26.8.14

Raul Brandão (Ria de Aveiro-3)






Há três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada, e fora de toda a realidade.

Afigura-se-me que vivo num país estranho – amplidão, água e sonho.

Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da Torreira...

Que me importa!

Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente.

A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto.

É dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do outro.

É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da gota de água, dos sítios escondidos e ignorados.

É assistir à transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas e no interior das casas.


- RAUL BRANDÃO, Os Pescadores.


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