28.4.14

Gonçalo M. Tavares (A ironia ensina)





A ironia ensina a sabotar uma frase
como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
no verbo ou numa letra do substantivo,
a frase trágica torna-se divertida,
e a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
a linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

Gonçalo M. Tavares

[Miss Marble]


.

27.4.14

Piedad Bonnett (Canções de ausência-1)





CANCIONES DE AUSENCIA

(1)

Aquí díjiste:
“son hermosos
los ojos húmedos de los caballos”.
Y aquí: “me encanta el viento”.
Desando yo tus pasos, revivo tus palabras.
Y te amo en la baldosa que pisaste,
en la mesa de pino
que aún guarda la caricia de tu mano,
en el estropeado cigarrillo
olvidado en el fondo de mi bolso.
Recorro cada calle que anduviste
y sé
que amaste este abedul y esta ventana. Aquí dijiste:
“así soy yo,
como esa música
triste y alegre a un mismo tiempo”.
Y te amo
en el olor que tiene mi cuerpo de tu cuerpo,
en la feliz canción
que vuelve y vuelve y vuelve a mi tristeza.
En el día aterido
que tú estás respirando no sé dónde.
En el polvo, en el aire,
en esa nube
que tú no mirarás,
en mi mirada
que te calcó y fijó en mi más triste fondo,
en tus besos sellados en mis labios,
y en mis manos vacías,
pues eres hoy vacío
y en el vacío te amo.

Piedad Bonnett

[Emma Gunst]



Aqui disseste:
"são belos
os olhos húmidos dos cavalos".
E aqui: "adoro o vento".
Percorro eu teus passos, revivo-te as palavras.
E amo-te no chão que pisaste,
na mesa de pinho
que guarda ainda a carícia da tua mão,
o cigarro desfeito
esquecido no fundo do bolso.
Percorro cada rua onde andaste
e sei
que amaste a bétula e esta janela.
Aqui disseste: "assim eu sou,
como essa música,
alegre e triste a um tempo".
E amo-te
no cheiro que tem meu corpo do teu corpo,
na canção feliz
que volta e torna a voltar à tristeza minha.
No dia gelado
em que respiras sei lá onde.
Na poeira, no vento,
nessa nuvem que não olharás,
no meu olhar que te calcou
e prendeu no fundo mais triste,
em teus beijos selados em meus lábios,
e nas minhas mãos vazias,
pois és hoje vazio
e no vazio te amo.

(Trad. A.M.)

.

26.4.14

Francisco Alvim (Quase aposentado)





QUASE APOSENTADO



Da janela de meu trabalho
vejo três palmeiras
Entre elas e eu uma rua estreita
uma lâmina de vidro
um parapeito baixo sobre o qual se amontoam fichas
catálogos
embrulhos
As palmeiras talvez tenham a minha idade
Posso dizer-lhes
(como se a mim algum dia houvesse dito)
— Somos moços
vamos ver o que a vida ainda nos reserva
A tarde é uma velha doente, ressentida com o mundo
em cujas veias o sangue tornou-se espesso e difícil
de cujas folhagens escorre uma brisa macilenta


Francisco Alvim

.


25.4.14

Pepe Ramos (Ausência de ti n.º 26)





AUSENCIA DE TI N.º 26



Conservar la amistad tras la ruptura es
disponer un cerebro en forma de corazón
y sentarse a esperar un latido,

tratar de colgar en la puerta del frigo
fotos de París con imanes de madera

y obstinarse en acariciar un gato
que lleva meses muerto

según tú.

Pepe Ramos



Conservar a amizade após a ruptura é
assim como arranjar um cérebro em forma de coração
e sentar-se à espera que bata,

ou pregar na porta do frigo
postais de Paris com íman de madeira,

ou então teimar em fazer festas a um gato
que está morto há muitos meses

segundo tu.

(Trad. A.M.)

.

