HÁ JANELAS QUE PODEM HABITAR-SE
Há janelas que podem habitar-se
como se habita uma cidade, durante anos.
Há cenas que acendem uma vida
e vidas
que acendem uma morte enquanto duram.
Foi tão só um instante.
Depois
aquela imagem foi ficando para trás
e tive a certeza
de que ela mesma consentira na sua morte.
O sacrifício é sempre uma forma de vingança.
Na noite anterior
ele havia prometido levá-la a ver o mar.
A janela dum comboio
pode chegar a conter o mundo num instante.
Depois de a bater
ela caiu de joelhos ante ele,
enquanto ele a olhava
e a sua mão homicida se abria sem querer
e a pedra sangrava,
deixava-se cair
e despenhava-se talude abaixo.
Pergunto-me como se terão conhecido.
Onde se apaixonaram.
Se ela sabia coser.
Se haveria alguém a esperá-la.
Não pude dizer nada.
Assistir ao fragmento da vida de outrem.
Sentir a mediania de um corpo malogrado.
Ver-me a afastar-me
e os meus olhos sem tempo
a quererem estirar-se, deter-se,
compreender.
O comboio seguia o seu curso.
(Um homem só que planeia uma morte em campo aberto. Alguém que por acaso olhava nesse instante pela janela dum comboio e o contempla. É tudo).
ROSANA ACQUARONI
Lámparas de arena
(2000)
(Trad. A.M.)
(
Original)
Fontes:
Rosana Acquaroni (sítio of.+antologia) /
Facebook /
A media voz (19p) /
Cervantes (30p)
.