31.5.11

Armando Silva Carvalho (Louvor e imitação de Herberto Helder)






LOUVOR E IMITAÇÃO DE HERBERTO HELDER
 




Os poemas quebrados, a fulgurante loucura
dos cometas, os mártires que revolvem
a terra como antigamente
vigiam os velhos templos onde ardia o azeite
dos sábios, o uivo pleno da noite
aquecida pelos séculos.
O mar está branco, amor – diz a criatura
à outra criatura – volvendo os olhos para os cimos de ouro
do passado impassível.
É este o fogo que me traz o vento, a química
da voz que os dentes enobrecem.
Nas trevas não há mundo, um sol negro e redondo
era um templo do cérebro ao encontro da língua
como as mãos do vinagre e a boca no cálcio.
Quanto mais seco se. Através da próstata.
Das guardas imperfeitas que me surgem nas veias.
Mais sumo, mais ardor na pupila deserta.
E as vozes do enxofre explodiam na terra.
Não há exemplos novos, nem modelos inócuos.
O brilho incandescente do milagre atravessa-me
a espinha, é uma planta carnívora que me sobe
dos pés. As virilhas sulfuram quando o sangue
as arrasta pela memória aberta.
Ó armas e bagagens! Cordeiros tão nervosos
que não comem sopa. Sapatos tão ordeiros
que não bebem vinho.
Mamilos como um fruto que se tece na seda.
Peixes na bexiga, mar novo entrando às cegas
nos buracos dos nervos.
Caem ovos podres nos charcos da desgraça
e as palavras despenham-se ao sabor das imagens.

            (...)

 
Armando Silva Carvalho


.

30.5.11

Félix Grande (Casida da madrugada alta)





CASIDA DE LA ALTA MADRUGADA




Cuando te acuerdes de mi cuerpo
y no puedas dormir
y te levantes medio desnuda
y camines a tientas por tus habitaciones
borracha de estupor y de rabia

en algún lugar de la Tierra
yo andaré insomne por algún pasillo
careciendo de ti toda la noche
oyéndote ulular muy lejos y escribiendo
estos versos degenerados.


Félix Grande




Quando te lembrares do meu corpo
e não conseguires dormir
e te levantares meio despida
e andares às escuras pela casa
bêbeda de raiva e estupor

eu andarei insone por um corredor
num qualquer lugar da Terra
a precisar de ti toda a noite
a ouvir-te gritar muito longe e a escrever
estes versos degenerados.


(Trad. A.M.)




>>  A media voz (34p)  /  Wikipedia


.

29.5.11

Alda Merini (Quem tiver medo da morte)





Chi ha paura della morte si offenda.
La morte è una riviera musicale,
il seno curvo della donna amata.
Non c'è spazio tra l'uomo e la sua morte.
Soltanto il batticuore di un nemico che ride al suo passaggio



Alda Merini





Que se ofenda quem tiver medo da morte.
A morte é uma costa musical,
a curva do seio da mulher amada.
Entre o homem e a sua morte não existe espaço.
Apenas o pulsar de um inimigo que lhe ri à passagem.



(Trad. A.M.)

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Ulalume González (Palavra)






PALABRA




Pronunciada palabra
tán sola
tán desnuda:
regrésate a vestirte de indecible.


Ulalume González de León





Pronunciada palavra
tão só
tão desnuda,
volta a vestir-te de indizível.


(Trad. A.M.)



.

28.5.11

Saul Dias (Sangue)






SANGUE




Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos...



É só com sangue que se escrevem versos.






[Silva]


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Chantal Maillard (Intervalo)







INTERMEDIO





Entre una imagen tuya
y otra imagen de ti
el mundo queda detenido.
En suspenso. Y mi vida
es ese pájaro pegado al cable
de alta tensión,
después de la descarga.


Chantal Maillard





Entre uma imagem tua
e outra imagem de ti
o mundo fica parado.
Em suspenso. E a minha vida
é aquele pássaro agarrado
ao cabo de alta tensão
após a descarga.


(Trad. A.M.)


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27.5.11

Olhar (96)








O sole mio...

