre que ali vem, é o Amado!



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos


.

23.7.16

Eça de Queiroz (Ele há questões terríveis)





O Conselheiro Gama Torres, colocando-se no meio da casa, as pernas afastadas, o ventre saliente, as mãos atrás das costas, fitava o soalho e bamboleando o crânio fecundo, murmurava surdamente:

- Ele há muitas questões!... Há questões terríveis. Há a prostituição... o pauperismo... Ele há muitas questões... (...)

- Ele há muitas questões! Questões terríveis: o pauperismo, a prostituição! São grandes questões! Questões terríveis!... (...)

Nunca esquecerei a terrível impressão que me deixou aquele grande homem, de pé no meio da sala, esgazeando o olhar em redor e dizendo cavamente:

- Os senhores podem crê-lo, nem tudo são chalaças; ele há questões terríveis... A prostituição, o pauperismo, o ultramontanismo... Questões terríveis!



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

.

20.7.16

Eça de Queiroz (A universidade)





A primeira vantagem da Universidade, como instituição social, é a separação que se forma naturalmente entre estudantes e futricas, entre os que apenas vivem de revolver ideias ou teorias e aqueles que vivem do trabalho.

Assim, o estudante fica para sempre penetrado desta grande ideia social: que há duas classes – uma que sabe, outra que produz.

A primeira, naturalmente, sendo o cérebro, governa; a segunda, sendo a mão, opera, e veste, calça, nutre e paga a primeira.


EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

.



17.7.16

Eça de Queiroz (Poetas)





Um poeta não pode ser ministro do Reino, mas pode muito bem ser ministro da Marinha...


Deus existe! Tudo o prova,
tanto tu, altivo sol,
como tu, raminho humilde,
onde canta o rouxinol.



EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos

.