30.4.13

Ver (131)






Doiro, sempre
(Pinhão>Pala>S.Leonardo)



Carlos Marzal (Jogo infantil)





JUEGO DE NIÑOS



Cuatro o cinco palabras aprendidas
en la noche del tiempo, siendo niños,
nada más que esas cuatro o esas cinco
palabras aprendidas son precisas,
para nombrar los dos o tres asuntos
que merecen nombrarse en esta vida.

El resto es lo que queda cuando a la poesía
le hemos quitado todo lo que es la poesía.


Carlos Marzal



Quatro ou cinco palavras aprendidas
na noite do tempo, em crianças,
nada mais que essas quatro ou cinco
palavras são precisas
para nomear os dois ou três assuntos
que na vida vale a pena nomear.

O resto é aquilo que sobra quando tiramos
à poesia tudo o que é a poesia.


(Trad. A.M.)

.

29.4.13

Rui Knopfli (Memória da água)





MEMÓRIA DA ÁGUA



Gestos e palavras que crera
escritos a fogo
na dura parede do tempo.

De pura piedade os bebeu
a memória da água
que, nada retendo,

a tudo dá sepultura.


Rui Knopfli


[Cómo cantaba mayo]

.

28.4.13

Susana Cattaneo (Testamento)




TESTAMENTO



A mi madre, las llaves del Universo.
A mis perras, la magia de la felicidad.
A los militares, un guiso de tornillos.
A Pinochet, un féretro de cartón.
A Cátulo Castillo, un refugio infinito para canes.
A Videla, un destino sin ventanas.
A Frida Kahlo, colores de arco iris.
A Cris, la alegría y toda la música jazz.
Al gato Iván, el misterio de las noches.
A Pilar, mi emoción frente a Sevilla.
A la policía, un libro de modales y sensibilidad.
A los crueles con los animales, mis deseos de muerte.
A Jetzabel, reina judía, un indulto irrevocable.
A Grace, la sonrisa de la Gioconda.
A los toreros, flechas filosas para su corazón.
A Saramago, un aplauso interminable.
A Antonia, la filosofía Zen.
A los colonizadores, un puñado de estopa en la garganta.
A los Testamentos, el concepto de justicia.
A la ideología iraní, la bomba atómica.
A los nazis, la bomba de neutrones.
A Parra, un regalo para Janick y otro para Eiko.
A Copérnico, un guiño de triunfo.
A Alan Parker, un cuadro de Dalí.
A la Camargue, nuevas razas de caballos.
A Cioran, el consuelo de un colega.
A Olga Orozco, la reverencia más grande.
A Pizarnik, siempre el recuerdo.
A la inhumanidad, mi más profundo desprecio.
A la que fui, la libertad.

Susana Cattaneo


[Zapatos Rojos]



A minha mãe, as chaves do Universo.
Às minhas cadelas, a magia da felicidade.
Aos militares, um guisado de parafusos.
A Pinochet, um féretro de cartão.
A Cátulo Castillo, um refúgio infinito para cães.
A Videla, um destino sem janelas.
A Frida Kahlo, as cores do arco-íris.
A Cris, a alegria e a música toda de jazz.
Ao gato Ivan, o mistério das noites.
A Pilar, minha emoção frente a Sevilha.
À polícia, um livro de etiqueta e sensibilidade.
Aos que são cruéis com os animais, meus desejos de morte.
A Jetzabel, rainha judia, um indulto irrevogável.
A Grace, o sorriso da Gioconda.
Aos toureiros, farpas aguçadas para o coração.
A Saramago, um aplauso interminável.
A Antonia, a filosofia Zen.
Aos colonizadores, um punhado de estopa na goela.
Aos Testamentos, o conceito de justiça.
À ideologia iraniana, a bomba atómica.
Aos nazis, a bomba de neutrões.
A Parra, um presente para Janick e outro para Eiko.
A Copérnico, uma piscadela de triunfo.
A Alan Parker, um quadro de Dalí.
À Camargue, novas raças de cavalos.
A Cioran, o consolo de um colega.
A Olga Orozco, a maior das reverências.
A Pizarnik, a lembrança sempre.
À desumanidade, meu desprezo mais profundo.
Àquela que eu fui, a liberdade.

(Trad. A.M.)

.

27.4.13

Ver (130)





Pico
Doiro
Algarve
(Algar de Benagil)


[Maravilhas de Portugal]


.

Joan Margarit (Como as gaivotas)





COMO LAS GAVIOTAS



Cruzando temporales
se aprende a planear.
Sobrevolar la vida
para avanzar usando
la violencia del viento.
Igual que las gaviotas.


JOAN MARGARIT
No estaba lejos, no era difícil
(2011)

[Instantes]



Atravessando o temporal
aprendemos a planar.
Sobrevoar a vida
para avançar usando
a violência do vento.
Tal como as gaivotas.

(Trad. A.M.)



> São as gaivotas (Ángel González)

.

26.4.13

A.M.Pires Cabral (Como faz um verme)





COMO FAZ UM VERME



O que faz um verme? Some-se no chão,
regressando ao lugar donde saiu
incauto para a luz que não entende.

Ao contrário do verme,
a mim nunca me foi molesta a luz.
Ao invés disso, execrei a escuridão
sempre que esta me violou os olhos,
e mos tornou inúteis.

No mais, igual a um verme, tal e qual.
Procuro deslizar silencioso.
E quanto a essa coisa de sumir-me no chão,
mais dia menos dia, é garantido.


A. M. Pires Cabral


[Luz & sombra]


.