24.4.14

Ferreira Gullar (Fica o não dito por dito)





FICA O NÃO DITO POR DITO



o poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra

o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer
e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer

mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?

mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?
por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo

por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo
do andar
do galo
no quintal

e os digo
sem dizê-los
bem ou mal

se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve

(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
– se delirasse –
diria)

mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria

e
se dito não fosse
jamais se saberia

por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)

mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia

então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite


Ferreira Gullar


[Bibliotecário de Babel]

.

23.4.14

Kutxi Romero (Amor?)





AMOR?



Qué sabrán los poetas y sus
míseras bocas de amor.
Qué doctrina habrá en acariciar pieles
desde sus versos de mierda,
sus falsas vidas,
sus supuestos afligidos semblantes,
de sus torturadas vidas me río yo,
porque yo he visto poesía en las caras
y los días de los míos,
en callos y sudores,
en enfrentadizas miradas a un mundo
que no vereis ni en el más abyecto de
vuestros sonrosados sueños,
en pieles tatuadas por soles navajeros
y vientos del sur,
yo he visto poesía en madrugadas en vela,
en las paredes de mi casa,
he visto poesía huir de papeles, dogmas y
métricas, poesías sin lágrimas,
sin malditismos ni presunción alguna,
una poesía de pan y agua,
de te quiero porque sí,
la que me trajo vida y se la llevará,
la que te ofrezco, mundo de mierda,
mientras viva.

Kutxi Romero

[No supiste, o no quisiste]



O que saberão de amor os poetas
e suas bocas de miséria?
Que doutrina haverá no afago de peles
dos seus versos de merda,
suas falsas vidas,
seus pretensos aflitos semblantes?
De suas vidas torturadas me rio eu,
porque a poesia vi-a
nas caras e nos dias dos meus,
em calos e suores,
em olhares de desafio para um mundo
que jamais vereis nem no mais abjecto
dos vossos sonhos cor de rosa,
em peles tatuadas por sóis cortantes
e ventos do sul,
eu vi a poesia em madrugadas sem sono,
nas paredes de casa,
vi-a a fugir de papéis, dogmas
e métricas, poesia sem prantos,
sem malditismos nem qualquer presunção,
uma poesia de pão e água,
de quero-te porque sim,
essa que me deu vida e que há-de levá-la,
essa que eu te ofereço, mundo de merda,
enquanto viver.

(Trad. A.M.)

.



22.4.14

Fernando Pessoa (Não: não digas nada)





Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada; sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.


Fernando Pessoa

.

21.4.14

Jorge Luis Borges (Os meus livros)





MIS LIBROS



Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

Jorge Luis Borges

[Autores editores]



Meus livros (que não sabem que eu existo)
são tão parte de mim como este rosto
de têmporas e olhos cinzentos
que em vão procuro nos espelhos
e que percorro com a mão em concha.
Não sem certa amargura
penso que as palavras essenciais,
que me expressam, estão nessas folhas
que não sabem quem eu sou, não naquelas que escrevi.
Melhor assim. As vozes dos mortos
dir-me-ão para sempre.

(Trad. A.M.)

.

19.4.14

Pedro Andreu (Letra por letra)




LETRA A LETRA


Perdona si mi voz no es la que era,
si en mi cuarto hay ese olor
a plácida violencia tras el llanto, si tengo canas
y por fin me asalta la resaca tras la fiesta
con su cuchillo hiriente y melancólico,
si aún llega fin de mes a noche trece,
si la ducha sigue estropeada,
si no he ganado nunca el Jaime Gil de Biedma
ni aprendí a bailar tangos ni manejo
automóviles caros como la madrugada...
Perdóname también si no me corto un pelo
ni trabajo ni duermo ni dejo de llamarte
ni sé pedir perdón como dios manda
sin reírme en la madre que parió a este planeta.

Perdona —conejito de miel, hembra de otros,
bichito de la luz en mi pasado,
memoria ardida en cueros, perfume
de corazón burdel— tantas palabras putas
que te dije.
Perdóname... si me voy olvidando de tu cara,
si dibujé tu nombre en nuestro patio
con un palo y oriné sobre él
hasta borrarte el alma, letra a letra.

