31.3.10

Manoel de Barros (Desejar ser-6)






DESEJAR SER – 6




Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007


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Juan Gelman (Mi Buenos Aires querido)






MI BUENOS AIRES QUERIDO




Sentado al borde de una silla desfondada,
mareado, enfermo, casi vivo,
escribo versos previamente llorados
por la ciudad donde nací.
Hay que atraparlos, también aquí
nacieron hijos dulces míos
que entre tanto castigo te endulzan bellamente.
Hay que aprender a resistir.


Ni a irse ni a quedarse,
a resistir,
aunque es seguro
que habrá más penas y olvido.



Juan Gelman







Sentado na borda de uma cadeira sem tampo,
enjoado, doente, vivo por pouco,
escrevo versos previamente chorados
pela cidade onde nasci.
Tenho de segurá-los, também aqui
nasceram doces filhos meus
que me adoçam belamente no meio de tanto castigo.
É preciso aprender a resistir.


Não a partir nem a ficar,
mas a resistir,
embora seja seguro
que hão-de vir mais penas e olvido.



(Trad. A.M.)

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30.3.10

Pedro Eiras (É proibido proibir)






A literatura serve para dizer que nada é permitido.

E para transgredir.

Porque certamente nem sequer era permitido dizer – que nada é permitido.




- PEDRO EIRAS, Substâncias Perigosas - Cem breves lições em que se explica por que meios os livros matam os seus leitores, Livrododia, 2010

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José Miguel Silva (Cinco)








CINCO




A Sagrada Família comia connosco
cinco dias por mês. Ficava, sem ruído,
sobre a mesa da sala. Brilhava no escuro
a chama diminuta de uma lamparina.


Disputávamos a honra da moeda na ranhura
sob os pés de S. José. Espécie de slot-machine
cujo prémio era o regresso do pai,
a bofetada, o princípio da autoridade.


Anos depois, cabia ao filho mais velho
o cuidado de transportar a imagem
a casa do vizinho. Trezentos metros
a fugir das pedras e das bocas infiéis.


Até ao dia em que o pai ficou de vez,
para dar por terminada a brincadeira.
Agora, todas as frases eram rematadas
por pontos de exclamação, as portas


começavam a bater mais depressa.
Nenhum dos filhos levantava a cabeça
quando a mãe nos perguntava, ainda:
quem quer apostar na Sagrada Família?



José Miguel Silva

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29.3.10

Juan Antonio González Iglesias (Ia a linguagem)






IBA EL LENGUAJE...



He estado acordándome intensamente de ti.
Me puse a traducir a un poeta alemán,
en principio a leerlo, pero tuve
que recurrir al diccionario, y luego
salió algo sorprendente. Creo que te gustaría.
Es un desconocido.
Mi memoria quizá no es la mejor.
Fíjate, qué comienzo:
Iba el lenguaje por sotos y praderas...


J. A. González Iglesias






Estive a lembrar-me intensamente de ti.
Pus-me a traduzir um poeta alemão,
em princípio a lê-lo, mas tive que
recorrer ao dicionário e depois
saiu-me algo surpreendente. Havias de gostar.
É um desconhecido.
Minha memória talvez não seja a melhor.
Olha, que começo:
Ia a linguagem por soutos e prados...


(Trad. A.M.)

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José Agostinho Baptista (Melodia)





MELODIA



Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra
a caminho do mar.


José Agostinho Baptista

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28.3.10

Ver (39)








[Fernando Almeida]


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José María Fonollosa (Viver)






Vivir no es, en verdad, muy complicado.
Entre todas las cosas que ambiciono
una me atrae más que cualquier otra.


Si ahora me interrogaran, me saldría
que lo que más deseo, en este instante,
es que Delia me quiera. Es tan perfecta...


JOSÉ MARÍA FONOLLOSA
Poetas en la noche
(1997)







Viver, em verdade, não é muito complicado.
De tudo quanto ambiciono
uma coisa me atrai mais que as outras.


Se agora me perguntassem, saía-me
que o mais que desejo, neste instante,
é que Delia me ame. É tão perfeita...


(Trad. A.M.)