25.4.13

Pedro Casariego (Anúncio)





ANUNCIO POR PALABRAS


Necesito chica que sepa planchar
mis labios con los suyos y tende
r su ropa eternamente junto a la
mía y quitar las manchas de mi c
orazón con su mirada yo pondré
la mesa y la caricia en su ramo
de lunas y trataré de andar muy
despacio
            cuando
                     ella
                          no
                              tenga
                                       prisa

Pedro Casariego



Preciso nina que saiba passar
meus lábios com os seus estende
r a roupa eternamente ao pé da
minha e tirar as nódoas do meu c
oração com os olhos eu porei
a mesa e a carícia em seu ramo
de luas e cuidarei de andar
muito devagar
                 quando
                          ela
                              não
                                  tiver
                                        pressa

(Trad. A.M.)



>>  Pedro Casariego (sítio-tudo+algo) / A media voz (18p) / Wikipedia


.

24.4.13

Ver (129)







[Roteiro do Douro]


.


Antonio Pérez Morte (Nortada)





CIERZO



Caminamos en la noche tras la luz de un verso,
con él encendimos los recuerdos:
Los recuerdos encendidos que siempre ardieron.
Charlamos al amor del fuego, del fuego del amor.
Luego llegó el día:
El cierzo arrastró las cenizas,
Borró las huellas del incendio.

Antonio Pérez Morte



Caminhámos na noite atrás da luz de um verso,
com que acendemos as lembranças,
lembranças acesas ardendo sempre.
Falámos do fogo do amor, ao amor do fogo.
Depois veio o dia,
o vento levou as cinzas
e apagou os sinais do incêndio.

(Trad. A.M.)

.

23.4.13

Valter Hugo Mãe (Burocracia do fim de uma longa amizade)





BUROCRACIA DO FIM DE UMA LONGA AMIZADE



serve para lhe dizer, senhor
a. n., que depois do que
me fez, levei ao lixo cada objecto
que conservava a sua memória e que
eduquei a cabeça a pensar só em
excrementos sempre que por inércia
me quiser aborrecer com lembranças
do que vivi perto de si. que tolice, a
cabeça prega-nos truques, mas com o
presente estará sanado o vício e o
senhor, de vício, passará a ser um
cidadão livre da minha admiração e
cuidado. vai escrito aos dias vinte
de abril de dois mil e sete e vigora
em território nacional e comunitário
por aplicação directa e no resto do
mundo por força dos acordos tácitos
de quem tem vergonha na cara. no mais,
saiba que este poema o obriga a não
chegar à minha pessoa a menos de
vinte mil metros e a não me dirigir
palavra. com vocação para toda a
vida, este poema não é nada comparado
com a traição de que foi capaz. já penso
em excrementos quando escrevo
estes últimos versos e o meu coração
fecha-se naturalmente a toda e qualquer
ternura da sua amizade


VALTER HUGO MÃE
Contabilidade
Poesia 1996-2010
Alfaguara (2010)

.

22.4.13

Eloy Sánchez Rosillo (Anotação de uma tarde)





APUNTE DE UNA TARDE



Que otros canten las armas y a los héroes,
los abismos del ser
o la complejidad del universo.

Dejadme a mí que diga la gracia irrepetible
de esta tarde de abril, la efímera hermosura
de la luz, que es mi amiga y que plácidamente
acaricia el papel en el que escribo.

ELOY SÁNCHEZ ROSILLO
Autorretratos
(1989)




Outros que cantem as armas e os heróis,
os abismos do ser,
a complexidade do universo.

A mim deixai-me falar da graça irrepetível
desta tarde de Abril, a efémera beleza
da luz, minha amiga, que placidamente
afaga o papel em que escrevo.


(Trad. A.M.)

.

21.4.13

João Araújo Correia (Cinza do Lar - Vocabulário)




