NÃO SEI
Não sei se éramos hóspedes da terra se visitantes da
noite no Portugal de Salazar. As tascas vendiam
o negro vinho, ofereciam a quem passava o cheiro
húmido moldado em serradura. Demorava os lábios
na breve despedida do natal e o dezembro seguinte não
mais chegava, para eu amar o gelo nas poças de água
janeiro, pelo dia de anos da minha mãe, e depois
fevereiro afora. Tinham um ar soturno
esses senhores, sei hoje homens do regime (não melhores
nem piores os de agora, iguaizinhos democracia
adentro), havia um que levava chapéu de coco
na procissão das velas e o forro ardeu, como me ri e jurei
não ir nunca pegar ao pálio, mas como não haveria de
arder, na direita a vara
na esquerda a acendida vela, o redondo chapéu
em fogo
rumorejava um canto republicano nas sarjetas igualzinho
sem tirar nem pôr o homem do regime
ela, a minha avó, por detrás dos vidros enlameados
pelos que passavam em cuidado de reza, demoradamente
falava do rei e do exílio
e então era tudo como se fosse enleadora madrugada, como
se pela maré baixa de agosto me ensinasse a nadar.
João Miguel Fernandes Jorge
Fontes:
DGLB (bio+biblio) /
As Tormentas (8p) /
nEscritas (4p)
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