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27.3.10

José Mário Silva (Fotografias vagamente desfocadas)







FOTOGRAFIAS VAGAMENTE DESFOCADAS




Uma névoa esconde o sorriso
do noivo, as lágrimas da irmã,
a chuva de arroz na escadaria.
Ficam só os contornos maiores,
a fachada da catedral com os
vitrais de há muitos séculos.
Na verdade a névoa não esconde,
antes protege. A névoa é um filtro
involuntário, um pudor nascido
do acaso e da imperícia.
Talvez as fotografias vagamente
desfocadas sejam as mais belas,
porque são as mais reais (imitam
a vida e a vida é imperfeita, pouco
nítida).



José Mário Silva


[Insónia]



>>  Bibliotecário de Babel (blogue)  /  Facebook

.

Um verso (74)






Um verso de Kate Rushin
(respondendo à questão: já pensaste em suicídio?)




Suicídio?!?!
Chavala, tás doida?
Eu tenho é medo de não viver
o suficiente



[Do trapézio]


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26.3.10

José Luis García Martin (Encontro)






Do fundo do sonho
uma mão me estendes.
Uma mão cortada
que me acaricia e foge.
Eu busco-a sem pressa
pelos cantos e livros.
Encontro só lábios,
estações, cigarros,
crianças a despedir-se,
umas gotas de sangue.
Pelo fundo do sonho
afastas-te devagar.
Quero gritar teu nome,
mas não sei quem és.
Na rua deserta,
ao dobrar a esquina,
viras-te a olhar-me
e sou eu quem me olha.


(Trad. A.M.)

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João Miguel Fernandes Jorge (E só de pão vive o crítico)






E SÓ DE PÃO VIVE O CRÍTICO




Outro dia um crítico dizia
que poemas meus só eram bons
quando compridos e de grande
enredo.


De quatro ou cinco versos,
não. Que não passavam de
literatura. Mal
saberá, esse rapaz, quanto o


poema de reduzido verso tem
de persecução do inalterável
e quanto ouro no seu corpo
de luz faz dos versos, quatro


ou cinco, veios da terra;
dilatada memória da nossa
visão, mistério secreto e
oculto que quieta o coração,


como quem
ante o altar queima incenso
o verso de oiro
relâmpago no horizonte do nosso


destino.



João Miguel Fernandes Jorge

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25.3.10

Jacques Prévert (Pequeno-almoço)






DÉJEUNER DU MATIN



Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec le petit cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a resposé la tasse
Sans me parler
Il a alumé
Une cigarrette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis des cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur la tête
Il a mis
Son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré.


Jacques Prévert







Pôs o café
na chávena
pôs o leite
na chávena de café
pôs o açúcar
no café com leite
com a colher
mexeu
bebeu o café com leite
e repôs a chávena
sem me falar
acendeu
um cigarro
fez bolas
com o fumo
pôs a cinza
no cinzeiro
sem me falar
sem me olhar
levantou-se
pôs
o chapéu na cabeça
vestiu
a gabardina
porque chovia
e saiu
debaixo de chuva
sem uma palavra
sem me olhar
e eu pus
a cabeça entre as mãos
e chorei.


(Trad. A.M.)

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Francisco Hernández (Radiografia)






RADIOGRAFÍA



este poema huele a esperma
a sudor de negra
a pantalón traído de la tintorería:
al amanecer
sabe a vodka con hielo
a camarón gigante
o simplemente a madres.
es más ligero que el sexo de una hormiga
pero no se puede amplificar
ni humedecer
dada su calidad de combustible


FRANCISCO HERNÁNDEZ
Cuerpo disperso
(1982)






este poema cheira a esperma
a suor de negra
a calça saída da lavandaria:
ao amanhecer
sabe a vodka com gelo
a camarão gigante
ou simplesmente a borras.
é mais leve do que o sexo da formiga
mas não se pode ampliar
nem humedecer
dada a qualidade de combustível


(Trad. A.M.)