Pedro Andreu

[Las afinidades electivas]

[YouTube]



Perdoa se minha voz não é a que era,
se o meu quarto tem esse odor
a plácida violência depois do pranto,
se tenho cãs e me assalta a ressaca após a festa
com seu punhal agressivo e melancólico,
se o fim do mês chega logo na noite treze,
se o chuveiro continua avariado,
se nunca ganhei o Jaime Gil de Biedma,
nem aprendi a dançar tango nem conduzo
carros caros como a madrugada...
Perdoa-me também se não corto um cabelo
nem trabalho nem durmo nem deixo de chamar-te
nem sei pedir perdão como deus manda
sem me rir da mãe que pariu este mundo...
Perdoa – coelhinho de mel, fêmea de outrem,
bichinho da luz do meu passado,
ardida memória, perfume de coração bordel –
tantas palavras feias que te disse.
Perdoa-me... se a tua cara me vai esquecendo,
se com um pau escrevi teu nome no pátio
e urinei sobre ele
até te apagar a alma, letra por letra.

(Trad. A.M.)

.


18.4.14

Bertolt Brecht (Contra os objectivos)





CONTRA OS OBJECTIVOS


1

Quando os que combateram a injustiça
Mostram as faces feridas
A impaciência dos que estiveram em segurança é
Grande.

2

Porque vos queixais? - perguntam eles
Combatestes a injustiça! Agora
Foi ela que vos venceu: calai-vos pois.

3

Quem combate, dizem eles, tem de saber perder
Quem busca a luta corre perigo
Quem age com violência
Não se deve queixar da violência.

4

Ai, amigos que estais em segurança,
Por quê tão inimigos? Somos nós
Vossos inimigos, nós que somos inimigos da injustiça?
Se os combatentes contra a injustiça estão vencidos
Nem por isso a injustiça se faz justa!!

5

Pois as nossas derrotas
Nada provam senão
Que somos poucos
Os que combatemos contra a vilania.
E dos espectadores nós esperamos
Que ao menos tenham vergonha!


Bertolt Brecht

(Trad. Paulo Quintela)


[Luz & sombra]

.

17.4.14

Blanca Varela (Suposições)





SUPUESTOS



el deseo es un lugar que se abandona
la verdad desaparece con la luz
corre-ve-y-dile

es tan aguda la voz del deseo
que es imposible oírla
es tan callada la voz de la verdad
que es imposible oírla

calor de fuego ido
seno de estuco
vientre de piedra
ojos de agua estancada
eso eres

me arrodillo y en tu nombre
cuento los dedos de mi mano derecha
que te escribe

me aferro a ti
me desgarra tu garfio carnicero
de arriba abajo me abre como a una res
y estos dedos recién contados
te atraviesan en el aire y te tocan

y suenas suenas suenas
gran badajo
en el sagrado vacío de mi cráneo.

Blanca Varela

[Life vest under your seat]




o desejo é um lugar que se abandona
a verdade desaparece com a luz
corre-vê-e-diz-lhe

é tão aguda a voz do desejo
que é impossível ouvi-la
é tão calada a voz da verdade
que é impossível ouvi-la

calor de fogo passado
seio de estuque
ventre de pedra
olhos de água entancada
eis o que és

ajoelho-me e em teu nome
conto os dedos da mão direita
que te escreve

agarro-me a ti
o teu gancho rasga-me
abre-me de cima abaixo como uma rês
e estes dedos contados há pouco
trespassam-te no ar e tocam-te

e tu soas soas soas
badalo imenso
no vazio sagrado da minha mente

(Trad. A.M.)

.

16.4.14

Daniel Faria (Explicação do poeta)





EXPLICAÇÃO DO POETA



Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço


Daniel Faria

.

15.4.14

Pedro A. González Moreno (Prólogo)





PRÓLOGO



No meio dos meus livros,
nesse frio reino da desordem
que são os livros de minha casa – onde
é que já se viu, ordem no reino da dor? – há
uma estante onde mal
chega a luz. Às vezes ouve-se um ruído
de passos nela, e a madeira range
com um estalido surdo como de osso.
Tal como um organismo monstruoso,
cresce a estante como se pretendesse
escorar o ar e as paredes
ou o sonho da minha casa;
mas dessas prateleiras vivas
uma há, abaulada, que range
com som de carne e ressuma
não sei se tinta fresca, resina ou sangue
ou só gotas de raiva e desconsolo.
Uma prateleira onde não cabe
nem mais uma folha,
que racharia
se lhe pusessem em cima só mais
um grama de dor.
E range,
range sempre, todas as noites,
como pele a ponto de rasgar,
como terra maldita cujos mortos
não aprendessem ainda
a morrer definitivamente.


