NOT LIKELY TO BE THERE, IF STILL ALIVE
Primeiro quarto em Lisboa
onde vivi oito meses: da janela
sobre o beco via o tráfego nocturno
entre muros com recados e desenhos
obscenos, sob o castigo da música
de um bar entretanto extinto.
O lugar era assombrado
pelo cheiro da doença
e o velho senhor da casa, sentado
junto ao retrato do que fora
aos vinte anos, guardava a sua
distância: lacónico, preocupado,
quase não saía à rua, as tardes
passava-as de chinelos
e roupão. Mas era um homem
cortês, e no meu último dia
deu-me um livro do Eugénio
que mantinha à cabeceira, esquecido
por outro hóspede "dado às letras"
como eu. Penso muitas vezes nele
e naqueles que lá moravam
em plenos anos noventa, gente
que eu só encontrava a desoras,
na cozinha, à volta do frigorífico
de serventia comum. Era no tempo
dos versos que levavam a outras
praças — chegava tarde do Bairro,
o torpor entre as paredes
incitava à procura das palavras
de um poema que me ajudasse
a mudar. E quando me lembro disso
penso no muito que quis encontrar
uma saída, e nas portas que fechei
e nas esperanças que traí desde então
na minha vida.
RUI PIRES CABRAL
Oráculos de Cabeceira
Averno (2009)
[
O melhor amigo]
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