31.8.15
José Cardoso Pires (Toilettes públicas)
Sophia, em contrapartida, achava divertidíssimos os 'grafitti' das toilettes públicas.
Apreciava o humor à porta fechada que havia naquelas inscrições, a malícia oferecida de passagem, os convites libertinos e a quantidade de números de telefones deixados nas paredes e que tanto podiam ser armadilhas como não.
Raramente faltava a confidência de uma noite qualquer arrasadora, com a promessa de uma enfiada de orgasmos sem desencavar ou as denúncias de Fulana e Fulana, lésbicas de pai e mãe.
Outra atracção: a versalhada escatológica.
Essas rimas lembravam-lhe invariavelmente o Abade de Jazente sentado na retrete. (p.375)
JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)
.
Alfonso Brezmes (Perigos da poesia)
PELIGROS DE LA POESÍA
Escribo puente
y me cruzan ríos.
Digo tú
y comienza a llover.
Me da miedo pronunciar
la palabra no,
o la palabra nunca.
Alfonso Brezmes
[El almirante ruina]
Escrevo ponte
e rios me atravessam.
Digo tu
e começa a chover.
Até me assusta pronunciar
a palavra não.
Ou a palavra nunca.
(Trad. A.M.)
.
30.8.15
Alberto de Lacerda (Todos atraiçoamos)
Todos
atraiçoamos
a verdade
todos os dias
A verdade não existe
Nós
muito menos
ALBERTO DE LACERDA
Oferenda II
IN-CM (1994)
.
29.8.15
Juan Vicente Piqueras (Instruções para atravessar o deserto)
INSTRUCCIONES PARA CRUZAR EL DESIERTO
Para cruzar este íntimo desierto
hace falta coraje, tiempo, ganas
de no perder la vida preparando
un viaje que jamás emprenderemos,
un camello leal, un compañero
lo mismo, un mapa vano,
un turbante, una brújula,
diez cajas de bombones (recuerdo de Occidente)
y una chilaba azul… ¿qué más? Un libro
que haga las veces de Corán, de Biblia,
de Torah y Tao y tenga
las páginas en blanco o esté escrito
en una lengua que nadie comprenda.
Hace falta una cierta confianza en la sed,
una mirada limpia, y un cuaderno
de notas que los días
son largos, lentos, y las noches tristes,
y no hay tienda ni tribu
ni dios que asista en tanta soledad.
Para cruzar este íntimo desierto
hace falta querer, tener que, decidir
echarse a andar y no mirar atrás,
no cejar, no tener otro remedio.
Juan Vicente Piqueras
Para atravessar este deserto interior
é preciso coragem, tempo, vontade
de não passar a vida a preparar
uma viagem que jamais faremos,
um camelo que seja leal, um companheiro
idem, um mapa vão,
um turbante, uma bússola,
dez caixas de bombons (recordação do Ocidente)
e uma jilaba azul... o que mais? Um livro
para fazer as vezes do Corão, da Bíblia,
da Tora e do Tao,
com as folhas em branco ou escrito
numa língua que não se entenda.
É preciso ter uma certa confiança na sede,
um olhar claro e um caderno
de notas que os dias
são compridos, lentos, e as noites tristes,
e não há tenda nem tribo
nem deus que assista em tal solidão.
Para atravessar este íntimo deserto
é preciso querer, ter que, resolver
pôr-se a andar e não olhar para trás,
não recuar, não ter outro remédio.
(Trad. A.M.)
.
28.8.15
Mário de Carvalho (A redução do vocabulário)
A redução do vocabulário nos últimos anos tem sido dramática.
Não apenas do vocabulário culto que, não há muito tempo, faria parte do dia-a-dia numa família medianamente instruída.
Mas daquele que transportava uma tradição ancestral.
Se hoje muitos jovens não conseguem perceber um provérbio, isso acontece não somente porque o mundo rural desapareceu, mas porque se tem destruído a memória e ocultado a espessura da História.
Uma das razões para ler é também a vontade de libertação, a expressão de um inconformismo que não aceita ficar encarcerado dentro dos limites do vocabulário básico. (p.230)
MÁRIO DE CARVALHO
Quem disser o contrário é porque tem razão
(2014)
.
Juan Luis Panero (E de repente anoitece)
Y DE PRONTO ANOCHECE
Vivir es ver morir, envejecer es eso,
empalagoso, terco olor de muerte,
mientras repites, inútilmente, unas palabras,
cáscaras secas, cristal quebrado.
Ver morir a los otros, a aquellos,
pocos, que de verdad quisiste,
derrumbados, deshechos, como el final de este cigarrillo,
rostros y gestos, imágenes quemadas, arrugado papel.
Y verte morir a ti también,
removiendo frías cenizas, borrados perfiles,
disformes sueños, turbia memoria.
Vivir es ver morir y es frágil la materia
y todo se sabía y no había engaño,
pero carne y sangre, misterioso fluir,
quieren perseverar, afirmar lo imposible.
Copa vacía, tembloroso pulso, cenicero sucio,
en la luz nublada del atardecer.
Vivir es ver morir, nada se aprende,
todo es un despiadado sentimiento,
años, palabras, pieles, desgarrada ternura,
calor helado de la muerte.
Vivir es ver morir, nada nos protege,
nada tuvo su ayer, nada su mañana,
y de pronto anochece.
JUAN LUIS PANERO
Antes de que llegue la noche
(1985)
[Las cosas que hemos visto]
Viver é ver morrer, é isso envelhecer,
peganhento, tenaz odor de morte,
enquanto repetes, inutilmente, algumas palavras,
cascas ressequidas, vidro estalado.
