10.11.16

Juan Gelman (Mulheres)





MULHERES



dizer que essa mulher era duas mulheres é muito pouco
devia haver nela para aí 12.397 mulheres
sendo difícil saber com quem se lidava no meio dessa multidão de mulheres
exemplo:

jazíamos num leito de amor
ela era uma aurora de algas fosforescentes
vou para abraçá-la e ela converte-se numa Singapura
cheia de cães a uivar

recordo quando apareceu envolta em rosas de agadir
parecia uma constelação na terra
parecia que o cruzeiro do sul tinha descido à terra
essa mulher brilhava como a lua de sua voz direita

como o sol a pôr-se na sua voz
estavam escritos nas rosas os nomes todos dessa mulher menos um
e quando ela se virou
a nuca dela era o plano económico
com milhares de números, além da balança de mortes a favor da ditadura militar
a gente nunca sabia onde essa mulher ia parar
e eu uma noite um pouco desconcertado
bati-lhe no ombro para ver quem era
e nos seus olhos desertos vi um camelo

às vezes
essa mulher era a banda de música da minha terra
tocava umas valsas até o trombone começar a desafinar
e os outros desafinavam com ele
essa mulher até a memória tinha desafinada

podia-se amá-la até ao delírio
fazer-lhe crescer dias do sexo tremente
fazê-la voar como passarinho de lençol
dia seguinte acordava a falar de malevich

a memória trabalhava-lhe como um relógio com raiva
às três da tarde lembrava-se da mula da infância
uma noite do ser melava muito essa mulher e
então devoraram-na os fantasmas nutridos pelos seus milhares de mulheres
passando uma banda desafinada
a raspar-se pelas sombras da pracita da minha terra

eu companheiros uma noite destas
em que a cara se nos empapa quase à beira de morrer
montei no camelito que me esperava nos seus olhos
e desandei das costas dessa mulher
calado como um menino perseguido por abutres
que tudo me comem menos o pensamento
de quando ela se dobrava como um ramo de doçura
e o arremessava à flor da tarde.


Juan Gelman


(Trad. A.M.)

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