abemolar (amaciar, amolecer, suavizar /abemolava-se a vozinha da comendadora)
acepilhada (escovada, de ‘cepilla’=escova / a pedra de armas, lavada e...)
adjunto (ajuntamento, reunião)
aguazil (agente de justiça, meirinho, beleguim)
aguilhada (vara comprida de conduzir/’chamar’ a junta de bois)
alancar (carregar, transportar/ vão... com a pipa)
andaina (fato, véstia / busto direito e... asseada)
arcanho* (=arcano? que ou o que é misterioso, secreto)
atesto (acto de atestar, encher)
aziúme (azedume)
bacelada (baciada, conteúdo de bacia / uma... de berças e farelo)
beleguim (agente da justiça, meirinho, aguazil)
berças (couves)
bolaria (de ‘bolo’=palmatoada / ensinava-me sem berros e sem...)
cabeçada (corda de enfiar a cabeça da montada)
cangalho (coisa sem préstimo, desconjuntada)
carriola (carreira, fila / havia uma... de cortiços povoados de abelhas)
cepuda (de ‘cepo’ / com as mãos cepudas / pronúncia: ‘sapudas’)
cernelha (fio do lombo, serro do animal, onde se unem as espáduas)
chamiço (pauzinho / a senhora morreu, parecia um...)
chamo (chamada / veio ao primeiro...)
chanfalho (espada velha, faca que não corta / os zeladores, armados de...)
cismático (pensativo, que cisma)
colada (má... / mau fundo, mau coração)
derrancar (estragar, corromper/ estas palavras derrancaram-lhe a alma)
eleia* (por ‘enleia’, fio, baraço /um trapézio que armei, com duas eleias e um sarrafo)
empecadar (sujar, poluir, com pecado /a minha presença empecadava o ar)
encorporar (endireitar, levantar / que me encorporasse. Cavaleiro curvado uma vergonha)
enristar (pôr em riste / recuando o papo e enristando o bico)
entestar (confinar, ficar frente ou junto a / o que deves fazer é entestar-lhe a rabeira)
escancha (cancha, passo alargado / a meio do caminho, mais... menos...)
escandido (seco, ardido / levava a boca escandida do cigarro)
escouce (acto de escouçar, esvaziar totalmente)
espipado (repuxado, estalado, rompido /abanava-se com um leque...)
espotricadela (salto, pulo, brincadeira /de’espotricar', potro)
esterlinto (inquieto, remexido /tornou-se o mais... de todos os rapazes)
forjicar (cozer, cozinhar)
fraguar (reinar, brincar, divertir-se / canzoada infinita, ou fraguava ou se degladiava)
inculca (indagação, averiguação / deitei inculcas para saber quem era)
malhadiço (de ‘malha’=pancada / que leva muita, a quem bater não adianta)
matula (corja, grupo de pess. ruins, membro desse / o chefe dos matulas do meu armazém)
meirinho (agente de justiça, beleguim, aguazil)
mingueira* (de minguar, decrescer, diminuir, falhar, faltar)
mondongo (coisa suja, imunda /uma pilheira, onde jazia enterrada... em ignóbeis mondongos)
morzelo (cavalo preto, murzelo /montava a burra convencido de que montava um...)
ousio (ousadia, coragem, atrevimento)
padiola (adj. preguiçoso, lento / chamava-lhes padiolas, cangalhos, arcanhos)
pelerina (pequena capa ou manto, romeira / a triste... que lhe engalanava o pescoço)
pilheira (lugar da cinza, atrás da lareira)
pitança (comida, pitéu)
quantas (cantés, quanto a / quantas guarda-sol, para quê?)
queira (canzoada, matilha de cães / é mais um na minha...)
rabeira (de rabo, cauda, fim)
sarrafo (tira ou pau, fino e comprido, ripa, cacete /v. ‘eleia’)
taleiga (saco, sacola)
tençoeiro (pertinaz, de ‘tenção’ / era homem...)
tredo (intrépido, atrevido, hábil)
trêfego (agitado, irrequieto /havia cães... e cães sossegados)
tropicado (pisoteado, calcado / caminho longo...)
volitar (esvoaçar / eu deixava-a... diante da minha face / abelha)

_____________________________
(*) N/ encontrado nos dicionários

.

Javier Salvago (Perto do céu)





CERCA DEL CIELO



A aquella tabernucha la llamaban
«Cerca del cielo», por los altos techos
que cobijaban a los parroquianos.
Misterios del azar: al tabernero
lo apodaban «El tío de la nube»,
por la mancha del ojo.
                            Si ahora vuelvo
hacia allá la mirada, puedo ver
a mi padre, feliz, cerca del cielo
—sólo por el poder que tiene el vino
de pintar de colores lo que es negro—
apoyado en la barra, rodeado
de amigotes juerguistas y risueños,
cantando por fandangos y alegrías,
sin respetar la noche ni el letrero
de «Se prohíbe el cante».
                                     Y puedo
verme también a mí, sentado
sobre un alto barril —apenas tengo
ocho inocentes años—
tiritando de frío,
muerto de hambre y de sueño,
avergonzado,
cerca del infierno.

Javier Salvago



Aquela taberna chamavam-lhe
“Perto do céu”, pelos telhados altos
que abrigavam os fregueses.
Mistérios do acaso, o taberneiro
apodavam-no “O tipo da nuvem”,
por causa da mancha do olho.
                              Se voltar agora
o meu olhar para lá, consigo ver
meu pai, feliz da vida, perto do céu
– só do poder que o vinho tem
de pintar a cores aquilo que é negro –
apoiado no balcão, rodeado
de amigalhaços borguistas e risonhos,
a cantar por fandangos e alegrias,
sem respeitar a noite nem o letreiro
“É proibido cantar”.
                                  E posso
ver-me a mim também, sentado
em cima dum barril alto – mal tenho
oito anos inocentes –
tiritando de frio,
morto de fome e de sono,
envergonhado,
perto do inferno.

(Trad. A.M.)

.

20.4.13

Ruy Belo (Odeio este tempo detergente)