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24.3.10

Gonçalo M. Tavares (Alexandria)






ALEXANDRIA




Na mesa de Alexandria seis homens
mastigavam.
A mulher trazia os líquidos numa jarra inclinada
e a criança deslocava a vontade
para a cidade mais próxima.
Havia um certo alvoroço estético.
A criança chorava e apontava para o
mapa, a mulher defendia a qualidade do vinho frente aos
forasteiros, e a parede havia sido classificada como vertical
há quinhentos anos,
mas actualmente tal nome era exagerado.
Ou saímos daqui, ou a casa cai,
gritou um dos seis homens, mas
nenhum deles se mexeu. E tudo isto se passou em Alexandria
numa mesa.



Gonçalo M. Tavares

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Fernando Pessoa / A. Campos (Cartas de amor)






TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.


Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.


As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.


Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.


Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.


A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.


(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)



Álvaro de Campos

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23.3.10

José Antonio Muñoz Rojas (A felicidade)






LA DICHA, QUÉ ES LA DICHA?




La dicha, qué es la dicha? (La palabra
no me hace feliz, dicho de paso). Yo diría
que es sencillamente ir contigo de la mano,
detenerse un momento porque un olor nos llama,
una luz nos recorre, algo que nos calienta
por dentro, que nos hace pensar que no es la vida,
la que nos lleva, sino que nosotros somos
la vida, que vivir es eso, sencillamente eso.


José Antonio Muñoz Rojas






A felicidade, o que é a felicidade? (A palavra
não me deixa feliz, diga-se de passagem). Eu diria
que é simplesmente ir contigo pela mão,
parar um instante porque um odor nos chama,
uma luz nos percorre, algo que nos aquece
por dentro e nos faz pensar que não é a vida
que nos leva, mas antes que a vida somos nós
e que viver é isso, simplesmente isso.


(Trad. A.M.)

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Eugénio de Andrade (Ver claro)






VER CLARO



Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.



EUGÉNIO DE ANDRADE
Os Sulcos da Sede

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22.3.10

Olhar (71)









Coimbra

(+Arzila)

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José Agustín Goytisolo (O ofício do poeta)






EL OFICIO DEL POETA




Contemplar las palabras
sobre el papel escritas,
medirlas, sopesar
su cuerpo en el conjunto
del poema, y después,
igual que un artesano,
separarse a mirar
cómo la luz emerge
de la sutil textura.
Así es el viejo oficio
del poeta, que comienza
en la idea, en el soplo
sobre el polvo infinito
de la memoria, sobre
la experiencia vivida,
la historia, los deseos,
las pasiones del hombre.


La materia del canto
nos lo ha ofrecido el pueblo
con su voz. Devolvamos
las palabras reunidas
a su auténtico dueño.



José Agustin Goytisolo








Contemplar as palavras
escritas no papel,
medi-las, sopesar-lhes
o corpo no conjunto
do poema, depois,
tal como um artesão,
afastar-se a olhar
como a luz emerge
da subtil textura.
Assim é o velho ofício
do poeta, começando
na ideia, a soprar
o pó infinito da memória,
a experiência vivida,
a história, os desejos,
as paixões humanas.


A matéria do canto
deu-no-la o povo
com sua voz. Devolvamos
as palavras reunidas
a seu verdadeiro dono.


(Trad. A.M.)

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21.3.10

Alda Merini (Sonho de amor)






SOGNO D’AMORE




Se dovessi inventarmi il sogno
del mio amore per te
penserei a un saluto
di baci focosi
alla veduta di un orizzonte spaccato
e a un cane
che si lecca le ferite
sotto il tavolo.
Non vedo niente però
nel nostro amore
che sia l'assoluto di un abbraccio gioioso.



Alda Merini







Se eu tivesse de inventar o sonho
de meu amor por ti
pensaria numa troca
de beijos fogosos
na vista de um horizonte partido
e num cão
a lamber as feridas
debaixo da mesa.
Mas não vejo nada
no nosso amor
como o absoluto de um abraço de alegria.


(Trad. A.M.)



>>  Alda Merini (sítio of. / 12p)  /  Poesie-I (10p)  /  Poesie-II (120p)  /  Poesie-III (45p)

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Carlos Drummond de Andrade (Não se mate)






NÃO SE MATE



Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe o que será.


Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.


O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.


Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.



