HERANÇA
As poetas suicidas chamam-me.
E eu não as ouço.
Come fruta, digo a mim mesma,
vigia os deveres de tua filha,
lembra-te da data em que vivemos,
revê a lista de contactos,
não te esqueças da consulta do ginecologista.
Às vezes atendo à mãe morta que enterrei em mim.
Outras derrubo-me nas margens dos rios que vos tragaram
e o sonho evita-me
e a obscuridade adensa-se em meu redor
como uma marmelada irrespirável.
Vós chegais-vos, mas eu
não vos ouço. Ponho os dedos nos ouvidos
e agarro-me aos barrotes que me sustentam.
Não sei passar a ferro, mas hoje é quinze de Setembro,
de três em três dias telefono ao meu pai e pergunto-lhe
o que comeu,
embora confesso sem nenhum sentimento.
Não ouço vozes, embora a minha, por vezes,
soe insistente,
como a rádio que sobe pelas escadas.
Não vou escutar-vos.
Estais talvez caladas
e é só esse misto de vaidade e homenagem que me aliena
e me faz confundir-vos com o silêncio.
Não importa.
Cada uma das mortes vossas
deu à luz uma palavra
e de momento lembro-me de deixar a minha loucura
dobrada ao pé da roupa,
cada vez que mergulho na água,
na noite
ou em um dos vossos versos.
Ana Pérez Cañamares
(Trad. A.M.)
.