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Carlos Marzal (O poço selvagem)






EL POZO SALVAJE




Por más que aburras esa melodía
monótona y brumosa de la vida diaria,
y que te amansa;
por más lobo sin dientes que te creas;
por más sabiduría y experiencia y paz de espíritu;
por más orden con que hayas decorado las paredes,
por más edad que la edad te haya dado,
por muchas otras vidas que los libros te alcancen,
y añade lo que quieras a esta lista,
hay un pozo salvaje al fondo de ti mismo,
un lugar que es tan tuyo como tu propia muerte.
Es de piedra y de noche, y de fuego y de lágrimas.
En sus aguas dudosas
reposa desde siempre lo que no está dormido,
un remoto lugar donde se fraguan
las abominaciones y los sueños,
la traición y los crímenes.
Es el pozo de lo que eres capaz
y en él duermen reptiles, y un fulgor
y una profunda espera.
En tu rostro también, y tú eres ese pozo.

Ya sé que lo sabías. Por lo tanto,
acepta, brinda y bebe.



CARLOS MARZAL
Los países nocturnos
(1996)







Por mais que aborreças essa melodia
da vida quotidiana, chata e nevoenta,
que te serena;
por mais lobo sem dentes que te creias;
por mais saber, experiência e paz de espírito;
por mais ordem que ponhas a decorar as paredes,
por mais idade que a idade te dê,
por mais vidas que os livros te ofereçam,
e acrescenta a esta lista aquilo que quiseres,
há um poço selvagem no fundo de ti mesmo,
um lugar tão teu como a tua própria morte,
de pedra e de noite, de fogo e de lágrimas.
Em suas duvidosas águas
repousa desde sempre o que não dorme,
um remoto lugar onde se forjam
abominações e sonhos,
crimes e traição.
É o poço do que és capaz,
onde dormem répteis e há um fulgor
e uma profunda espera.
No teu rosto também, tu és esse poço.

Já sei que o sabias. Por isso,
aceita, brinda e bebe.


(Trad. A.M.)


.

26.5.11

Amadeu Baptista (O centro do mundo)








O CENTRO DO MUNDO (16)





 Não leves nenhum desespero para casa.
 Os que sofrem hoje
 não são os que sofrerão amanhã.
 Os que imploram hoje
 não são os que implorarão amanhã.
 A medida de todas as coisas
 é como a mulher que chora no centro do mundo.
 Chora para constatar que está viva.
 Serve-te de um copo de leite.
 Vê como é branco.
 Constata como é puro.
 Observa como só até um preciso momento
 é útil e fruível,
 Qualquer pergunta que possas fazer sobre ti
 terá sempre uma única resposta
dentro de ti.
 És como o leite,
 puro e fruível
 até ao preciso momento em que se ferve
 ou azeda.




AMADEU BAPTISTA
Arte do Regresso
(1999)


25.5.11

Federico García Lorca (Adelina, de passeio)







ADELINA, DE PASEO




La mar no tiene naranjas,
ni Sevilla tiene amor.
Morena, qué luz de fuego.
Préstame tu quitasol.


Me pondrá la carne verde
-zumo de lima y limón-,
tus palabras -pececillos-
nadarán alrededor.


La mar no tiene naranjas.
¡Ay!, amor.
¡Ni Sevilla tiene amor!


Federico García Lorca





O mar não tem laranjas,
nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo.
Dá-me o teu guarda-sol.


Há-de pôr-me a carne verde
- sumo de lima e limão –
tuas palavras – peixinhos –
nadarão em redor.


O mar não tem laranjas.
Ai, amor.
Nem Sevilha tem amor!


(Trad. A.M.)





.

24.5.11

W. B. Yeats (Uma canção da bebida)






A DRINKING SONG




Wine comes in at the mouth
And love comes in at the eye;
That's all we shall know for truth
Before we grow old and die.
I lift the glass to my mouth,
I look at you, and I sigh.


W. B. Yeats





Entra pela boca o vinho,
o amor é pelos olhos,
eis tudo o que sabemos realmente
antes de envelhecer e morrer.
Levo o copo à boca,
olho para ti, e suspiro.


(Trad. A.M.)

.

Blas de Otero (Na imensa maioria)






EN LA INMENSA MAYORIA




Podrá faltarme el aire,
el agua,
el pan,
sé que me faltarán.