Ver morrer os outros, esses,
poucos, que amaste de verdade,
derrubados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
gestos e rostos, imagens queimadas,
amassado papel.
E ver-te morrer a ti também,
removendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é frágil a matéria
e sabia-se tudo, não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluxo,
teimam e perseveram, afirmam o impossível.
Copo vazio, pulso tremido, cinzeiro sujo,
na luz encoberta do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um sentimento sem pena,
anos, palavras, peles, desgarrada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve seu ontem, nada seu amanhã,
e de repente anoitece.
(Trad. A.M.)
.
27.8.15
Albano Martins (Ainda te falta dizer isto)
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
Albano Martins
[Gato pingado]
.
26.8.15
Valeria Pariso (Não sei em que língua me falam)
(III)
No sé en qué idioma me hablan.
Qué significa: si te parece paso.
Qué quiere decir: hay un café muy cerca.
En casos así,
tengo la pereza de un hipopótamo,
no me interesa averiguar y
entro en el silencio
como en un vestido.
Mi obsesión son las cosas por su nombre.
Valeria Pariso
[Emma Gunst]
Não sei em que língua me falam,
o que significa: se te parecer, passo.
o que quer dizer: há um café mesmo ao pé.
Em casos assim,
tenho a preguiça de um hipopótamo,
não quero saber e
entro no silêncio
como num vestido.
Minha obsessão são as coisas pelos seus nomes.
(Trad. A.M.)
.
25.8.15
José Cardoso Pires (Capela de cornudos)
Para ele o clube da Rua do Touro não passava de uma capela de cornudos, e o velho, no seu andar carregado, parecia que investia contra esses lavradores de putas e de baralho.
Uma choldra, os do clube.
E o Afonsinho Pompadour também não lhes ficava atrás, era tão cornudo como eles.
Com a diferença de que cantava outro cantar porque, sendo de contra natura, marrava pelo traseiro e tinha os chifres no cu. (p.374)
JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)
.
Juan Gelman (Coisa estranha)
ASUNTO RARO
Viendo a la gente andar, ponerse el traje
el vestido, la piel y la sonrisa
comer sobre los platos dulcemente
afanarse, correr, sufrir, dolerse
todo por un poquito de pan y de alegría,
viendo a la gente, digo, no hay derecho
a castigarle el hueso y la esperanza,
a ensuciarle los cantos, a oscurecerle el día,
viendo, sí,
cómo la gente llora en los rincones
más oscuros del alma y sin embargo
sabe reír y andar derecho,
viendo a la gente, bueno, viéndola
tener hijos y esperar y siempre
creer que van a mejorar las cosas
y viéndola pelear por sus riñones,
digo gente,
qué hermoso andar contigo
a descubrir la fuente de lo nuevo,
a arrancar la felicidad,
a traer el futuro sobre el lomo, hablar
familiarmente con el tiempo y saber
que acabaremos y de una buena vez por ser dichosos,
qué hermoso, digo gente, qué misterio
vivir tan castigado
y cantar y reír
¡qué asunto raro!
Juan Gelman
[Miradas]
Vendo as pessoas passar, pôr fato
ou vestido, a pele e o sorriso
comer à mesa suavemente
afadigar-se, correr, sofrer ou dorir-se
tudo por um pouco de pão e alegria,
vendo as pessoas, dizia, não há direito
de lhes castigar o corpo e a esperança,
sujar-lhes os cantos e escurecer o dia,
vendo, sim,
como choram nos recantos
mais escuros da alma e todavia
sabem rir e andar direito,
vendo as pessoas, bem, vendo-as
ter filhos e esperar e crer
sempre que as coisas vão melhorar,
e vendo-as a batalhar pelo seu,
eu digo minha gente,
que belo andar convosco
e descobrir a fonte da novidade,
e perseguir a felicidade,
e carregar o futuro nas costas, falar
com o tempo familiarmente e saber
que acabaremos duma vez por ser felizes,
que belo, digo gente, que mistério
viver tão castigados
e cantar e rir
- que coisa estranha!
(Trad. A.M.)
.
24.8.15
Affonso Romano de Sant'Anna (Os desaparecidos)
OS DESAPARECIDOS
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
— mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até à primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, aerefeitos, constatar no além
como os pecadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil
ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
— desapareciam.
Affonso Romano de Sant’Anna
.
23.8.15
Roger Wolfe (A verdade, por fim)
LA VERDAD, POR FIN
Todo el día
queriendo redactar este poema
y ahora no recuerdo
qué se supone
que tenía que decir.
Los buenos escritores —no hace falta
repetirlo— son aquellos
que saben siempre, exactamente,
cuándo no deben escribir.
Pero ése
evidentemente
no es mi caso.
Roger Wolfe
Todo o dia
a querer lavrar este poema
e agora não me lembro
o que é suposto
que tinha a dizer.
Os bons escritores – não é preciso
dizê-lo – são aqueles
que sabem sempre, exactamente,
quando não devem escrever.
Mas esse
evidentemente
não é o meu caso.
(Trad. A.M.)
.
22.8.15
Aquilino Ribeiro (Caminhos Errados- Voc.)
