11.7.11

Amadeu Baptista (Situação da indústria portuguesa)






SITUAÇÃO DA INDÚSTRIA PORTUGUESA
NO INÍCIO DA DÉCADA




Às vezes, quando a pressão das entregas
aumenta, ajudo a carregar os camiões,
mas o envenenamento é o fim-de-linha,
onde cada tarefa é como a execução
de um castigo. Pagam-me mal, mal tenho
tempo para comer um pão ao meio-dia, sinto
que a força dos meus dezasseis anos não corresponde
ao parco salário que me devem.
De aqui a uns anos, irei cumprir
o serviço militar, perderei a precariedade
do emprego, ainda ontem uma das mulheres
quase ficou sem um braço no sector velocíssimo
da transformação. Servir a pátria é, começo
a não ter dúvidas, sofrer esta amargura
endémica, a pobreza a alcançar-nos
em pouco mais de um passo, os olhos
corrompidos pelo vinagre da luminosidade,
a consciência das coisas ilegítima
na compreensão da linguagem, eu calo-me,
os outros falam por mim. Olho em volta, sinto
inexplicavelmente a natureza fortuita das coisas,
embrenho-me aos domingos na multidão
triunfante, gasto em vinho a humilde alegria
que as pequenas vitórias me consentem,
tremem-me as mãos só de pensar que existe
amor no mundo, algures, longinquamente,
no infinito da nossa ignorância. Gostava
de saber o nome deste usufruto da terra,
quais as cumplicidades que tornam tudo isto possível,
em que lugar de fogo e de agrura
o rosto corresponderá ao rosto e o silêncio
a esta forma de fome secular. Tudo é assim
liminarmente sujo, carregado de sangue
e de arestas, e duvido das proféticas sentenças
sobre a vida que me oferecem,
sem que as contemple, ao menos um instante.
Ao fim da noite, aconchego-me ao sol da praia
predilecta do meu coração, tudo me dói,
é um lençol de luz e solidão o que recebo, creio
na morte como única solução, maldito quem
por minha vez alguma vez pecou
sem que ratificasse a estranha recompensa
de ter aberto uma passagem para nenhum lugar.
Agora estou aqui e não posso pensar, uma outra
carga chama-me, obedeço cegamente
ao encarregado geral, ninguém suspeita
mas tenho dentro de mim uma indústria
onde ninguém produz porque não vale a pena.



Amadeu Baptista



[Amadeu Baptista]

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