El aire, que no es de nadie.
El agua, que es del sediento.
El pan... Sé que me faltarán.

La fe, jamás.

Cuanto menos aire, más.
Cuanto más sediento, más.

Ni más ni menos. Más.



Blas de Otero





Poderá faltar-me o ar,
a água,
o pão,
sei que me faltarão.

O ar, que não é de ninguém.
A água, que é do sedento.
O pão... Sei que me faltarão.

A fé, jamais.

Quanto menos ar, mais.
Quanto mais sedento, mais.

Nem mais nem menos. Mais.


(Trad. A.M.)

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23.5.11

Fernando Assis Pacheco (A namoradinha de organdi)






A NAMORADINHA DE ORGANDI

 


Como na dança ritual dos patos colhereiros se te amei
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava


cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicínias
pensando numa cena infeliz à moda do Harold


eu sonhava contigo?
eu assoava-me ao pijama!


Fernando Assis Pacheco



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Antonio Orihuela (São becos)







Son callejones
mis cinco sentidos,
por fiarme de ellos
ando perdido.


Antonio Orihuela





São becos
meus cinco sentidos,
por me fiar neles
ando perdido.


(Trad. A.M.)



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22.5.11

Russell Edson (A autópsia)






THE AUTOPSY




In a back room a man is performing an autopsy
on an old raincoat.
His wife appears in the doorway with a candle
and asks, how does it go?
Not now, not now, I’m just getting to the lining,
he murmurs with impatience.
I just wanted to know if you found any blood clots?
Blood clots?
For my necklace.


Russell Edson





Numa sala das traseiras um homem está a fazer autópsia
duma velha gabardina.
A mulher aparece com uma vela no vão da porta
e pergunta, como é que isso vai?
Agora não, agora não, diz ele impaciente,
estou a chegar ao forro.
Eu só queria saber se achaste algum coágulo de sangue.
Coágulo de sangue?
Sim, para o meu colar.


(Trad. A.M.)


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Ulalume González (O amante)






EL AMANTE




Mientras besaba a Rosalía
notó que de ella nada había:
ni tronco, ni cabeza, ni miembros... pero esos
detalles olvidó y la cubrió de besos.


Ulalume González de León






Enquanto beijava Rosalía
notou que dela nada havia, fosse
tronco, membros, cabeça... mas
esqueceu o detalhe e cobriu-a de beijos.


(Trad. A.M.)



>> A media voz (17p) /  Wikipedia


.

21.5.11

Rui Knopfli (O ladrão de versos)






O LADRÃO DE VERSOS




Uma gargalhada do meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.



Rui Knopfli

.

20.5.11

Antonio Machado (Caminhante)







Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.



Antonio Machado






Caminhante, são teus passos
o caminho, nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se caminho
e ao voltar a vista atrás
vê-se a senda que jamais
se há-de tornar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
apenas sulcos no mar.



(Trad. A.M.)

.

19.5.11

Ana Blandiana (Sem saber)






SEM SABER




Evidentemente não sou
como esses fiandeiros de palavras
que fazem as roupas e as corridas de agulha,
as glórias, os orgulhos,
apesar de me mover no meio deles
e eles me olharem as palavras como se fossem malhas
– “Que bem posta que vais!”, dizem-me,
– “Que bem que te fica o poema!”
sem saber
que os poemas não são o meu vestido,
mas o esqueleto
extraído com dor
e posto por cima da carne como uma carapaça,
tal como as tartarugas,
que assim sobrevivem
séculos
longos e infelizes.






(Trad. A.M.)


.

18.5.11

Chantal Maillard (E que é do sentimento?)







¿Y qué hay del sentimiento?
No, no lo hay, aquí no hay sentimiento.
¿Debería haberlo?
¿Es poesía el verso que describe
fríamente aquello que acontece?
Pero ¿qué es lo que acontece ?


Chantal Maillard




E que é do sentimento?
Não há, não, aqui não há sentimento.
Devia haver?
É poesia o verso que descreve
friamente aquilo que acontece?
Mas o que acontece o que é?


(Trad. A.M.)




>>  A media voz (35p)  /  Literaturas (entrevista)  /  Wikipedia


.


17.5.11

Paulo Leminski (Bem no fundo)







BEM NO FUNDO





No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto


a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo


extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais


mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.