ODEIO ESTE TEMPO DETERGENTE



Odeio este tempo detergente
um tempo português que até utilizou
os primeiros acordes da quinta sinfonia de beethoven
como indicativo da voz do ocidente
chamada actualmente a emissão em línguas estrangeiras
um tempo que parou e só mudou
o nome que puseram num mundo que muda
a coisas que afinal permaneceram
um tempo português que alguma vez até em camões vê
o antecessor e criador de coisa como a nato
com a profética visão de quem consegue conceber tal obra
bem pouco literária por sinal e só possível graças à visão
de quem com um só olho vê as coisas quatrocentos anos antes
Odeio este meu tempo detergente
de uma poesia que discreta até se erótica antigamente
hoje se prostitui numa publicidade
devida a algum poeta público que a certo detergente
deu de repente esse teu nome musical de musa
a ti precisamente a ti nesse teu rosto sorridente
onde o poeta público publicitário porventura viu
sobressair teu riso nesse território de alegria
e a brancura mais alva nesses dentes alvejar
E eu que faço eu aqui em todo este tempo detergente quando
sinto subitamente cem saudades tuas
que posso que não seja odiar mais um meio que jamais
tentaria impedir evitaria um tempo que consente até contente
que faças dentro em pouco um ano mais
um meio onde nem mesmo eu mulher afinal sei
que terei de fazer para deter ao menos um momento essa tua idade
a tua juventude se possível anos antes de haver-te conhecido
por acaso e já tarde na cidade onde nasceste
cidade que unamuno diz viver morrer apenas por amor
amor morto ou mortal mas amor imortal
cidade solidão as ruas muita gente os sons o sol
difusos e confusos corredores de uma faculdade
folhas que se renovam rostos que outros rostos
tão firmes tão presentes permanentes um só ano antes
friamente destroem sem deixar sequer
ao menos uma marca nessa fria impassível pedra
o tempo os sóis dos séculos cingindo os cintos da cidade
dessa cidade onde o povo morre novo à volta
do mesmo monumento destinado a exaltá-lo
cidade onde afinal a paisagem é pretexto para o homem
cidade portuguesa ó portugal ó parte da hispânia maior
maneira triste de se ser ibéria onde
da terra emerge o homem que depois o rosto nela imerge
ó portugal dos pescadores de espinho
espinho do suicida laranjeira espinho praia
antiga amiga e conhecida de unamuno
a praia dos seus últimos passeios portugueses
angústia atlântica e odor ó dor olor a campo
praia que so' existe quando alguém a veste
coisa que foi somente quando tu mulher a viste
Aqui em portugal aqui na vasta praia portuguesa
aqui nasci e ao nascer morri
como morri a morte que por sorte sempre tive
pesadamente do mais alto do meu peso dos meus anos
em cada um dos sítios onde um dia estive
Aqui tive dezasseis anos aos dezasseis anos
aqui só vejo pés há muitos anos já
Aqui o meu chapéu de chuva mais ao sul aceita em chapa o sol
chapéu que fecho quando fecha o sol definidor do dia
Tive um passado agora inacessível um passado
tão alto como a torre do relógio da aldeia
que pontual pontua a passagem do tempo
um tempo não ainda detergente um tempo
afinal só visível no sensível alastrar da sombra
ao longo desse pátio só possível ao adolescente
que mais tarde e mais só e de maneira mais sensível
mais só se sentirá no meio da imensa gente
que se sentia ali entre a andorinha e a nespereira
Não o sabia então mas dominava um mundo
esse mundo que espero que me espere um dia ao fundo
lá quando findo o dia sob o chão me afundo e ao final
em terra e em verdade é que me fundo
Mas eu aqui completamente envolto neste tempo detergente
é da segunda-feira e da semana que preciso pois
posso lutar melhor por uma luz melhor
do que esta luz do mar à hora do entardecer
É da cidade é da publicidade é da perversidade
que preciso e não tenho aqui na praia
Não tenho nem o mar nem tão rudimentar
a técnica de olhar alguém as minhas mãos
para me devassar a vã vida privada
É de inverno é domingo estou sozinho aqui na praia
regresso a casa à noite apanho eu próprio a roupa no quintal
e tenho a sensação de quem alguma coisa
faz pela vez* primeira e sente bem ou mal
que tarde toma agora o seu banho lustral


Ruy Belo

______________________

(*) A palavra ‘vez’ figura no original, de “Transporte no Tempo” (Moraes, 1973), mas não aparece, por gralha, no vol. I da ‘obra poética’ (Presença, 1981).

.

19.4.13

David González (O quinto elemento)





EL QUINTO ELEMENTO



Somos

agua
pero todavía morimos
de sed

aire
pero aún no sabemos
como elevarnos

fuego
pero incapaces de dar
calor

tierra
pero nos asusta
volver a ella

somos dioses
con complejo
de hombres


David González


[El tiempo que nunca cesa]



Somos

água
mas ainda morremos
de sede

ar
porém não sabemos
como elevar-nos

fogo
mas incapazes de dar
calor

terra
mas assusta-nos
voltar a ela

somos deuses
com complexo
de homens


(Trad. A.M.)

.

18.4.13

João Araújo Correia (Fiz exame e fiquei óptimo)





Fiz exame do primeiro grau e fiquei óptimo – assim se dizia naquele tempo.

Como ficasse óptimo, isto é, como o júri não tivesse à mão superlativo mais condigno do meu primeiro saber, resolveu minha mãe coroá-lo com um prémio.

Deu-me uma burra e liberdade para percorrer sobre ela os andurriais da minha aldeia.

Lembro-me do que gozei e do que a burra sofreu.

Hoje, se encontro no meu caminho um burro, trato-o bem.

Perdoo-lhe um ou mais coices, supondo-o descendente daquela mártir.



- JOÃO ARAÚJO CORREIA, Cinza do Lar (Dia de Natal).

.

Ana Pérez Cañamares (Herança)






HERANÇA



As poetas suicidas chamam-me.
E eu não as ouço.

Come fruta, digo a mim mesma,
vigia os deveres de tua filha,
lembra-te da data em que vivemos,
revê a lista de contactos,
não te esqueças da consulta do ginecologista.
Às vezes atendo à mãe morta que enterrei em mim.
Outras derrubo-me nas margens dos rios que vos tragaram
e o sonho evita-me
e a obscuridade adensa-se em meu redor
como uma marmelada irrespirável.

Vós chegais-vos, mas eu
não vos ouço. Ponho os dedos nos ouvidos
e agarro-me aos barrotes que me sustentam.
Não sei passar a ferro, mas hoje é quinze de Setembro,
de três em três dias telefono ao meu pai e pergunto-lhe
o que comeu,
embora confesso sem nenhum sentimento.

Não ouço vozes, embora a minha, por vezes,
soe insistente,
como a rádio que sobe pelas escadas.

Não vou escutar-vos.
Estais talvez caladas
e é só esse misto de vaidade e homenagem que me aliena
e me faz confundir-vos com o silêncio.
Não importa.
Cada uma das mortes vossas
deu à luz uma palavra
e de momento lembro-me de deixar a minha loucura
dobrada ao pé da roupa,
cada vez que mergulho na água,
na noite
ou em um dos vossos versos.


