RETRATO PUÍDO NAS ENTRANHAS
Palmeiras inclinadas. Ao longe o casario.
É na água que o vejo, que sinto a cidade acordar.
Mais uma mulher que olha o rio. Tenho as mãos desatadas,
os pés a caminho. As margens alargam quando estou perto,
mas do outro lado as mulheres não reflectem
o rosto ou mesmo a sua ausência.
São matéria do verbo fazer e caminham junto ao chão,
na curva da noite para o marido. Gastos os sonhos por usar.
Descorado pano que ficou ao sol. Nelas a cidade não acorda,
não regressam os barcos à tardinha.
Vêm pela beira dos caminhos, a tristeza amável,
a raiva cega e às vezes um sorriso que sacode os ombros
porque até a tristeza tem um custo, uma esperança
na sola do sapato. Vejo-as todos os dias e é como se a vida
me atasse os pés, me anelasse os dedos. Como eu,
outras mulheres olhando o rio, desbordando o pano,
descozendo a sopa. Ama-se o homem que vira a esquina
connosco e sabe que não podemos fingir que a ferida
está fechada. As casas acendem.
É na água que vejo a sua luz descendo o rio.
As mulheres passam em silêncio para as casas,
atravessam a pele – deixam um retracto puído nas entranhas.
Olho o rio e não sei fingir que finjo tanto mar.
Rosa Alice Branco
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