Paulo Leminski


.

Antonio Gamoneda (Neve)








NIEVE




Retrocede, combate
hacia atrás, corazón mío.
Cíñete al amor, queda
activo en cuerpos, en
materiales amantes.
Olvida la nieve, vive
con los tuyos, desciende
a la ternura. Este
es tu país.
¡Oh la sed, oh la sed!
¿Por qué este mismo fuego
me empuja hacia la nieve?
Subir, subir al agua
eterna donde viven
la claridad y el frío.
Un sueño: Cumbre inmóvil.
Nada y luz. Nadie, nadie.
Oh Dios, si sólo un pájaro
me visitase en esta
región de libertad.
Atrás, puros espacios,
belleza inhabitable.
Vuelva la sed a su
origen en el fuego.



Antonio Gamoneda






Retrocede, luta
lá para trás, meu coração.
Cinge-te ao amor, mantém-te
activo nos corpos, em
materiais amantes.
Olvida a neve, vive
com os teus, desce
à ternura. Este
é o teu país.
Oh a sede, oh a sede!
Porque me empurra
este mesmo fogo para a neve?
Subir, subir à água
eterna onde vivem
a claridade e o frio.
Um sonho: Cume imóvel.
Nada e luz. Ninguém, ninguém.
Oh Deus, se um pássaro
me visitasse nesta
região de liberdade.
Atrás, espaços puros,
beleza inabitável.
Torne a sede à sua
origem no fogo.


(Trad. A.M.)

.

16.5.11

Mario Quintana (A Bela e o Dragão)






A BELA E O DRAGÃO




As coisas que não têm nome assustam,
escravizam-nos, devoram-nos...
Se a bela faz de ti gato e sapato,
chama-lhe, por exemplo, A BELA
DESDENHOSA.
E ei-la rotulada, classificada,
exorcizada, simples marionete
agora, com todos os gestos
perfeitamente previsíveis,
dentro do seu papel de
boneca de pau.
E no dia em que chamares a um dragão
de JOLI, o dragão
te seguirá por toda parte como um cachorrinho...



MARIO QUINTANA
Sapato Florido
(1948)

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Gonzalo Rojas (O que é que se ama quando se ama?)






¿QUÉ SE AMA CUANDO SE AMA?




¿Qué se ama cuando se ama, mi Dios: la luz terrible de la vida
o la luz de la muerte? ¿Qué se busca, qué se halla, qué
es eso: amor? ¿Quien es? ¿La mujer con su hondura,
sus rosas, sus volcanes,
o este sol colorado que es mi sangre furiosa
cuando entro en ella hasta las últimas raíces?


¿O todo es un gran juego, Dios mío, y no hay mujer
ni nombre sino sólo cuerpo: el tuyo,
repartido en estrellas de hermosura, en partículas fugaces
de eternidad visible?


Me muero es esto, oh Dios, en esta guerra
de ir y venir entre ellas por las calles, de no poder amar
trescientas a la vez, porque estoy condenado siempre a una,
a esa una, a esa única que me diste en el vago paraíso.



Gonzalo Rojas







O que é que se ama quando se ama, meu Deus, a luz terrível da vida
ou a da morte? O que é que se busca, o que é que se acha,
o que é que é isso, amor? É quem? A mulher com sua fundura,
suas rosas, seus vulcões,
ou este sol encarnado que é meu sangue furioso
quando nela entro até às últimas raízes?


Ou é tudo brincadeira, Deus meu, e não há mulher
nem nome mas corpo apenas, o teu,
repartido em estrelas de beleza, em partículas fugazes
de eternidade visível?


É isso, morro, ó Deus, nesta guerra
de ir e vir entre elas pela rua, de não poder amar
trezentas à uma, por estar condenado sempre a uma,
a essa uma, a única que me deste no vago paraíso.



(Trad. A.M.)

.

15.5.11

Manuel de Freitas (Mário)






MÁRIO





"O tempo que aos outros foge
cai sobre mim feito ontem",
como dizia o outro
que não consentiu em sê-lo.
E nestes tempos de rarefacção
e escárnio uma glosa pode às vezes
dar um jeito danado — para
aqueles que ficam, claro.