CAMINHOS ERRADOS
(Vocabulário)
achavascada
acuar
afundir
agatanhar
aixe
alcriquete
alma de cântaro
anaçar
andilhas
arganaz
arribana
atafal
atrido
azoinar
azougue
balsa
barbela
barrela
bocada
boqueira
bornal
brasido
brejoeiro
brocha
bródio
cabanal
caçarreta
cachação
calondro
cambulhada
canada
cangalho
capelas dos olhos
capindó
carniça
carpanta
carro de anos
carujeira
carujo
cascaroleta
casquivana
caterva
catramugir
cavalarias altas
cerrado
chafariqueira
chamiça
charachina
charriscar
chichisbéu
cincar
clâmide
cômoro
correntão
corricar
corrilho
decrua
derrancada
desatupir
desensocar
donguinha
embuchar
enchouriçar
endrómina
engoiado
enguichar
enliçar
entanguido
entremetido
envolta
escoteiro
esforcalhar
esladroar
esparralhada
esparvonada
espertenida
espojadoiro
espora fita
esporteirar
estardiota
esterquilínio
estrambólica
fachoco
fas/nefas
festeiro
fidúcias
fina força
fonas
forjicada
franduna
fraqueira
frascário
freima
frenicoques
frescal
gabela
gaifona
galão
gambérria
gorgomilos
gorra
grabato
gromo
homem lige
igualha
infusa
ladro
lambisqueira
larica
larpão
latoeiro
leicenço
louceiro
macanjo
malhoada
maloio
mamposteiro
manata
maninho
mantença
marchante
mazorreiro
melgueira
momice
mormaceiro
muladar
muranho
nisga
pataqueiro
paveia
peguilho
pelangra
pernada
pesperro
pilho
pilordas
pincharolar
pionia
pitança
pontigo
pôr o ramo
pragana
quitar
rabiça
ralé
rascoa
rebentina
relambório
relego
relice
repitosca
retouçar
revessar
revolcar
ripanço
rocegada
rópia
rorejar
saltareco
sarambeque
serigaita
sincelo
sirga
soalheira
sobreposse
surrobeco
tabaqueiro
tábido
tagaté
taleigo
tanazes
taramela
tiborna
touceira
trancanaz
trangalhadanças
triaga
valhacoito
veniaga
zangarelhão
zanguizarra
zuca
Juan Carlos Mestre (Não me arrependo de nada)
No me arrepiento de nada ni de nadie, la vida es un monólogo
entre la índole extinguida de una estrella y la natural semilla.
Mi alma crece silenciosa hacia un lugar incierto,
allí las fieras luctuosas, allí el sicario gótico y el infortunio ciego.
Brota el arco iris de los cálices que sostuvo Homero,
le brota su cuerno al fauno, el eco al precipicio, su luz al cielo.
Ésta es la frontera de mi vida, ésta la hora izquierda
exacta en el destino del corazón de un prófugo.
Yo iré donde tú vayas vida esquiva, en tempestad, de noche,
junto al fugitivo cazador de las lagunas, con el presidiario absuelto,
yo cruzaré los médanos con lumbre, yo abrasaré los remolinos ciegos.
He sido parcial con los vencidos, seguiré siendo parcial ante los muertos.
Recuerdo de mi infancia tres peligros,
recuerdo el mal, los ojos sin pretexto del maldito,
recuerdo el aire que había en las palabras,
recuerdo un sueño, su prodigio, recuerdo el asno blanco del lechero.
He vagado por ahí, irrevocable, alegre, desmedido,
he ofendido con voluntad a los jerarcas
y al atónito perpetuo en su torre de herrumbre.
Salgo de un lugar y voy a otro, me inspiran compasión las jaulas.
No soy distinto al péndulo en la cueva ni al nadador vendado,
mi mayor habilidad es la pereza de encontrarme con otros a menudo.
De lo mismo que me acusan yo me acuso, jamás mis amuletos me abandonan.
Siento ante la noche una curiosidad equívoca,
tengo ante lo súbito un poder magnético.
Hay un pretérito espectro que no olvido,
hay un rumor lejano del infierno,
hay un enigma hebreo junto al mito.
Mi cuadrilla es inhábil para todo, nada sabe.
Tengo un secreto según la estación del año,
un invariable encargo desde el primer aliento.
Me contradigo siempre, la certeza es la sombra de un delito.
De vez en cuando me asocio con proscritos,
encuentro a mi amigo en la revuelta, me hospedo en un lugar impenetrable.
Sé que existe en la belleza el bosque iluminado y la mujer mágica.
He oído la música del próspero océano y la ligera lluvia sobre el tambor de ébano,
he oído el tímpano y el arpa en las catedrales fúnebres,
la esquila del leproso y la irrevocable campana del jurista.
No he aprendido a sufrir, toda severidad es inhumana.
Yo era, yo fui lo que las manos de un padre ante la generación exhausta,
el encomendado a la mudez, el imprudente ileso.
Cada visión del hombre es una idea nueva que visita el mundo,
el silbato con que un cartero festeja la imitación de Dios.
JUAN CARLOS MESTRE
La tumba de Keats, 1999
(fragmento)
Não me arrependo de nada nem de ninguém, a vida é um monólogo
entre a índole extinta duma estrela e a semente natural.
Minha alma cresce silenciosa para um incerto lugar,
das lutuosas feras, do sicário gótico, do infortúnio cego.
Brota o arco íris dos cálices que Homero empunhou,
brota ao fauno o chifre, o eco ao precipício, a luz ao céu.
Esta a fronteira da minha vida, a hora esquerda
exacta no destino do coração dum desertor.
Eu irei onde tu fores, vida esquiva, de noite, na tempestade,
com o fugitivo caçador das lagoas, o presidiário isento,
eu atravessarei os médãos com lume, abrasarei os cegos remoinhos.
Fui parcial com os vencidos, sê-lo-ei com os mortos.
Três perigos recordo da minha infância,
recordo o mal, os olhos sem pretexto do maldito,
recordo o ar que havia nas palavras,
recordo um sonho, seu prodígio, o asno branco do leiteiro.
