Há três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada, e fora de toda a realidade.
Afigura-se-me que vivo num país estranho – amplidão, água e sonho.
Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da Torreira...
Que me importa!
Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente.
A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto.
É dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do outro.
É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da gota de água, dos sítios escondidos e ignorados.
É assistir à transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas e no interior das casas.
- RAUL BRANDÃO,
Os Pescadores.
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