Ana Pérez Cañamares


(Trad. A.M.)

.

17.4.13

Russell Edson (A morte da mosca)





THE DEATH OF A FLY



There was once a man who disguised himself as a housefly
and went about the neighbourhood depositing flyspecks.
Well, he has to do something hasn’t he? said someone to someone else.
Of course, said someone else back to someone.
Then what’s all the fuss? said someone to someone else.
Who’s fussing? I’m just saying that if he doesn’t get off
the wall of that building the police will have to shoot him off.
Oh that, of course, there’s nothing so engaging
as a dead fly.
I love dead flies, the way they remind me of individuals
who have met their fate.

Russell Edson



Era uma vez um homem que se disfarçou de mosca
e foi pela vizinhança a largar excrementos.
Ora, disse alguém a alguém, ele tem de fazer alguma coisa, não tem?
Claro, respondeu alguém a alguém.
Então, qual é o problema? disse alguém a alguém.
Mas quem é que está a discutir? Eu só estou a dizer
que ou ele sai daquela parede ou a polícia vai atirar-lhe.
Ah, é isso, já se vê, não há nada como uma mosca morta.
Eu cá adoro moscas mortas, pelo modo que me lembram
pessoas que acharam o seu destino.

(Trad. A.M.)

.

16.4.13

Rogelio Ramos Signes (O pião)





EL TROMPO



Cuando jugaba a los trompos con mi padre
siempre me ganaba.
Yo ponía todo mi empeño
pero era muy corto de vista, y él
siempre me ganaba.
Mi trompo giraba plácidamente en la mano de mi padre
y su trompo se escapaba por entre mis dedos.
Yo ponía todo mi empeño pero quien ganaba era él.
Y reía, no burlándose
reía como a la espera de algo que no llegaba,
una explicación,
una deducción
que estaba al alcance de mis ojos
pero yo era muy corto de vista.
"Hay que mirar detenidamente"
me decía.
"Hay que mirar y sacar conclusiones"
mientras mi trompo bailaba en la palma de su mano
y él reía con sus dientes chiquitos
gastados de tanto masticar, supongo
y también por el tiempo.
Un día
tras una inolvidable clase de Física en el colegio
volví a casa y le pedí que enrollara el trompo.
Hacía casi diez años que no jugábamos a eso
y mi padre me miró de una manera difícil de describir,
con cariño,
con satisfacción,
pero más que todo con alivio,
como diciendo "Ha llegado el momento".
Mi padre era zurdo
(siempre lo supe, pero no deduje)
y enrollaba en sentido contrario a las agujas del reloj,
por eso el trompo que él preparaba
se escapaba de mi mano torpemente diestra,
y no de la suya, astutamente siniestra.
La infancia es un despiadado campo de aprendizaje
donde las clases prácticas
se dictan fuera de horario.

Rogelio Ramos Signes



Quando eu jogava ao pião com meu pai
ele ganhava-me sempre.
Eu bem me empenhava,
mas era curto de vista e ele sempre levava a melhor.
O meu pião dormia a girar na mão de meu pai,
mas o dele fugia-me sempre por entre os dedos.
Eu bem me empenhava, mas quem ganhava era ele.
E então ria, sem troça,
como se estivesse à espera de algo para chegar,
uma explicação, uma dedução
que me estaria ao alcance dos olhos,
mas eu era muito curto de vista.
“Tens de olhar atentamente”- dizia-me -
“Tens de olhar e tirar conclusões”
enquanto o meu pião lhe dançava na palma da mão,
e ele ria com os dentes pequeninos,
gastos de tanto mastigar, suponho,
e do tempo também.
Um dia,
depois duma aula inesquecível de Física no colégio,
tornei para casa e disse-lhe que enrolasse o pião.
Não jogávamos há quase dez anos
e o meu pai olhou para mim dum modo
difícil de descrever, com ternura,
com satisfação,
mas acima de tudo com alívio,
como que dizendo “Chegou a hora”.
Meu pai era surdo
(eu sempre o soube, mas não liguei)
e enrolava ao contrário dos ponteiros do relógio,
por isso o pião que ele lançava
fugia-me da mão canhestramente dextra,
mas não fugia da sua, astutamente sinistra.
A infância é um terrível campo
de aprendizagem, mas as aulas práticas
são sempre fora do horário.

(Trad. A.M.)

.

15.4.13

Um verso (120)





Um verso de Camilo Pessanha:





Ó meu coração, torna para trás. Onde vais a correr desatinado?



Camilo Pessanha

.







Cristina Peri Rossi (Depois)





DESPUÉS



Y ahora se inicia
la pequeña vida
del sobreviviente de la catástrofe del amor:

Hola, perros pequeños,
hola, vagabundos,
hola, autobuses y transeúntes.

Soy una niña de pecho
acabo de nacer
del terrible parto del amor.

Ya no amo.

Ahora puedo ejercer en el mundo
inscribirme en él
soy una pieza más del engranaje.

Ya no estoy loca.


Cristina Peri Rossi


[Emma Gunst]



E agora principia
a pequena vida
do sobrevivente da catástrofe do amor:

Olá, cachorrinhos,
olá, vagabundos,
olá, autocarros e transeuntes.

Eu sou uma menina de peito,
acabo de nascer
do terrível parto do amor.

Já não amo.

Agora posso praticar por esse mundo
inscrever-me nele
sou mais uma peça da engrenagem.

Já não estou louca.

(Trad. A.M.)

14.4.13

Pedro Tamen (Escrito de memória)





ESCRITO DE MEMÓRIA



Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão para ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais os olhos e qual a noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.