Andei por aí, irrevogável, alegre, desmedido,
ofendi com vontade os do mando
e o atónito perpétuo em sua torre de ferrugem.
Saio dum lugar para outro, cheio de compaixão pelas jaulas.
Não sou diferente do pêndulo na gruta, nem do nadador vendado,
minha perícia maior é a preguiça de me encontrar muito com os outros.
Eu me acuso daquilo mesmo que me acusam, nem largo jamais meus amuletos.
Sinto perante a noite uma curiosidade equívoca
e tenho perante o súbito um poder magnético.
Há um pretérito espectro que não esqueço,
um distante rumor do inferno,
um enigma hebreu junto ao mito.
Minha quadrilha é inábil para tudo, nada sabe.
Tenho um segredo segundo a estação do ano,
um encargo invariável desde o primeiro alento.
Contradigo-me sempre, a certeza é a sombra dum delito.
Ligo-me de vez em quando com proscritos,
encontro meu amigo na revolta, hospedo-me num lugar impenetrável.
Sei que existe na beleza o bosque iluminado e a mulher mágica.
Senti a música do próspero oceano, a leve chuva no tambor de ébano,
ouvi o tímpano e a harpa nas catedrais fúnebres,
o chocalho do leproso e o sino do jurista, irrevogável.
Não aprendi a sofrer, toda a severidade é desumana.
Eu era, eu fui as mãos de um pai ante a geração exausta,
o imprudente ileso, o encomendado à mudez.
Cada visão do homem é uma ideia nova visitando o mundo,
o assobio do carteiro a festejar a imitação de Deus.
(Trad. A.M.)
.
21.8.15
A.M.Pires Cabral (Flor da esteva-III)
FLOR DA ESTEVA-III
Eu vi a flor da esteva, e pareceu-me
lençóis amarrotados
em batalhas de amor.
A.M.PIRES CABRAL
Gaveta do Fundo
(2013)
.
20.8.15
Roberto Juarroz (Não há regresso)
(94)
No hay regreso.
Pero existen algunos movimientos
que se parecen al regreso
como el relámpago a la luz.
Es como si fueran
formas físicas del recuerdo,
un rostro que vuelve a formarse entre las manos,
un paisaje hundido que se reinstala en la retina,
tratar de medir de nuevo la distancia que nos separa de la tierra,
volver a comprobar que los pájaros nos siguen vigilando.
No hay regreso.
Sin embargo,
todo es una invertida expectativa
que crece hacia atrás.
Roberto Juarroz
Não há regresso.
Mas existem movimentos
parecidos ao regresso
tal como o relâmpago à luz.
É como se fossem
formas físicas da lembrança,
um rosto que volta a formar-se entre as mãos,
uma paisagem esquecida que se reinstala na retina,
medir de novo a distância que nos separa da terra,
verificar de novo que os pássaros nos continuam a vigiar.
Não há regresso.
Porém,
é tudo uma expectativa invertida
que cresce para trás.
(Trad. A.M.)
.
19.8.15
Aquilino Ribeiro (Non possumus)
O português prefere ser enganado a ser desiludido; antes quer morrer esperando, confiado na Virgem, na boa alma, no bom acaso, a ser distinguido com o sincero e formal ‘non possumus’.
AQUILINO RIBEIRO
Caminhos Errados
(Renunciação)
.
Oliverio Girondo (Nocturno)
NOCTURNO
Frescor de los vidrios al apoyar la frente en la ventana.
Luces trasnochadas que al apagarse nos dejan todavía más
solos. Telaraña que los alambres tejen sobre las azoteas. Trote
hueco de los jamelgos que pasan y nos emocionan sin razón.
¿A qué nos hace recordar el aullido de los gatos en celo,
y cuál será la intención de los papeles que se arrastran en los
patios vacíos?
Hora en que los muebles viejos aprovechan para sacarse las
mentiras, y en que las cañerías tienen gritos estrangulados,
como si se asfixiaran dentro de las paredes.
A veces se piensa, al dar vuelta la llave de la electricidad,
en el espanto que sentirán las sombras, y quisiéramos avisarles
para que tuvieran tiempo de acurrucarse en los rincones. Y a
veces las cruces de los postes telefónicos, sobre las azoteas,
tiene algo de siniestro y uno quisiera rozarse a las paredes,
como un gato o como un ladrón.
Noches en las que desearíamos que nos pasaran la mano por el
lomo, y en las que súbitamente se comprende que no hay ternura
comparable a la de acariciar algo que duerme.
Oliverio Girondo
Estão frios os vidros ao encostar a testa na janela.
Luzes tresnoitadas que nos deixam, quando se apagam,
ainda mais sós. Teia de aranha tecida pelos fios sobre os telhados.
Trote vazio das pilecas que passam e nos emocionam sem razão.
De que nos serve recordar o uivo dos gatos no cio
e qual a intenção dos papéis que se arrastam pelos pátios desertos?
Hora que os trastes velhos aproveitam para sacar as
mentiras e em que as tubagens soltam gritos estrangulados
como se as asfixiassem dentro das paredes.
Noites em que desejamos que nos passem a mão
pelo pêlo e em que subitamente se compreende que não há ternura
que se compare a acariciar algo que dorme.
Às vezes, ao ligar o botão da luz, pensa-se no espanto
que hão-de sentir as sombras e gostávamos de avisá-las
para terem tempo de se aninhar pelos cantos. E, por vezes,
as cruzes dos postes do telefone, sobre os telhados,
têm algo de sinistro e só nos apetece roçarmo-nos
pelas paredes, como um gato ou um ladrão.
(Trad. A.M.)
.
