VAT 69
Era depois
da morte herberto helder
Ia fazer
três anos que morrêramos
três anos
dia a dia descontados no relógio
da torre que
de sombra nos cobriu a infância:
rodas no
adro — gira a borboleta que se atira ao ar
o jogo do
berlinde o trinta e um pedradas
nas cabeças
nos ninhos nas vidraças
Foi quando
verdadeiramente começou
a
conspiração dos líquenes cabelos e avencas
na mina onde
molhámos nossos jovens pés
e tirámos
retratos pra morrer mais uma vez
Os nossos
filhos — nós outra vez crianças —
comiam e
gostavam das laranjas essas mesmas laranjas
que mordemos
em tempos ao chegar nas férias de natal
no quintal
que as máximas mãos deixaram já depois abandonado
Era a seguir
à morte meu poeta
era na
meninice havia festa e na sala da entrada
pensávamos
na morte — nunca mais — pela primeira vez
Trincávamos
cheirávamos maças no muro sobre a praia
roubávamos o
balde ou íamos atrás do homem dos robertos
Era nas
férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a
campainha e o padre voltava-se pra nós
—orate
frates — ou íamos ao cemitério apesar do catitinha
Era depois
da morte sobre a plana infância
o primeiro
natal o cheiro do jornal
lido na
adega ou na casa do forno
sentados
pensativos sobre a terra húmida
Era na
infância o sol caía enquanto água corria
entre os pés
de feijão e os buracos de toupeiras
calcados
prontamente pelas botas
soprava o
vento e vinha a moinha da eira
o cão comia
o bolo e morria debaixo da figueira
e teria
sepultura com enterro e cruz e muitas flores
Havia casamentos
o meu pai falava
e os noivos
deitavam-nos confeitos das carroças
E os
registos mistério tempo da prenhez
Era talvez
no outono havia asma
havia a
festa da azeitona havia os fritos
ao domingo
havia os bêbados estendidos pelas ruas
havia tanta
coisa no outono havia o cristovam pavia
Era a
primavera o rio rápido subia
os barcos
navegavam entre a vinha
e alastrava
a sombra e a tarde adensava-se
num espesso
e branco nevoeiro de algodão
noite dos
candeeiros sombras nas paredes
e minha mãe
pegava na espingarda ia à janela
e ouvia-se o
chumbo no telhado lá ao longe
O leovigildo
o marcolino o sítio do miguel
a sesta a
monda das mulheres
a queda do
bizarro exposto na igreja
isso e o
almoço a saber mal
quando
vinham da escola pra saber significados
Eram as
despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens
Eram as
festas era o roubo dos melões
era a
menstruação oculta da criada
Era talvez
em tempos de tormenta
havia ferros
entre a palha por baixo da galinha
que chocava
os ovos dentro de um velho cesto
eram as
nossas casa em adobe
e era o
carnaval os bailes os cortejos
Íamos para a
praia e eu lia camilo
ouvia o mar
bater sem conseguir compreender
como podia
estar ali se tinha estado noutro sítio
Era o tempo
dos primeiros amores
eu via o
pavão adoecia e só muito mais tarde lia
o trecho que
me competia entre as amadas raparigas
A casa não
ficava muito longe dos montes
não havia a
cidade nem os outros
punham ainda
em causa o meu reino de deus
senhor de
tudo o que depois não tive
Era depois
da morte ou era antes da morte?
Mas haveria
a morte verdadeiramente?
Lia o paulo
e virgínia chorava e perguntava
se tudo
aquilo tinha acontecido
Era o meu
pai era esse sonhador incorrigível
sem nunca
mais saber que havia de fazer dos dias
Eram as
folhas novas eram os perdigotos
saídos não
há muito ainda da casca
Era era
tanta coisa
Seria
realmente após a morte herberto helder
Ruy Belo