Pedro Tamen



>>  Arscives (poemas+bio-biblio) / AntónioMiranda (10p) / Citador (9p) / Poema Plural (análise / M.S.Barroso)

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13.4.13

Claribel Alegría (Amor)





AMOR



Todos los que amo
están en ti
y tú
en todo lo que amo.


Claribel Alegria

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12.4.13

João Araújo Correia (Um intrujão de marca)





Sei que o meu companheiro era um intrujão de marca.

Logo que viu o primeiro ramo de loureiro em cima de uma porta, atirou-se ao chão, ganindo como cachorro que leva calhoada.

- Que é que tu tens, ó Felizardo?

- É a dor! Só me passa com aguardente.

Olhou para o ramo de loureiro, eu olhei também, e resolvi matar-lhe, salvo seja, o bicho que lhe roía o bucho.

Dos quinze tostões que minha mãe me tinha dado, gastei um pataco em aguardente, mas curei o rapaz e fiz boa figura.

Mais adiante, cena parecida.

O bucho do rapaz, isto é, a dor, cobiçou vinho, sardinha frita e um bolo de trigo de duas cabeças.

Fiz-lhe a vontade.

Toca a andar...

Com mais algumas paragens, foram-se-me embora os quinze tostões.

Também se foi de vez a dor do Felizardo.


- JOÃO ARAÚJO CORREIA, Cinza do Lar (Dia de Natal).

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Chantal Maillard (Quis um dia que um poeta me amasse)





Deseé alguna vez que un poeta me amase.

Ahora duelen sus poemas en mi cuerpo‚
algo de mí que en él se reconoce hasta quebrar la imagen
de todo lo que fui.

Ahora deseo que me amase tanto que dejara de amarme
y sus palabras fuesen nieve
que el sol de junio fundiese entre mis pechos‚
allí donde su aliento insiste en acallar
esta tristeza antigua que siempre me acompaña.

Chantal Maillard


[O único verdadeiro deus vivo]



Quis um dia que um poeta me amasse.

Agora doem-me os poemas no corpo,
algo de mim que nele se reconhece até
partir a imagem de tudo quanto fui.

Agora queria que me amasse tanto que deixasse
de amar-me e suas palavras fossem neve
que o sol de Junho fundisse no meu peito,
ali onde seu hálito teima em acalmar
esta tristeza antiga que sempre me acompanha.

(Trad. A.M.)

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11.4.13

Paulo Leminski (Eu ontem tive a impressão)





eu ontem tive a impressão
que deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos


quem sou eu pra falar com deus?
ele que cuide dos seus assuntos
eu cuido dos meus



Paulo Leminski

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10.4.13

Susana Cattaneo (Depois de morrer)





Después de morirme
me siento a mi lado
y me espío.
Sutil vigiladora
de mis comportamientos de
muerta,
no cejo en el intento
de descubrir pecados.
La noche transformada
en avispas gigantes
torna en agujas
sus ojos en celo.
Necesito crear endechas
que me consuelen
a la sombra
de la sombra de aquella
que alguna vez habitó en mí.

Susana Cattaneo



Depois de morrer
sento-me a meu lado
e espio-me.
Vigilante subtil
da minha conduta de
morta
não cedo no intento
de descobrir pecados.
A noite transformada
em vespas gigantes
torna agulhas
seus olhos de cio.
Preciso fazer endechas
que me consolem
à sombra
da sombra daquela
que algum dia em mim habitou.

(Trad. A.M.)



>>  Zapatos Rojos (20p) / ExtranjeraWeb (sítio)

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9.4.13

João Araújo Correia (Cispou as maxilas)





Dito isto, cispou as maxilas e, sobre elas, acomodou os beiços como se corresse dois taipais – um de cima, outro de baixo.

Fechou. (...)

O homem, com os beiços corridos sobre as maxilas como dois taipais do comércio ao anoitecer, olhou para mim com um fulgor de olhos semelhantes a duas estrelas escarninhas.


- JOÃO ARAÚJO CORREIA, Cinza do Lar (A vaca).

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César Vallejo (A violência das horas)





LA VIOLENCIA DE LAS HORAS



Todos han muerto.
Murió doña Antonia, la ronca,
que hacía pan barato en el burgo.

Murió el cura Santiago,
a quien placía le saludasen
los jóvenes y las mozas,
respondiéndoles a todos,
indistintamente:
"¡Buenos días, José! ¡Buenos días, María!"

Murió aquella joven rubia,
Carlota, dejando un hijito de meses,
que luego también murió,
a los ocho días de la madre.

Murió mi tía Albina,
que solía cantar tiempos
y modos de heredad,
en tanto cosía en los corredores,
para Isidora, la criada de oficio,
la honrosísima mujer.

Murió un viejo tuerto,
su nombre no recuerdo,
pero dormía al sol de la mañana,
sentado ante la puerta
del hojalatero de la esquina.

Murió Rayo,
el perro de mi altura,
herido de un balazo
de no se sabe quién.

Murió Lucas,
mi cuñado en la paz de las cinturas,
de quien me acuerdo cuando llueve
y no hay nadie en mi experiencia.

Murió en mi revólver mi madre,
en mi puño mi hermana
y mi hermano en mi víscera sangrienta,
los tres ligados por un género
triste de tristeza,
en el mes de agosto
de años sucesivos.

Murió el músico Méndez,
alto y muy borracho,
que solfeaba en su
clarinete tocatas melancólicas,
a cuyo articulado se dormían
las gallinas de mi barrio,
mucho antes de que el sol se fuese.

Murió mi eternidad y estoy velándola.

César Vallejo

[Crepusculario]



Todos morreram.
Morreu D. Antonia, a rouca,
que fazia pão barato no burgo.