PEDRO A. GONZÁLEZ MORENO
Anaqueles sin dueño
Hiperión (2010)

(Trad. A.M.)


.

14.4.14

Dana Gioia (Insónia)





INSOMNIA



Now you hear what the house has to say.
Pipes clanking, water running in the dark,
the mortgaged walls shifting in discomfort,
and voices mounting in an endless drone
of small complaints like the sounds of a family
that year by year you've learned how to ignore.
But now you must listen to the things you own,
all that you've worked for these past years,
the murmur of property, of things in disrepair,
the moving parts about to come undone,
and twisting in the sheets remember all
the faces you could not bring yourself to love.
How many voices have escaped you until now,
the venting furnace, the floorboards underfoot,
the steady accusations of the clock
numbering the minutes no one will mark.
The terrible clarity this moment brings,
the useless insight, the unbroken dark.

DANA GIOIA
Daily Horoscope
(1986)



Escutas agora o que a casa tem para dizer.
Canos barulhentos, água a correr no escuro,
os muros hipotecados a tornar-se desconfortáveis
e vozes erguendo-se num murmúrio
de pequenas queixas como os sons de família
que tu aprendeste a ignorar ano a ano.
Mas agora tens de ouvir as coisas que te pertencem,
tudo isso por que trabalhaste nos últimos anos,
o murmúrio dos bens, de coisas estragadas,
partes quase a cair e a desfazer-se;
e lembrar, revirando-te na cama, todas
as caras que não te foi dado amar.
Quantas vozes te escaparam até agora,
o forno eléctrico, o soalho por baixo dos pés,
as acusações constantes do relógio,
contando os minutos que ninguém regista.
A claridade terrível deste momento,
a inútil revelação, a escuridão intacta.

(Trad. A.M.)

.

13.4.14

Patricio Rascón (O silêncio)





SILENCIO



Inseparable del silencio
Siempre
El sonido de tu voz

Patricio Rascón

[Ocurre mientras dormimos]




Inseparável do silêncio
Sempre
O som da tua voz

(Trad. A.M.)


.

12.4.14

Charles Bukowski (Hoje)





TONIGHT



“your poems about the girls will still be around
50 years from now when the girls are gone,”
my editor phones me.
dear editor:
the girls appear to be gone
already.
I know what you mean
but give me one truly alive woman
tonight
walking across the floor toward me
and you can have all the poems
the good ones
the bad ones
or any that I might write
after this one.
I know what you mean.
do you know what I mean?

Charles Bukowski



“os teus poemas de mulheres ainda existirão
daqui a 50 anos quando elas já tiverem desaparecido”,
diz-me ao telefone o meu editor
meu caro editor:
ao que parece as mulheres já desapareceram mesmo.
sei o que queres dizer
mas dá-me para hoje uma mulher realmente vivinha da silva
pisando na sala a dirigir-se para mim
e podes ficar com todos os poemas
os bons
os ruins
ou outros que eu possa escrever
depois deste.
sei o que queres dizer.
sabes tu o que eu quero dizer?

(Trad. A.M.)

.

11.4.14

Paz Hernández (Algumas palavras para meu pai)





UNAS PALABRAS A MI PADRE



En el fuego, con las botas puestas
sobre el fuego
el casco bajo el fuego
y el coraje llama para
proteger la vida
por encima de todo.

En pijama, subiendo
unas escaleras de madera que
esta noche crujen
deshaciendo la horca
por encima de todo
haciendo la vida.

En el jardín, con las manos llenas
de tierra y una mujer tan rubia
tan contenta
plantando juntos
la vida
amamantándola.