Carlos Drummond de Andrade

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20.3.10

Jorge Teillier (Carta a Mariana)






CARTA A MARIANA




¿Qué película te gustaría ver?
¿Qué canción te gustaría oír?
Esta noche no tengo a nadie
a quien hacerle estas preguntas.


Me escribes desde una ciudad que odias
a las nueve y media de la noche.
Cierto, yo estaba bebiendo,
mientras tú oías Bach y pensabas volar.


No creí que iba a recordarte
ni creí que te acordarías de mí.
¿ Por qué me escribiste esa carta?
Ya no podré ir solo al cine.


Es cierto que haremos el amor
y lo haremos como me gusta a mí:
todo un día de persianas cerradas
hasta que tu cuerpo reemplace al sol.


Acuérdate que mi signo es Cáncer,
pequeña Acuario, sauce llorón.
Leeremos libros de astrología
para inventar nuevas supersticiones.


Me escribes que tendremos una casa
aunque yo he perdido tantas casas.
Aunque tú piensas tanto en volar
y yo con los amigos tomo demasiado.


Pero tú no vuelves de la ciudad que odias
y estás con quién sabe qué malas compañías,
mientras aquí hay tan pocas personas
a quien hacerles estas simples preguntas:


«¿Qué canción te gustaría oír,
qué película te gustaría ver?
¿ y con quién te gustaría que soñáramos
después de las nueva y media de la noche?».



Jorge Teillier







Que filme gostavas de ver?
Que canção gostavas de ouvir?
Hoje não tenho ninguém
a quem fazer estas perguntas.


Escreves-me de uma cidade que odeias
às nove e meia da noite.
Certo, eu estava a beber,
enquanto tu ouvias Bach e pensavas voar.


Não acreditei que fosse lembrar-te
nem que tu te lembrasses de mim.
Por que é que me escreveste a carta?
Já não posso ir ao cinema sozinho.


Decerto que faremos amor
e há-de ser como eu gosto:
um dia inteiro de persianas corridas
até o teu corpo substituir o sol.


Lembra-te que o meu signo é Caranguejo,
ó pequena Aquário, salgueiro chorão.
Leremos livros de astrologia
para inventar novas superstições.


Dizes que havemos de ter uma casa,
logo eu que perdi tantas casas.
Tu contudo pensas tanto em voar
e eu com os amigos bebo de mais.


Mas tu não voltas da cidade que odeias
e andas sabe-se lá em que más companhias,
enquanto aqui há tão poucas pessoas
a quem perguntar apenas isto:


“Que canção gostavas de ouvir,
que filme gostavas de ver?
“E com quem gostavas de sonhar
depois das nove e meia da noite?”



(Trad. A.M.)

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19.3.10

Pedro Eiras (A literatura mata)






Não consigo abrir um livro sem terror: acredito que a literatura mata.

Mata como um veneno no sangue.

Ninguém se apercebe a tempo de procurar o antídoto.

Que, aliás, não existe.

Mesmo parar de ler não resolve nada.

Infiltrado, o veneno literário torna-se carne da própria carne, a ponto de já ninguém saber quem pensa dentro de si: a ilusão de uma voz original, ou a das personagens que entraram sem pedir licença. (...)

Alguns livros convidam a matar.

Outros, ao suicídio.

Outros ainda, mais subtis, limitam-se a relativizar a morte – meio caminho para morrer.

Todos são substâncias perigosas, como os medicamentos.

Só deveriam poder ser comprados com receita médica ou atestado de robustez intelectual.



- PEDRO EIRAS, Substâncias Perigosas - Cem breves lições em que se explica por que meios os livros matam os seus leitores, Livrododia, 2010


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António de Almeida Mattos (Trago nas mãos os frutos)






Trago nas mãos os frutos esquecidos
da terra que lavrei E não encontro
altar ou deus a quem os sacrifique




António de Almeida Mattos

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18.3.10

Joan Margarit (A educação sentimental)






LA EDUCACIÓN SENTIMENTAL



Solía repetirme con su viejo desprecio:
la poesía no sirve para nada.
Me quería instruir en un infierno
donde bajar la guardia es perder la partida,
donde sólo el dinero protege de este frío
de la edad. Pero, en cambio, no sabía
que es por este motivo que la necesitamos,
que se debe rastrear la poesía
por los juzgados y los hospitales:
más tarde, ya hablará de la que amas.
Hay poesía incluso en esta gente
como mi padre, que odió la vida.
Y tenía razón en su argumento:
de nada sirve, aquella que él leía.