18.8.15
Vasco Graça Moura (Praias)
PRAIAS
na praia lá do guincho as velas
de windsurf saltam sobre as ondas
e o meu olhar, equestre,
pula nos peitos das banhistas, enquanto
um cachorro tenta agarrar a cauda.
nos feriados tudo é insuportável
menos o sol e o mar
apesar das famílias.
e sustendo as gaivotas na mais alta
imaginação, porque hoje não vi nenhuma,
o vento traz de tudo
e antónio nobre e lorca às pandas roupas
que modelam os corpos em míticas figuras
com o seu drapejado esvoaçante,
entre dunas e lixo e vendedores de gelados.
restaria o campo, mas
«no campo não há bicas nem paperbacks»
diz uma amiga minha e tem razão.
que seria de nós, bucólicos, sem esses indicadores da alma? dou
lume a uma italiana e enquanto
ela agradece ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale; faz-me lembrar o algarve, mas no verão
o algarve é a continuação
da política por outros meios. antes
a nortada, os surfistas,
na crista da onda, a areia que entra no poema,
e o regresso mais cedo, quando já não se
aguenta.
Vasco Graça Moura
[Instituto Camões]
.
17.8.15
Luis Alberto de Cuenca (Ruiva fantástica)
PELLIROJA FANTÁSTICA
Ni un temblor, ni una arruga en el vestido,
ni una ojera de más : la pelirroja
del poema presenta el formidable
aspecto de quien ha dormido al menos
diez horas, y lo cierto es que ha pasado
toda la noche en vela y no se tiene
en pie. Pero resiste, porque sabe
que es una de las chicas que iluminan
la oscura galería de mis sueños.
Luis Alberto de Cuenca
[El almirante ruina]
Nem uma tremura, uma ruga no vestido,
uma olheira a mais: a ruiva
do poema exibe o formidável aspecto
de quem dormiu dez horas pelo menos,
e o certo é que passou toda a noite
de vela e mal se tem em pé.
Mas resiste, porque sabe
que é uma das belas que iluminam
a escura galeria dos meus sonhos.
(Trad. A.M.)
.
16.8.15
Aquilino Ribeiro (Serpentes)
Numa pausa da trovoada, expectativa medonha e escuridão, estava eu a fechar as vidraças, senti uns braços que se agarravam a mim.
Era Adozinda.
Tremia como varas verdes e, fora de si, mas sem me largar, enfiou-se pela minha cama dentro, arrastando-me.
Puxou as mantas para a cabeça e enleiou-se-me ao corpo.
Trémula e transida, nunca a hera se enroscou assim a um tronco.
E a homem só serpentes.
AQUILINO RIBEIRO
Caminhos Errados
(Renunciação)
.
15.8.15
René Char (Feuillets d’Hypnos 12)
Feuillets d’Hypnos 12
Ce qui m’a mis au monde et qui m’en chassera
n’intervient qu’aux heures où je suis trop faible pour lui résister.
Vieille personne quand je suis né.
Jeune inconnue quand je mourrai.
La seule et même Passante
René Char
O que me pôs neste mundo e me há-de levar
só aparece quando eu estou fraco demais para resistir.
Velhinha quando nasci.
Jovem quando eu morrer.
A mesma e única Passante.
(Trad. A.M.)
.
14.8.15
Joan Margarit (Não estava longe)
NO ESTABA LEJOS, NO ERA DIFÍCIL
Ha llegado este tiempo
cuando ya no hace daño la vida que se pierde,
cuando ya la lujuria es tan sólo
una lámpara inútil, y la envidia se olvida.
Es un tiempo de pérdidas prudentes, necesarias,
y no es un tiempo de llegar
sino de irse. El amor, ahora,
por fin coincide con la inteligencia.
No estaba lejos,
no era difícil. Es un tiempo
que no me deja más que el horizonte
como medida de la soledad.
Un tiempo de tristeza protectora.
JOAN MARGARIT
No estaba lejos, no era difícil
(2011)
[Instantes]
O tempo é chegado
em que já não faz mal a vida que se perde,
em que a luxúria é já tão só
uma lâmpada inútil, e a inveja se esquece.
Um tempo de perdas prudentes, necessárias,
não um tempo de chegar,
mas de partir. O amor, agora,
coincide por fim com a inteligência.
Não estava longe,
não era difícil. É um tempo
que não me deixa mais do que o horizonte
como medida de solidão.
Um tempo de tristeza tutelar.
(Trad. A.M.)
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13.8.15
José Cardoso Pires (País-2)
'Morrer a ocidente'.
Maria achava que nem isso.
Morria-se mas era sem bússola, sem convicção - para aí, sim.
Morte por resignação e por arteirice do a mim não me enganas tu e do salve-se quem puder, pois em matéria de arriscar o Zé Povinho era todo manguitos.
Revoluções poucas e só com dois ou três mortos para ilustrar.
A Maria sabia, a Maria tinha feito contas.
Ou antes, a Alexandra.
A Alexandra é que apurara que em oito séculos de história o Zé Povinho do olho vivo tinha dado menos mortos pela liberdade do que uma pequena república da América Latina com cem anos de existência.
E tudo porque nós cá por casa somos da arma do manguito, morrer, sim, mas devagar e cada qual na sua enxergazinha ainda que bem podrida. (p.278)
JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)
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Javier Salvago (Haiku)
HAIKU
Como nubes de agosto, todo pasa.
La vida nos demuestra
que se puede vivir sin casi todo.
Javier Salvago
Como nuvens de Agosto, tudo passa.
A vida nos demonstra
que se pode viver sem quase tudo.
(Trad. A.M.)