Siendo incendio,
bajo los escombros, de vida,
que se asoma a la luz.

Velando las noches de fiebre
de las crías.

Curando las alas rotas de los pájaros
aprendiendo a volar
escuchando a Bach.

Manifestándote
en las calles,
sonriendo en la cocina.

Así eres, como la vida
y como el fuego te quiero
hija del fuego.

Paz Hernández




À fogueira, com as botas
sobre o lume
o capacete por baixo
e a coragem chama de
proteger a vida
acima de tudo.

De pijama, subindo
as escadas de madeira que
rangem à noite
desfazendo a forca
acima de tudo
fazendo a vida.

No jardim, as mãos cheias
de terra e uma mulher tão loira
tão contente
plantando juntos
a vida
amamentando-a.

Sendo incêndio,
sob os escombros, de vida,
assomando à luz.

Velando as noites de febre
dos filhos.

Curando as asas quebradas das aves
aprendendo a voar
a ouvir Bach.

Manifestando-te nas ruas,
sorrindo na cozinha.

Assim és, tal como a vida,
e como ao fogo te quero,
filha do fogo.

(Trad. A.M.)

.

10.4.14

Cassiano Ricardo (Poética)





POÉTICA



1

Que é a Poesia?

uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados.

2

Que é o Poeta?

um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.


Cassiano Ricardo



>>  Fundação-1 (tudo+algo) / Fundação-2 (poemas/10 livros) / Jornal de Poesia (18p+bio-biblio) / Antonio Miranda (24p)

.

9.4.14

Irene Sánchez Carrón (Não falemos de poesia)





NO HABLEMOS DE POESÍA


No hablemos de poesía.
La tarde está perfecta,
llueve y la gente corre a sus refugios.
Pensemos adónde irá la mujer
de hermosas piernas salpicadas de barro
o el hombre sin paraguas
que cruza sin permiso la avenida.
Pronto se quedará desierta nuestra calle
y tendremos que hablar de cualquier cosa,
de poesía quizá,
de cualquier cosa.


Irene Sánchez Carrón

[Emma Gunst]



Não falemos de poesia.
A tarde está óptima,
chove e as pessoas correm para suas casas.
Pensemos aonde irá a mulher
de belas pernas salpicadas de lama
ou o homem sem guarda-chuva
que atravessa sem licença a avenida.
Depressa ficará deserta a rua
e vamos ter de falar de qualquer coisa,
de poesia talvez,
de qualquer coisa.

(Trad. A.M.)

.

8.4.14

Carlos Drummond de Andrade (Para sempre)





PARA SEMPRE



Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
– mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.


Carlos Drummond de Andrade


[Bula revista]

.



7.4.14

Um verso (137)





Um verso de Rui Pires Cabral
(feito, afeito ou desafeito):




eu sempre estranhei um pouco a cama da vida


.

José Bento (Nenhum dos meus caminhos)





Nenhum dos meus caminhos guarda a tua sombra:
só as minhas mãos ficaram maiores com a tua ausência
e andam perdidas,
não sabendo escontrar-se uma com a outra.

O ventre de cada dia é um espelho a recordar-te
- um espelho onde o meu rosto não cabe -
e eu avanço, petrificado de silêncio,
como se me chamasses,
tendo-te cada momento mais distante
nas asas cansadas dos olhos sonolentos.

Se descendo minhas pálpebras prendesse a tua imagem,
jamais amanheceria para mim.
Se as minhas mãos decepadas pudessem encontrar-te,
dar-te-ia minha mãos como espada para o teu regresso.

Assim, gasto-me nos longos túneis desta ânsia,
certo de que jamais
estarei presente para ti
em cada estrela que descobrires na noite.


José Bento



>>  Antonio Miranda (2p) / Infopedia (perfil) / Wikipedia

.

