A NEVE NAS ALTURAS
Sabemos que uma coisa não existe
senão no modo como a olhamos. A água benta
é apenas um bom exemplo:
o Homem é o único animal que a distingue
da água da torneira. Assim
a neve nas suas múltiplas representações:
a neve prosaica
que significa desconforto
e se mistura com a lama e desliza, entre espessa
e deslaçada, nas ruas e nos pátios;
a neve muito branca elevada à categoria simbólica
da purificação; a neve e o seu carácter
lúdico, jogo e divertimento,
riso e corrida nas descidas das veredas lisas.
A neve caiu mais uma vez (e deu-lhe forte)
sobre as aldeias e as vilas, das cumeadas
às encostas da urze, das colinas aos vales da aluvião,
dos largos aos terraços, dos telhados das casas
aos adros das igrejas. E novamente
o múltiplo olhar do mundo
a desenhou em cartas de rumo inúmeras, derivações,
diferenças: da exaltação à palavra avisada
do velho das Alturas do Barroso
que não se teve que não dissesse à algarvia jovem
que saltava na neve e deslizava como se estivesse por dentro
da nuvem dos sonhos dos livros: «pois se gosta
tanto dela
leve-a toda que não nos faz falta nenhuma.»
José Carlos Barros
[
Casa de Cacela]
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