Ah, Mário, quantos eléctricos
eu apanhei ou perdi
em frente à lápide sóbria
que celebra não sei se a ti
se ao abandono corriqueiro
de um escritório de aluguer...
Coisas da vida, entenda-se,
os percursos e os discursos
que confluem no trânsito homicida
de um dia qualquer, como os outros.


Enquanto Lisboa se resigna
a ser esta mistura podre
de melancolia e paz
que para mim está bem
e vai dando
para a curta viagem dos ossos.


Nos Cafés também "espero a vida
que nunca vem ter comigo",
a putéfia. Nada mudou. Nada,
Mário. Só que nos "Cafés", agora,
pedem-se empréstimos para comprar
carro e casa ou manuseiam-se discos
por sinal merdosos, propícios
a uma época que voa ao rés da Bolsa.
A vida, claro, continua sem aparecer por aqui.


Mas lepidópteros ainda há,
uivando de alegria alegre — e restos
de nada nas coisas, a chamarem-nos de tão longe
para a proximidade do fim.


Era só para te dizer isto.


MANUEL DE FREITAS
Game over
(2002)





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Eugenio Montejo (Adeus ao séc. XX)






ADIÓS AL SIGLO XX




Cruzo la calle Marx, la calle Freud;
ando por una orilla de este siglo,
despacio, insomne, caviloso,
espía ad honorem de algún reino gótico,
recogiendo vocales caídas, pequeños guijarros
tatuados de rumor infinito.
La línea de Mondrian frente a mis ojos
va cortando la noche en sombras rectas
ahora que ya no cabe más soledad
en las paredes de vidrio.
Cruzo la calle Mao, la calle Stalin;
miro el instante donde muere un milenio
y otro despunta su terrestre dominio.
Mi siglo vertical y lleno de teorías...
Mi siglo con sus guerras, sus posguerras
y su tambor de Hitler allá lejos,
entre sangre y abismo.
Prosigo entre las piedras de los viejos suburbios
por un trago, por un poco de jazz,
contemplando los dioses que duermen disueltos
en el serrín de los bares,
mientras descifro sus nombres al paso
y sigo mi camino.



Eugenio Montejo





Atravesso a rua Marx, a rua Freud;
caminho pela margem deste século,
devagar, insone, caviloso,
espião ad honorem de um reino gótico,
a apanhar vogais caídas, pequenos calhaus
tatuados de rumor infinito.
A linha de Mondrian à frente dos meus olhos
vai cortando a noite em sombras rectas
agora que mais solidão não cabe
nas paredes de vidro.
Atravesso a rua Mao,a rua Stalin;
olho o instante em que morre um milénio
e outro desponta no terrestre domínio.
Meu século vertical, cheio de teorias...
Meu século com suas guerras, seus pós-guerras,
seu tambor de Hitler lá longe,
entre sangue e abismo.
Prossigo entre as pedras de velhos subúrbios
por um trago, um pouco de jazz,
contemplando os deuses que dormem
no serrim dos bares,
enquanto à passagem eu lhes decifro os nomes
e sigo o meu caminho.


(Trad. A.M.)

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14.5.11

Manuel António Pina (O que é dito)







O QUE É DITO





Alguma coisa em algum lugar
de o que existe e de o que não existe
é isto que escreve e a ciência de isto
a pura voz sem sujeito e o fora de ela.


Esta mão é um acontecimento improbabilíssimo
que o infinito e a eternidade atravessam,
alguma coisa fala de si própria através de ela.
De que pode ela falar senão de tudo?


O que está dentro e o que está fora
e vê e é visto de toda a parte
é o mesmo e o outro
e tudo isto é sabido em mim.



Manuel António Pina

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Eduardo Galeano (A utopia)






LA UTOPÍA




La utopía está en el
horizonte, me acerco
dos pasos, ella se aleja
dos pasos.
Camino diez pasos y el
horizonte se corre diez
pasos más allá.
Por mucho
que yo camine, nunca
la alcanzaré.
Para que sirve la utopía?
Para eso sirve: para caminar.



Eduardo Galeano






A utopia está no
horizonte, chego-me
dois passos e ela afasta-se
dois passos.
Caminho dez passos e o
horizonte foge dez
passos mais para lá.
Por mais
que eu caminhe, nunca
vou alcançá-la.
Para que serve a utopia?
Para isso mesmo, para caminhar.