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12.8.15
Paulo Leminski (Um homem com uma dor)
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra
Paulo Leminski
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11.8.15
Josep Palau (Eu me daria a quem me quisesse)
YO ME DARÍA A QUIEN ME QUISIERA
Me daría a quien me quisiera
como si ni cuenta me diera
de esta entrega: como lo haría
un yo de mí que me ignorara.
Yo me daría a quien se diera
a cambio de mí para siempre:
que nada mío me quedara
en el yo que yo recibiera.
Yo me daría por un beso,
por uno solo, que besara
y que lo besado borrara.
Me daría a quien me quisiera
como si ni cuenta me diera:
cual caridad que se me hiciera.
Josep Palau
Eu me daria a quem me quisesse
como se nem conta me desse
desta entrega, como o faria
um eu de mim que ignorasse.
Eu me daria a quem se desse
em troca de mim para sempre,
que nada de meu me ficasse
no eu que eu recebesse.
Eu me daria por um beijo,
por um só, que beijasse
e que o beijado apagasse.
Eu me daria a quem me quisesse
como se nem conta me desse,
caridade que se me fizesse.
(Trad. A.M.)
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10.8.15
Aquilino Ribeiro (Triaga)
O frade emborcou a triaga, após o que fez uma careta feia, horrenda, as comissuras dos lábios arrepanhadas para os zigomas, boca aberta até o esófago mostrando a rija dentadura de lobo, a testa lavrada por sulcos transversais como uma leira.
AQUILINO RIBEIRO
Caminhos Errados
(Salamaleque)
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Gloria Fuertes (Algo sucede)
ALGO SUCEDE
Algo me pasa que en mi pecho existe.
Vuelan hormigas y discurren peces.
Suena la sangre y el tambor convoca.
Hay un incendio cerca de mi pulso.
De nuevo el tigre lanza su mensaje.
Tiene mi cama sed de otra figura.
Vuelven las venas a cantar presagios.
Torna el insomnio con sus mil disfraces.
Lavo mis manos para hacerlas suyas,
peino el cabello, río a las vecinas.
Y cuanto miro se convierte en agua.
¡Esto es amor y lo demás miseria!
Gloria Fuertes
[Emma Gunst]
Algo me está acontecendo, aqui dentro do peito.
Voam formigas, discorrem peixes.
O sangue soa e rufa o tambor.
Há um incêndio ao pé do meu pulso.
O tigre lança de novo sua mensagem.
Meu leito tem sede de outra figura.
Tornam as veias a cantar presságios.
Volta a insónia com seus mil disfarces.
Lavo as mãos para as fazer suas,
penteio o cabelo, sorrio às vizinhas.
E tudo o que miro converte-se em água.
Isto é amor, o restante miséria!
(Trad. A.M.)
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9.8.15
Pedro da Silveira (Menina com papagaio)
MENINA COM PAPAGAIO
Ainda na sua mão
que lhe dirá o barbante
de como se vê o mundo
com os olhos do vento?
Pedro da Silveira
[Pico da vigia]
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8.8.15
Josep M. Rodríguez (Contradição)
CONTRADIÇÃO
O final da tarde
é um limão com mofo.
Tem um tom esverdeado,
como de infância triste:
a infância do meu pai.
É nisso que penso
enquanto vou de visita ao hospital.
Assusta-me estar aqui:
O quarto,
o soro,
as veias dos seus braços como fios de lã.
Acabou de se dar conta de que voltei.
Sorri-me.
Como posso dizer-lhe
que o melhor não está no que já fomos?
Josep M. Rodríguez
(Trad. Manuel de Freitas)
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7.8.15
José Cardoso Pires (País-1)
Desceu a marginal a pé.
À sua esquerda carros em vaivém; Tejo à direita, a caminho do mar.
Sol a jorros.
A Alexandra é que estava sempre a dizer que o Tejo era um rio grande de mais para o País; que toda a vida tinha sido maltratado pela gente e por isso é que fugia para o mar.
Mar, que o esperava de braços abertos e com todas as honras, apressava-se a acrescentar Maria, pois um respeitável como o Tejo era bem recebido em qualquer parte.
Lembrou-se do verso de Ruy Belo, 'O meu país é o que o mar não quer', e, sempre a andar, cigarro na boca e sempre a olhar, a espairecer, puxou do relógiozinho de prata.
Três horas.
'O meu país', esta resignação amável, este caminhar cabisbaixo atrás da sombra que nos comanda, aí estava o país que o mar não queria. (p.277)
JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)
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Ernesto Pérez Vallejo (O outro lado do meu silêncio)
AL OTRO LADO DE MI SILENCIO
Me ven solo y piensan que estoy triste.
Se preguntan por qué no soy capaz de relacionarme,
por qué no acompaño sus risas,
o me hago partícipe de sus historias cotidianas.
Por qué no les cuento algún secreto inconfesable
para así no tener que avergonzarse de los suyos.
Ni uno solo de todos ellos
ve mi soledad como elección.
Ellos, que cuando por fin te decides a hablar
encuentran en tus palabras alguna similitud
con aquello que les ocurrió una vez
y dejan tus labios huérfanos de la siguiente frase
para mover los suyos hasta la extinción de la saliva.
Los mismos que te preguntan el típico - ¿ Hola que tal?
Y se apoderan también de la respuesta.
Siempre estarán mucho mejor o mucho peor que tú
porque incluso a la hora de estar jodidos
también necesitan la victoria.
Soy yo el tipo raro,
el que solo ha movido un pie en toda la fiesta,
el que va ya por la cuarta copa
para soportar con cierta dignidad
cada uno de sus diálogos.
