O Sr. Desembargador Amado era de uma boa família do Norte e tivera uma carreira singularmente fácil.
Dizia-se dele: «aquele deixou-se ir e chegou».
Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até à sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa.
Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente.
Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal: – Aquele ventre que ali vem, é o Amado!
EÇA DE QUEIROZ
O Conde de Abranhos
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