(Trad. A.M.)


.

13.5.11

Aníbal Núñez (Já sabes, amada)






YA LO SABES, AMADA



Ya lo sabes, amada
ahora podemos
realizar nuestros sueños imposibles
esa luna de miel en cielo exótico
viaje todo incluido
vistas al mar crepúsculos
íntimos revisados por expertos
a nuestro alcance todos
los silencios románticos
con el nuevo sistema de cómodos
pagos a plazos: a escoger
islas privilegiadas o lugares
de gran mundo -aquel sueño
ya es una realidad-
(o bien quedarse aquí junto a la brecha
al lado de la lucha que aún hay tiempo
de jugarse el pellejo para algo)
una de dos, amada mía, no olvides
que elegir es el único problema
que este sistema ofrece.



ANÍBAL NUÑEZ
Fábulas domésticas
(1972)





Já sabes, amada
agora podemos
realizar nossos sonhos impossíveis
aquela lua de mel com céu exótico
viagem tudo incluído
vistas de mar crepúsculos
íntimos revistos por peritos
ao nosso alcance todos
os silêncios românticos
com o novo sistema de suaves
pagamentos a prestações: à escolha
ilhas privilegiadas ou lugares
da grande roda – esse sonho
é já uma realidade –
(ou então ficar por aqui junto à brecha
do lado da luta que ainda estamos
a tempo de travar para algo)
das duas uma, amada minha, não esqueças
que escolher é o único problema
que tem este sistema.


(Trad. A.M.)


.

11.5.11

Ana Montojo Micó (A ponta de navalha)






A PUNTA DE NAVAJA




Cuando al amor le da por suicidarse
no hay quien sea capaz de detenerlo;
de pronto se congelan los abrazos
y queman las palabras de ayer mismo.

Regresan los sicarios del orgullo
desde un negro reducto masoquista,
a robarnos la infantil inconsciencia
de amarnos a lo loco y sin preguntas,
como niños idiotas, sin recelos.

Ahora que hemos crecido y somos listos,
no nos engaña nadie; nos protege
nuestro propio demonio de la guarda
de cualquier tentación de ser felices
para poder dormir, plácidamente,
sobre la tibia almohada del fracaso.



Ana Montojo Micó



[El humo ciega mis ojos]





Quando o amor lhe dá para se matar
não há quem o possa deter;
gelam de repente os abraços
e queimam as palavras da véspera.

Voltam os sicários do orgulho
do seu negro reduto masoquista,
para nos roubar a inconsciência infantil
do nos amarmos como loucos, sem perguntas,
crianças idiotas, sem temores.

Agora que crescemos e estamos prontos,
ninguém nos engana; guarda-nos
o nosso próprio demónio custódio
de qualquer tentação de ser felizes
para poder dormir, placidamente,
a cabeça na travesseira do fracasso.


(Trad. A.M.)

.

10.5.11

Eugenio Montejo (A poesia)






LA POESÍA




La poesía cruza la tierra sola,
apoya su voz en el dolor del mundo
y nada pide
ni siquiera palabras.

Llega de lejos y sin hora, nunca avisa;
tiene la llave de la puerta.
Al entrar siempre se detiene a mirarnos.
Después abre su mano y nos entrega
una flor o un guijarro, algo secreto,
pero tan intenso que el corazón palpita
demasiado veloz. Y despertamos.



Eugenio Montejo





A poesia atravessa a terra sozinha,
apoia a sua voz na dor do mundo
e nada pede,
nem sequer palavras.

Chega de longe e sem hora, nunca avisa,
tem a chave da porta.
Ao entrar pára sempre a observar-nos.
Depois abre a mão e dá-nos
uma flor, uma pedra, algo secreto,
mas tão intenso que o coração bate
depressa demais. E despertamos.


(Trad. A.M.)




>>  A media voz (24p)  /  Wikipedia


.

9.5.11

Luís de Camões (Ao desconcerto do Mundo)






AO DESCONCERTO DO MUNDO




Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.



Luís de Camões


.