Que a Noelia el sexo anal le parece un asco,
que Víctor ha dejado preñada a una tal Eva,
que han echado del trabajo a Sergio
y que a quién coño le va a extrañar con lo flojo que ha sido siempre.
Que con Alba todos coinciden en que cada día está mas gorda
pero justo cuando ha aparecido,
han alabado su vestido
y le han confesado que le está sentando de maravilla
ese nuevo gimnasio.
Que Alvaro ya ha ido cuatro veces al baño
y nadie puede mear tantas veces en tan poco tiempo.
Que eso es lo que tienen las malas compañías.
Luego una hora después, Alvaro, las malas compañías
y los mismos que me lo han dicho
hacen cola en la puerta del aseo
moviendo la mandíbula al ritmo de una canción
que ni siquiera oyen.
Y en toda esta selva
la única persona que me importa ni me mira.
Sus ojos me dirían más
que todas las lenguas juntas
de este maldito mundo.
Y si además se acercara
yo no solo movería un pie.
Tal vez hasta le contaría algo gracioso,
los lunares de sus brazos
y un secreto.
O cien.
Y hasta puede que en esta mierda de noche
yo también supiera sonreír.
Pero ni caso.
Yo soy el hombre extraño.
- Habla poco. Dicen.
- Ni siquiera mira a los ojos. Murmuran.
- Es demasiado antipático. Aseguran.
Y ella, la chica que no me observa,
se va de la mano con él,
el chico con el récord en abdominales
que desea comprobar si lo de su novia Noelia y el sexo anal,
no es una moda extendida.
Yo me marcho a casa sin más.
Mientras la gente nunca logra entender
porque siempre estoy tan solo
y yo jamás conseguiré explicarme
como ellos todavía
son capaces de aguantarse.
Ernesto Pérez Vallejo
[Los lunes que te debo]
Vêem-me sozinho e pensam que estou triste,
perguntam-se porque é que eu não me dou mais,
porque não lhes acompanho as risadas
ou participo das suas histórias quotidianas,
porque não lhes conto algum segredo inconfessável,
para os livrar da vergonha dos deles.
Nem um só deles olha
para a minha solidão como escolha.
Eles, que quando por fim abres a boca
vêem-te nas palavras alguma semelhança
com o que já lhes aconteceu
e deixam-te os lábios órfãos da frase seguinte
para mexerem os deles até se acabar a saliva.
Os mesmos que te dizem o costumeiro: Então, que tal?
E logo se apossam também da resposta.
Hão-de estar sempre muito melhor ou então muito pior que tu
porque mesmo na hora da porra
precisam muito da vitória.
Eu é que sou o tipo esquisito,
o que só mexeu um pé em toda a festa,
o que vai já no quarto copo
para lhes suportar com certa dignidade
cada um dos seus diálogos.
Que o sexo anal à Noelia mete-lhe nojo,
que o Víctor engravidou uma tal Eva,
que o Sérgio foi despedido
e quem é que pode estranhar frouxo como ele é.
Que Alba todos concordam que está cada vez mais gorda
mas olha aí lá vem ela
e todos lhe gabam o vestido,
dizendo mesmo que aquele novo ginásio
está-lhe a fazer maravilhas.
Que Álvaro já foi quatro vezes ao banheiro
o que é estranhíssimo em tão pouco tempo,
mas é no que dão as más companhias.
A seguir, passado uma hora, o Álvaro, as más companhias
e aqueles mesmos que mo disseram
fazem fila à porta do banheiro
mexendo a mandíbula ao ritmo de uma canção
que nem sequer escutam.
E nesta selva toda
a única pessoa que me interessa nem para mim olha.
Os olhos dela diziam-me mais
que todas as línguas juntas
deste mundo amaldiçoado.
E se por acaso se aproximasse
eu já não desandava mais pé,
talvez até lhe contasse uma graça qualquer,
ou lhe contasse os sinais dos braços
mais um segredo.
Ou cem.
E porventura nesta merda de noite
até eu saberia sorrir.
Mas nem nada.
Eu sou o homem estranho.
- Fala pouco, dizem.
- Nem olha nos olhos, murmuram.
- É muito antipático, afirmam.
E ela, a moça que nem me contempla,
sai de mão dada com ele,
o campeão dos abdominais,
que quer averiguar se aquilo do sexo anal
e da sua noiva Noelia não é moda que já se tenha espalhado.
Eu vou mas é para casa.
As pessoas não conseguem entender
porque é que eu ando sempre sozinho;
e eu cá não sou capaz de compreender
como é que elas ainda conseguem aguentar-se.
(Trad. A.M.)
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6.8.15
Sophia de Mello Breyner Andresen (Pranto pelo dia de hoje)
PRANTO PELO DIA DE HOJE
Nunca choraremos bastante quando vemos
o gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
que quem ousa lutar é destruído
por troças por insídias por venenos
e por outras maneiras que sabemos
tão sábias tão subtis e tão peritas
que nem podem sequer ser bem descritas
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Livro Sexto
(1962)
.
5.8.15
Josefa Parra (A infidelidade irremediável)
LA INFIDELIDAD IRREMEDIABLE
Si, al final,
ha de comer la tierra tus delicados huesos,
y ha de dormir tu boca como una orquídea tierna
debajo de raíces y lianas, qué importa
que estés tan descubierto y accesible,
que encauces tu saliva en otros surcos,
que te des a pedazos cada noche
como Profana, y Cruel, y Santa Forma.
Si, al final,
has de ser a despecho de tu carne radiante
y de todo el deseo con que te he coronado
espléndido despojo que posea la muerte…
JOSEFA PARRA RAMOS
Elogio a la mala yerba
(1996)
Se, no fim,
a terra há-de comer teus ossos delicados
e tua boca há-de dormir como orquídea terna
debaixo de lianas e raízes, que importa
que estejas tão à mostra e acessível,
e encaminhes tua saliva por outros sulcos,
ou te dês por bocados cada noite
como Profana, e Cruel, e Santa Forma.
