2.10.14
Raul Brandão (Ponha lá)
Era um colosso.
Dois olhinhos sumidos na cabeçorra, mãos enormes, braços como trancas e um corpo maciço e quadrado, a que ele, desajeitado, não sabia o que fazer.
Na taberna enfumada da Cantareira era eu quem lhe escrevia as cartas para a namorada.
– Ponha lá, senhor Arriulo...
Ponha lá o quê?...
Não dizia mais palavra.
Só olhava para mim suando de aflição.
Mas era tanta a ternura nos seus olhos, que se estabelecia entre nós dois uma espécie de comunicação magnética...
Tenho perdido tudo.
Deixei passar por mim as melhores coisas da vida quase sem dar por elas.
Também perdi, com indiferença, a cópia dessas extraordinárias cartas de amor de um poveiro a uma poveira.
Ele trazia na cesta, com o pão e o conduto, o papel bordado para a carta e sentava-se na minha frente, com a cabeça vermelha de ruivo apertada entre as mãos como cepos.
E olhava-me numa imensa aflição:
– Ponha lá, senhor Arriulo – à espera que eu encontrasse as palavras mágicas com que havia de enternecer o coração da Josefa Perneta.
- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.
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