Ángel González (Assim parece)






ASÍ PARECE




Acusado por los críticos literarios de realista,
mis parientes en cambio me atribuyen
el defecto contrario;
                              afirman que no tengo
sentido alguno de la realidad.
Soy para ellos, sin duda, un funesto espectáculo:
analistas de textos, parientes de provincias,
he defraudado a todos, por lo visto;
¡qué le vamos a hacer!

Citaré algunos casos:

Ciertas tías devotas no pueden contenerse,
y lloran al mirarme.
Otras mucho más tímidas me hacen arroz con leche,
como cuando era niño,
y sonríen contritas, y me dicen:
                                               qué alto,
si te viese tu padre…,
y se quedan suspensas, sin saber qué añadir.

Sin embargo, no ignoro
que sus ambiguos gestos
disimulan
una sincera compasión irremediable
que brilla húmedamente en sus miradas
y en sus piadosos dientes postizos de conejo.

Y no sólo son ellas.

En las noches,
mi anciana tía Clotilde regresa de la tumba
para agitar ante mi rostro sus manos sarmentosas
y repetir con tono admonitorio:
¡Con la belleza no se come! ¿Qué piensas que es la vida?
Por su parte,
mi madre ya difunta, con voz delgada y triste,
augura un lamentable final de mi existencia:
manicomios, asilos, calvicie, blenorragia.

Yo no sé qué decirles, y ellas
vuelven a su silencio.
Lo mismo, igual que entonces,
como cuando era niño.
                                   Parece
que no ha pasado la muerte por nosotros.



ÁNGEL GONZÁLEZ,
Palabra sobre palabra
Seix Barral
Barcelona
(2004)



[Neorrabioso]




Acusado de realista pelos críticos literários,
os parentes em troca atribuem-me
o defeito contrário;
                             afirmam que não tenho
qualquer sentido da realidade.

Citarei alguns casos:

Certas tias devotas não se conseguem conter
e choram ao contemplar-me.
Outras mais tímidas fazem-me arroz doce,
como em criança,
e sorriem contritas, dizendo:
                                           que alto que estás,
se o teu pai te visse...
e ficam em suspenso, não sabendo que acrescentar.

Todavia, não ignoro
que seus gestos ambíguos
dissimulam
uma sincera compaixão irremediável
a brilhar humidamente no seu olhar
e nos seus piedosos dentes postiços de coelho.

E não são só elas.

À noite,
a minha velha tia Clotilde volta da sepultura
para me agitar na cara as mãos retorcidas,
repetindo em tom admonitório:
A beleza não dá de comer! Que é que tu pensas da vida?
Por seu lado,
minha finada mãe, com a voz delgada e triste,
augura um fim lamentável para a minha existência:
manicómio, asilo, calvície, blenorragia.

Eu não sei que dizer-lhes, e elas
voltam ao seu silêncio.
A mesma coisa, tal como dantes,
quando era criança.
                              Parece
que não passou por nós, a morte.



(Trad. A.M.)

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8.5.11

José Tolentino Mendonça (A fala do rosto)






A FALA DO ROSTO




És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra


Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos


Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas


Por ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos


É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento



José Tolentino Mendonça

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Angel Crespo (Para uma arte poética)






PARA UMA ARTE POÉTICA





O excesso de sinceridade na poesia, como no convívio,
é um egoísmo e, em última análise, uma falta de educação.

A poesia não busca o mistério, mas a verdade:
por isso é misteriosa.

Poesia sem contradição
é tanto como contradição sem poesia.

É uma imoralidade confundir poesia
com a moral.

Quando se tem uma ideia é ainda cedo para escrever poesia.
É preciso esperar que ela fuja de nós, nos engane
ou, melhor, nos deslumbre.
Então é o momento de persegui-la,
de tentar o poema.