JOAN MARGARIT
Aguafuertes
(1995)


[Poeticas.es]





Repetia-me sempre com seu velho desprezo:
a poesia não serve para nada.
Queria era instruir-me num inferno
onde baixar a guarda é perder a partida,
onde só o dinheiro protege deste frio
da idade. Mas, em troca, não sabia
que é por isso mesmo que a precisamos,
que devemos perseguir a poesia
por foros e hospitais:
depois, ela falará daquela que amas.
Há poesia mesmo em gente assim
do tipo de meu pai, que odiou a vida.
Ele tinha razão lá no seu argumento:
não serve de nada, essa que ele lia.


(Trad. A.M.)

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Alexandre O'Neill (A meu favor)






A MEU FAVOR



A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer


A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.


A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos



Alexandre O'Neill

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17.3.10

Adília Lopes (Os poemas que escrevo)





Os poemas que escrevo
são moinhos
que andam ao contrário
as águas que moem
os moinhos
que andam ao contrário
são as águas passadas


Adília Lopes

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Íker Biguri (Roma)





ROMA




Dan las campanadas de las seis
en la Basílica de San Pedro.
Sincronizo mi reloj con el de la fachada.


Ahora Dios y yo tenemos la misma hora.
En cualquier momento podríamos
empezar cualquier misión peligrosa juntos.


Íker Biguri





Dão as badaladas das seis
na Basílica de São Pedro.
Acerto o meu relógio pelo da fachada.


Deus e eu, agora, temos a mesma hora.
Podemos a todo o momento
fazer juntos qualquer missão perigosa.


(Trad. A.M.)




>>   Afinidades Electivas (3p) / Poejos (blogue)


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16.3.10

Ver (38)









[Hermann]


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A.M.Pires Cabral (As prostitutas)






AS PROSTITUTAS




Naquele tempo,
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída,
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.
Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos,
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa,
mas jamais o vício mercenário.
Nas eiras recebiam nossas águas,
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível,
urgente aprendizagem,
concediam-nos crédito e carinho –
as tão castas mulheres,
as prostitutas.



A.M. Pires Cabral

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15.3.10

Jaime Gil de Biedma (Contra Jaime Gil de Biedma)






CONTRA JAIME GIL DE BIEDMA



De qué sirve, quisiera yo saber, cambiar de piso,
dejar atrás un sótano más negro
que mi reputación -y ya es decir-,
poner visillos blancos
y tomar criada,
renunciar a la vida de bohemio,
si vienes luego tú, pelmazo,
embarazoso huésped, memo vestido con mis trajes,
zángano de colmena, inútil, cacaseno,
con tus manos lavadas,
a comer en mi plato y a ensuciar la casa?


Te acompañan las barras de los bares
últimos de la noche, los chulos, las floristas,
las calles muertas de la madrugada
y los ascensores de luz amarilla
cuando llegas, borracho,
y te paras a verte en el espejo
la cara destruida,
con ojos todavía violentos
que no quieres cerrar. Y si te increpo,
te ríes, me recuerdas el pasado
y dices que envejezco.


Podría recordarte que ya no tienes gracia.
Que tu estilo casual y que tu desenfado
resultan truculentos
cuando se tienen más de treinta años,
y que tu encantadora
sonrisa de muchacho soñoliento
-seguro de gustar- es un resto penoso,
un intento patético.
Mientras que tú me miras con tus ojos
de verdadero huérfano, y me lloras
y me prometes ya no hacerlo.


Si no fueses tan puta!
Y si yo supiese, hace ya tiempo,
que tú eres fuerte cuando yo soy débil
y que eres débil cuando me enfurezco...
De tus regresos guardo una impresión confusa
de pánico, de pena y descontento,
y la desesperanza
y la impaciencia y el resentimiento
de volver a sufrir, otra vez más,
la humillación imperdonable
de la excesiva intimidad.


