1.8.13
Manuel de Freitas (Antes do último comboio)
ANTES DO ÚLTIMO COMBOIO
Às vezes, é tão bom esquecer a literatura
- e, acima de tudo ou de nada, a poesia,
com os seus devaneios de donzela perra,
a latir mazelas, agruras e evidências.
Passeámos juntos pelo arraial
de Oeiras, sob o rumor contínuo
de comboios e sardinhas (menos pontuais
mas boas). Luzes, carrosséis e bares
pediam-me a demora que não pude ter,
enquanto os gatos, soberanos, atravessavam
devagar a noite. Falávamos de nada, calmamente.
Às vezes - ou melhor: sempre - sabe bem
deixar para outro dia a literatura, pensar que
os poetas não passam de estátuas inúteis num jardim
concebido por bestas que nem sequer os leram.
É inegável que um churro ou uma imperial
são muito mais necessários do que qualquer soneto.
De uma maneira ou de outra, as luzes vão em breve
apagar-se, indiferentes ao riso que nos juntou
e que veio cair, por azar, no chão deste poema.
Manuel de Freitas
[O último tango]
.