Morreu o cura Santiago,
que gostava que o saudassem
os jovens e as moças,
respondendo a todos,
sem distinção:
‘Bom dia, José! Bom dia, Maria!’

Morreu aquela jovem loira,
Carlota, deixando um filhinho de meses,
que a seguir morreu também,
oito dias após a mãe.

Morreu minha tia Albina,
que usava cantar tempos
e modos de antanho,
enquanto cosia nos corredores,
para Isadora, a criada de ofício,
a honrosíssima mulher.

Morreu um velho torto,
cujo nome não me lembra,
mas dormia ao sol da manhã,
sentado diante da porta
do latoeiro da esquina.

Morreu Rayo,
o cão do meu tempo,
ferido por um balázio
não se sabe de quem.

Morreu Lucas,
meu cunhado na paz das cinturas,
de quem me lembro quando chove
e não há ninguém por perto.

Morreu-me no revólver minha mãe,
em meu punho minha irmã
e meu irmão em minha víscera,
os três ligados por um género
triste de tristeza,
isto no mês de Agosto
de anos sucessivos.

Morreu o músico Méndez,
alto e muito borracho,
que solfejava em seu
clarinete tocatas melancólicas,
a cujo fraseado adormeciam
as galinhas do meu bairro,
muito antes que o sol se fosse.

Morreu minha eternidade
e eu estou a velá-la.


(Trad. A.M.)

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8.4.13

W. C. Williams (O pensador)





THE THINKER



My wife's new pink slippers
have gay pompons.
There is not a spot or a stain
on their satin toes or their sides.
All night they lie together
under her bed's edge.
Shivering I catch sight of them
and smile, in the morning.
Later I watch them
descending the stair,
hurrying through the doors
and round the table,
moving stiffly
with a shake of their gay pompons!
And I talk to them
in my secret mind
out of pure happiness.

W. C. Williams



As pantufas novas da minha mulher
têm uns pompons alegres.
Não há ali uma mancha, nem uma pinta,
nas biqueiras ou dos lados.
À noite ficam ambas do seu lado
por baixo da cama.
De manhã, a tiritar, eu olho
para elas e sorrio-me.
Depois, observo-as
a descer a escada,
a passar apressadas nas portas
e à volta da mesa,
mexendo-se com energia
e a abanar os garridos pompons!
E então falo para elas
cá por dentro
cheio de felicidade.

(Trad. A.M.)

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7.4.13

César Simón (Algo secreto)





ALGO SECRETO



Hay en tu vida algo secreto;
es una noche en una casa,
los balcones abiertos al jardín.
En las habitaciones ya no hay nadie,
y, fuera, sólo luz lunar.
Pero el piano suena quedamente
con una melodía muy antigua,
tan antigua que nunca ha enmudecido.
Un pájaro es quien canta, hay una rosa
y hay una espina, en el balcón.
Tú eres el pájaro que canta.
Tu voz es inmortal, porque no es tuya,
y tu carne es efímera y doliente.

César Simón




Há algo secreto na tua vida,
uma noite numa casa,
varandas abertas para o jardim.
Não há já ninguém nas salas
e, fora, apenas a luz da lua.
Mas o piano toca serenamente,
uma melodia muito antiga,
tão antiga que jamais emudeceu.
É uma ave que canta, há uma rosa
e um espinho no balcão.
Tu és essa ave que canta.
É imortal tua voz, porque não é tua,
e tua carne é efémera e dolente.

(Trad. A.M.)

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6.4.13

Um verso (119)





Um verso de Paul Eluard
(por falar em navegação):




Um navio inútil liga a minha infância ao meu fastio




Paul Éluard

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Juan Bonilla (Galeria comercial)





GALERÍA COMERCIAL



Se le pondrá cara de luna por el tratamiento
de cortisona, es por lo de sus manchas en la piel…
Escucho las conversaciones de los desconocidos
llenas de información preciosa sobre desconocidos
a los que me gustaría conocer,
o sobre ofertas increíbles
llenas también de la insignificancia
maravillosa que construye el existir de todos,
la pobre Lucy decidió dejar por fin al pelma de su novio
y ha conocido a un policía
y en Cortefiel rebajan los abrigos
y por la compra de tres libros te regalan un tatuaje donde quieras.

Vida. Vida por todas partes, vida sola,
sin arrebatos de esperanza, sin doctrinas
marchitas, sin banal ideología.
La mera inercia que desliza cada cosa hacia su fin
mientras chillan las piedras en el sueño del enfermo
que nos habita y no sabe conformarse y se pregunta ingenuo:
¿quién dijo que tengamos que morirnos?
Y se promete escalar el precipicio donde se hunde su alma
o se gasta en amar a quien no puede amarle.

Se está muy bien aquí, en la intemperie del ahora,
sin sitio adonde ir y sin memoria de dónde estuvimos,
mirando escaparates, soñando viajes a islas nuevas,
enterándote de que Lucy ya ha dejado al pelma de su novio,
de que a alguien va a ponérsele cara de luna por la cortisona,
y en Cortefiel rebajan los abrigos.
Se está muy bien aquí. No vamos a morirnos.

Es tan sencillo que da miedo.
Es dejarse llevar por los pasillos de este centro comercial
aceptándolo todo como el bien pagado actor protagonista
de una tragicomedia a la que no le hacen falta buenas críticas.
Hacer tiempo si es que es posible que el tiempo se haga,
si no es vivir precisamente deshacerse en tiempo.
Es tan sencillo que da miedo.
No vamos a morirnos. No se puede.