Se, no fim,
hás-de ser, apesar de tua carne esplêndida
e do desejo com que te coroei,
excelente despojo possuído pela morte...
(Trad. A.M.)
.
4.8.15
José Cardoso Pires (Opus Night-10)
O pior é que o cavalheiro era de improvisos e difícil de comover quando apontava para os ditos, e como tal Sophia preparou-se para guardar distâncias.
Fez conversa de nada e de coisa nenhuma, inverno, desastres, estradas péssimas, e, por desastres, contou a dramática morte do professor Henndorf, empresário do Circo Mammuth, que se despistou no Bosque de Bolonha.
'Henndorf tinha a paixão do automobilismo', adiantou ela.
'O carro entrou no bosque a tanta velocidade que deitou uma árvore abaixo'.
'Qual delas?', perguntou o Opus.
Sophia tornou a recuar para perceber em perspectiva.
O homem estava todo para o gótico naquela noite, todo aos picos e às voltinhas, o melhor a fazer era disfarçar e deixar seguir. (p.267)
JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)
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Cristian Aliaga (Arte poética)
ARTE POÉTICA
Un poeta –un lobo sin cartel–
no muestra sus cartas, no baraja
de nuevo, no escancia vinos
que no es capaz de beber.
Es un animal procaz
que no ve detrás de las ventanas
sino más allá de las rejas,
un espectro sordo
que no domina su carga
y se entrega a ella.
Un poeta –un punto azul sobre la mesa–
no mira para ver
sino para abrir los ojos.
Cristian Aliaga
Um poeta – um lobo sem cartaz –
não mostra as cartas, não baralha
de novo, não escanceia vinhos
que não consegue beber.
É um animal insolente
que não vê por trás das janelas
mas para lá das grades,
um espectro surdo
que não domina a sua carga
e a ela se entrega.
Um poeta – um ponto azul sobre a mesa –
não olha para ver,
mas sim para abrir os olhos.
(Trad. A.M.)
.
3.8.15
Alberto Pimenta (A cadência dos bichinhos de conta)
A CADÊNCIA DOS BICHINHOS DE CONTA
os bichinhos do ouvido
fazem de conta que escutam
o que os bichinhos de conta
fazem de conta que contam
assim tudo corre bem
para uns e para outros
nem uns dizem que são mudos
nem os outros que são moucos
ALBERTO PIMENTA
Bestiário Lusitano
2.ª edição (2014)
[Hospedaria Camões]
.
2.8.15
José María Zonta (Uma pessoa parece feliz)
Uno parece feliz.
No entrar como turista en el corazón de una mujer
haciendo fotos
dejando latas de cerveza
buscando sólo catedrales inmensas
y estatuas transparentes
con la mochila llena de mapas
y haciendo comidas rápidas
hay un país
siete ciudades
una cordillera y un invierno
en el corazón de una mujer
no bebas allí sólo un vaso de mar
no entres en avión
toma el tren de la media luna
no reveles allí tus fotos en una hora
si no hace demasiado frío
entra desnudo
no lleves paraguas
y sobre todo no tales árboles
en el corazón de una mujer
no acostumbran volver a crecer.
José María Zonta
Não entres como turista no coração duma mulher
a bater fotos
a deixar latas de cerveja
buscando só imensas catedrais
e estátuas transparentes
com a mochila cheia de mapas
e a comer refeições ligeiras
há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração duma mulher
não bebas aí só um copo de mar
não vás de avião
toma o comboio da meia-lua
não reveles ali tuas fotos na hora
entra nu
se não fizer muito frio
não leves chapéu-de-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração duma mulher
não costumam voltar a crescer.
(Trad. A.M.)
.
1.8.15
José Cardoso Pires (Opus Night-9)
Se Opus Night dispusesse de registo de bordo poderia ter comprovado que nessas quarenta e tal horas à bolina tinha atracado a mesas de poker e a um sem-número de bares errantes; que dormitara, de pé e de sexo na mão, à boca de urinóis; que atravessara nevoeiros de memória, coisa frequente; que se sentara à cerveja na Academia do Tremoço, com camarões a marinharem-lhe pela lapela; que abaterá alguns bebedores fora de escala em conversares malignos.
Que, finalmente, aí pelas zero e trinta do segundo dia, deu de proa com a cabecinha de Sophia Bonifrates que deslizava em iceberg no topo duma capa negra submersa na escuridão, e foi desse pleonasmo, preto sobre a noite, trevas sobe o escuro, que nasceu a fotografia onde eles iriam aparecer juntos.
Chocaram-se à porta do Crocodilo.
Sophia, tilintando as chaves do carro na ponta dos dedos, vinha ao sabor da corrente e ia até lá dentro a ver se encontrava alguém.
A ver se espairecia, explicou ela. (p.266)
JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)
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Begoña Abad (Nunca soube calcular as distâncias)
Nunca he sabido calcular las distancias
y debe ser por eso
que siempre me acerco demasiado
al abismo de vivir.
Me acerco tanto
que la vida, de vez en cuando,
me chamusca las pestañas
y en ocasiones me hiela la palabra.
Begoña Abad
Nunca soube calcular as distâncias
e deve ser por isso
que me chego sempre demais
ao abismo de viver.
Chego-me tanto,
que a vida, de vez em quando,
me chamusca as pestanas
e em certas alturas congela-me a palavra.
(Trad. A.M.)
.
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