Ángel Crespo

(Trad. José Bento)



[O melhor amigo]


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7.5.11

Charles Bukowski (Como ser um grande escritor)






COMO SER UM GRANDE ESCRITOR




tens que foder muitas mulheres
mulheres bonitas
e escrever alguns bons poemas de amor.

e não tens que te preocupar com a idade
e/ou novos talentos.

apenas bebe mais cerveja
mais e mais cerveja

e vai às corridas pelo menos uma vez
por semana

e vence
se possível.

aprender a vencer é difícil –
qualquer imbecil pode ser um bom perdedor.

e não te esqueças de Brahams
nem de Bach nem
da cerveja.

não faças exercício a mais.

dorme até ao meio-dia.

evita cartões de crédito
ou pagar seja o que for a
tempo e horas.

lembra-te que não há nenhum cu
no mundo que valha mais de $50
(em 1977).

e se tens a capacidade de amar
ama-te primeiro
mas nunca te esqueças da possibilidade de
derrota total
mesmo que a razão para a derrota
seja justa ou injusta –

sentir cedo o bafo da morte não é
assim tão mau.

afasta-te das igrejas e bares e museus,
e como a aranha sê
paciente –
o tempo é a nossa cruz,
mais o exílio
a derrota
a traição

tudo isso.

sê fiel à cerveja.

uma amante constante.

arranja uma grande máquina-de-escrever
e enquanto ouves os passos para cima e para baixo
lá fora

martela a coisa
martela com força

transforma-a num combate de pesos-pesados

transforma-a no touro na sua primeira investida

e lembra os velhos sacanas
que tão bem lutaram:
Hemingway, Céline, Dostoievsky, Hamsun.

se pensas que eles não enlouqueceram
em pequenos quartos
tal como tu agora

sem mulheres
sem comida
sem esperança

então não estás preparado.

bebe mais cerveja.
há tempo.
e se não houver
está tudo bem
na mesma.



Charles Bukowski

(Trad. m.a.domingos)


[O amor é um cão do inferno]


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Eduardo Galeano (O sistema)






EL SISTEMA /1





Los funcionarios no funcionan.
Los políticos hablan pero no dicen.
Los votantes votan pero no eligen.
Los medios de información desinforman.
Los centros de enseñanza enseñan a ignorar.
Los jueces condenan a las víctimas.
Los militares están en guerra contra sus compatriotas.
Los policías no combaten los crímenes, porque están ocupados en cometerlos.
Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan.
Es mas libre el dinero que la gente.
La gente esta al servicio de las cosas.
Tiempo de los camaleones: nadie ha enseñado tanto a la humanidad como estos humildes animalitos.
Se considera culto a quien bien oculta, se rinde culto a la cultura del disfraz.
Se habla el doble lenguaje de los artistas del disimulo. Doble lenguaje, doble contabilidad, doble moral: una moral para decir, otra moral para hacer.
La moral para hacer se llama realismo.
La ley de la realidad es la ley del poder. Para que la realidad no sea irreal, nos dicen los que mandan, la moral ha de ser inmoral.
Quien no se hace el vivo, va muerto. Estás obligado a ser jodedor o jodido, mentidor o mentido.
Tiempo del qué me importa, del qué le vas a hacer, del no te metas, del sálvese quien pueda.
Tiempo de los tramposos: la producción no rinde, el trabajo no vale.
En el Río de la Plata, llamamos bobo al corazón. Y no porque se enamora: lo llamamos bobo por lo mucho que trabaja.


Eduardo Galeano




Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam e nada dizem.
Os votantes votam mas não elegem.
Os meios de informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares fazem guerra aos compatriotas.
Os polícias não combatem os crimes, ocupados a cometê-los.
As falências socializam-se, o lucro é privatizado.
É mais livre o dinheiro do que as pessoas.
As pessoas estão ao serviço das coisas.
Tempo de camaleões: ninguém ensinou tanto o homem como eles.
Diz-se culto quem bem oculta, presta-se culto à cultura do disfarce.
Fala-se a dupla linguagem da dissimulação. Dupla linguagem, dupla contabilidade, dupla moral: uma moral na palavra, outra na acção.
A moral da acção chama-se realismo.
A lei da realidade é a lei do poder.
Para a realidade não ser irreal, diz quem manda, a moral tem de ser imoral.
Quem não se faz vivo está morto.
Estás sujeito a quilhar ou ser quilhado,
a enganar ou ser enganado.
Tempo de a mim que me importa, de que é que se há-de fazer, de não te metas, de salve-se quem puder.
Tempo de embusteiros: a produção não rende, o trabalho não vale.
No Rio da Prata, chamamos tonto ao coração. E não é por se enamorar, mas por muito trabalhar.


(Trad. A.M.)



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