Vida por todas partes, vida sola. Tan insignificante y obvia
como un rostro hermoso al que adjudicamos un misterio
para enaltecer de alguna forma su descarada falta de misterio.


Juan Bonilla


[Otra iglesia]




Vai ficar com cara de lua cheia, do tratamento de cortisona,
por causa do problema das manchas na pele...
Escuto as conversas de desconhecidos
cheias de informação preciosa de desconhecidos
que gostaria de conhecer,
ou de ofertas incríveis
cheias também da insignificância
maravilhosa que conforma a existência de todos,
a pobre Lucy resolveu por fim deixar o palerma do noivo
e entretanto conheceu um polícia
e os casacos estão em rebaixa na Cortefiel
e na compra de três livros oferecem-te uma tatuagem onde quiseres.

Vida. Vida por todo o lado, vida só,
sem arrebates de esperança, sem doutrinas
murchas, sem banal ideologia.
A mera inércia que faz deslizar cada coisa para seu fim
enquanto as pedras chiam no sonho do enfermo
que nos habita e que não se conforma e pergunta ingénuo:
quem é que disse que temos de morrer?
E promete escalar o abismo onde a alma se lhe afunda
ou gasta em amar quem amar não pode.

Está-se aqui muito bem, na borrasca do presente,
sem sítio aonde ir, nem lembrança donde viemos,
a ver montras, sonhando viagens a ilhas remotas,
sabendo que Lucy deixou o palerma do noivo,
que alguém vai ficar com cara de lua cheia da cortisona
e que os casacos estão em rebaixa na Cortefiel.
Está-se aqui muito bem, não vamos morrer.

É tão simples que até assusta.
Deixar-se ir pelos corredores do centro comercial
aceitando tudo como o bem pago actor principal
de uma tragicomédia que não precisa de boas críticas.
Fazer tempo, se é possível o tempo fazer-se,
se viver não é justamente desfazer-se em tempo.
É tão simples que assusta,
não vamos morrer, não pode ser.

Vida por todo o lado, vida só. Tão irrelevante e óbvia
como um rosto belo a que atribuímos um mistério
para relevar de algum modo a sua evidente falta de mistério.


(Trad. A.M.)

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5.4.13

Herberto Helder (A acerba, funda língua portuguesa)





a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão térmica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso


Herberto Helder


[Quintas de leitura]

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4.4.13

Celso Emilio Ferreiro (O hórreo)





O HÓRREO



Daquil perdido Edén soio me queda,
na néboa da memoria, un hórreo.
Un mundo, ¡tan inorme!,
nas tépedas tardiñas do outono.

Alí o fogar, alí a oficiña,
alá o teatro i os cómicos.

Alí navigaciós e viaxes,
alá cantigas e contos.

Brincaba a ser un home sin sabere
que era moi triste aquil meu xogo.

Todo pasóu. A vida
foi polo tempo dando tombos.

De todo me esquecín. Soio me lembro
daquil Edén, na sombra daquil hórreo.


CELSO EMILIO FERREIRO
Longa noite de pedra
(1962)


[Un poema cada dia]

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3.4.13

João Araújo Correia (Borras, atestos, mingueiras)





De ano para ano, fui conseguindo que ele me falasse em termos diferentes dos habituais, isto é, fora do dicionário litúrgico do armazém: borras, atestos, mingueiras, escouces...

Consegui até, mas isso levou tempo, que ele me falasse um pouco mais à vontade do que um galucho a um capitão.

Quero dizer que, a pouco e pouco, lhe destruí a posição de sentido, que ele tomava diante de mim.

Tanto fiz que até consegui de mim próprio ousio suficiente para lhe falar no lenço.


- JOÃO ARAÚJO CORREIA, Cinza do Lar (O lenço vermelho).

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Antonio Pérez Morte (Escombros)





ESCOMBROS



Sólo desilusión nos queda a esta altura de la vida,
el recuerdo obsesivo del continuo sangrar de la utopía,
del hombre en cenizas que agoniza.
Tan sólo desilusión, escombros, ruina.
Tan sólo soledad y una mentira.

Antonio Pérez Morte


[Escrito en el viento]



Resta-nos só desilusão a esta altura da vida,
a lembrança teimosa do contínuo sangrar da utopia,
do homem em cinzas agonizando.
Apenas desilusão, escombros, ruína.
Apenas solidão e uma mentira.

(Trad. A.M.)



>>  A.Pérez Morte (blogue)


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2.4.13

Francisco Sá de Miranda (O sol é grande)





O sol é grande, caem co' a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d' alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu' em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d' amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m' eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!


F. Sá de Miranda


[Luz & sombra]


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1.4.13

Ángel Guinda (Viagem interior)





EL VIAJE INTERIOR



Fuera de ti no esperes encontrar
lo que dentro de ti nunca has buscado.
No es más hermoso el sol de otros lugares,
por lejanos que estén:
lo que importa es la luz que da vida a tus ojos.
No fatigues tus días
en recorrer países en busca de otros mundos.
No tardes en emprender el viaje a tu interior,
no vaya a ser que pronto sea tarde:
no estás de ti tan cerca como crees,
ni es tanto el tiempo de que aún dispones
para descubrirte y conquistarte.

Ángel Guinda



Fora de ti não esperes encontrar
aquilo que dentro nunca buscaste.
Não é mais belo o sol de outros lugares
por mais distantes que sejam:
o que importa é a luz que dá vida a teus olhos.
Não canses teus dias
percorrendo países em busca de outros mundos.
Não tardes a fazer a viagem ao teu interior,
que em breve pode ser tarde:
não estás de ti tão perto como julgas,
nem é assim tanto o tempo que ainda tens
para descobrir-te e conquistar-te.

(Trad. A.M.)

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