A duras penas te llevaré a la cama,
como quien va al infierno
para dormir contigo.
Muriendo a cada paso de impotencia,
tropezando con muebles
a tientas, cruzaremos el piso
torpemente abrazados, vacilando
de alcohol y de sollozos reprimidos.
Oh innoble servidumbre de amar seres humanos,
y la más innoble
que es amarse a sí mismo!



Jaime Gil de Biedma






De que serve, gostava eu de saber, mudar de casa,
deixar para trás uma cave mais escura
que a minha reputação – o que não é dizer pouco –
pôr cortinados brancos
e tomar criada,
renunciar à vida boémia,
se depois vens tu, importuno,
embaraçoso hóspede, cretino usando minhas roupas,
zangão de colmeia, inútil, ignorante,
de mãos lavadas,
comer no meu prato e sujar-me a casa?


Contigo vêm os balcões dos bares
derradeiros da noite, os chulos, as floristas,
as ruas mortas da madrugada
e os elevadores de luz amarela
quando chegas, ébrio,
e paras a olhar no espelho
a tua cara desfeita,
com olhos ainda violentos
que não queres fechar. E se eu te interpelo,
tu ris-te, lembras-me o passado,
dizendo que eu estou velho.


Poderia eu lembrar-te a ti que não tens graça nenhuma.
Que esse estilo descuidado, esse teu desenfado
tornam-se truculentos
quando se está para lá dos trinta;
e que o teu sorriso
encantador de rapazinho sonolento
- seguro de que agrada – é um resquício penoso,
um desígnio patético.
Tu entretanto olhas-me com esses olhos
de órfão autêntico, e choras
e prometes não voltar a fazê-lo.


Se não fosses tão puta!
E se eu soubesse, há um tempo,
que tu és forte quando eu sou débil
e és débil tu quando eu me enfureço...
De teus regressos guardo uma impressão confusa
de pânico, de pena e desagrado
e a desesperança,
a impaciência e o ressentimento
de voltar a sofrer, mais uma vez,
a humilhação imperdoável
da excessiva intimidade.


A duras penas hei-de levar-te para a cama,
como quem desce ao inferno
para dormir contigo.
Morrendo a cada passo de impotência,
tropeçando nos móveis
às escuras, atravessaremos a casa
torpemente abraçados, vacilando
com álcool e soluços reprimidos.
Ó ignóbil servidão de amar seres humanos,
e a mais ignóbil
que é amar-se a si mesmo!


(Trad. A.M.)


Outras versões:  O melhor amigo (?)  /  Meia noite todo o dia (Manuel A.Domingos) / Luz & sombra (José Bento)
.

Alberto Pimenta (Obras de caridade)






OBRAS DE CARIDADE



vigiar os polícias
ensinar os professores
confessar os padres
burlar os juristas
abater os talhantes
sangrar os médicos
condenar os juízes
difamar os críticos
morder os cães
comprar as batatas aos lavradores



Alberto Pimenta



[Weblog do cão]

.

14.3.10

Sophia de Mello Breyner Andresen (Espera-me)






ESPERA-ME



Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
deixarei que o teu nome se perca repetido



Mas espera-me:
pois por longos que sejam os caminhos
eu regresso



Sophia de Mello Breyner Andresen

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David González (Pesadelos)






PESADILLAS



últimamente
mis sueños
suelen ser
auténticas
pesadillas.


mejor así.


no me asusto
tanto
al despertar.



DAVID GONZÁLEZ
Sembrando Hogueras
Bartleby, 2001


[El alma disponible]






ultimamente
meus sonhos
têm sido
autênticos
pesadelos.


antes assim.


não me assusto
tanto
ao despertar.


(Trad. A.M.)



>>  David González (sítio pessoal)  /  Portal de Poesia (Sparrings, 2000)

.

13.3.10

Ruy Cinatti (Disponibilidade)







DISPONIBILIDADE




Vem ver a vida
passar silenciosamente
como a ave no ar claro.


Vê-a que desce. Prende-a.
Nas tuas mãos em concha
fica um instante.


Deixa-a fugir. Outras há.



RUY CINATTI
O Livro do Nómada Meu Amigo
(1981)

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