6.4.14

Carlos Marzal (Omnia secundum litem fiunt)





OMNIA SECUNDUM LITEM FIUNT



Contra nosotros mismos, y contra la idea
que de nuestro demonio hemos formado,
para que de él se sirvan los demás,
para que nos sirvamos. Contra la vieja sangre
que quiere destruirte. A contratiempo,
contra el tiempo, que ya se ha terminado
aun antes de empezar. Y contra las inútiles
lecciones del dolor. Contra el azar ya escrito,
inapelable. Y contra la ciudad de las ciudades,
que es la ciudad del alma. Contra lo que ahora olvido,
contra lo que podría recordar y contra
el fracasado propósito de esta enumeración,
que es encerrar el mundo.
                        Todo es contienda,
todo nos duele y ya nos abandona,
y todo permanece y es lo mismo.

Salvar la piel un día es un milagro.


Carlos Marzal

[Life vest under your seat]



Contra nós mesmos, contra a ideia
que temos do nosso demónio,
para que os outros dele se sirvam,
e nós. Contra o velho sangue
que nos quer destruir. A contratempo,
contra o tempo, que terminou
antes mesmo de começar. E contra as inúteis
lições da dor. Contra o acaso já escrito,
sem apelo. E a cidade das cidades,
contra a cidade da alma. Contra aquilo
que agora não lembro,
contra o que podia recordar e contra
o fracassado propósito desta enumeração,
que é encerrar o mundo.
                          Tudo é disputa,
tudo nos dói e nos abandona,
e tudo permanece e é o mesmo.

Salvar a pele um dia é um milagre.

(Trad. A.M.)

.

5.4.14

António José Forte (O poeta em Lisboa)





O POETA EM LISBOA



Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha – numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.


António José Forte

[Arquivo de cabeceira]

.

4.4.14

Um verso (136)





Um verso de António Franco Alexandre
(um alexandrino, por assim dizer):



Olho-te agora e já não estremeço



.

António Gregório (A traição do Celso)





A TRAIÇÃO DO CELSO



Jogava comigo na defesa reduto
dos inábeis dos impopulares (abaixo
de nós só o guarda-redes): o Celso e eu
vendo a glória avançada e esperando os embates
entre o medo de sempre e o desejo da acção
heróica redentora. Mas como no amor
cabia-nos menos defender antes ser
repositório de culpas pelos falhanços
colectivos e como um amante traiu-me
quando atrás de não sei que instinto (parecia
doido) subiu à baliza dos outros e
marcou o melhor golo da terceira classe.

António Gregório


[Antologia]


.

3.4.14

Paco Moral (Sem impressão, sem marca)





SIN IMPRESIÓN, SIN HUELLA



Nada más que la ausencia de tu dolor me habita.

Y esas marcas oscuras que buscas en mis ojos
delatan la vigilia de las horas sin verte,
la ausencia de tu llama,
los siglos que se pasan sin saber de tu vida.
Sin huella, sin impresión, sin nada corpóreo
a lo que asirme,
te extraño hasta la angustia.

Bastaría una caricia
y el sol que anuncia abril tendría sentido.

Paco Moral



Habita-me a dor da tua ausência, nada mais.

E as manchas escuras que buscas em meus olhos
acusam a vigília das horas sem te ver,
a ausência da tua chama,
os séculos que passam sem nada saber de ti.
Sem marca, sem impressão, sem nada corpóreo
a que agarrar-me,
que falta que me fazes até à angústia.

Uma carícia bastava
e o sol de Abril já teria sentido.

(Trad. A.M.)

.

2.4.14

Anne Sexton (De elevador para o céu)





RIDING THE ELEVATOR INTO THE SKY



As the fireman said:
Don't book a room over the fifth floor
in any hotel in New York.
They have ladders that will reach further
but no one will climb them.
As the New York Times said:
The elevator always seeks out
the floor of the fire
and automatically opens
and won't shut.
These are the warnings
that you must forget
if you're climbing out of yourself.
If you're going to smash into the sky.

Many times I've gone past
the fifth floor,
cranking upward,
but only once
have I gone all the way up.
Sixtieth floor:
small plants and swans bending
into their grave.
Floor two hundred:
mountains with the patience of a cat,
silence wearing its sneakers.
Floor five hundred:
messages and letters centuries old,
birds to drink,
a kitchen of clouds.
Floor six thousand:
the stars,
skeletons on fire,
their arms singing.
And a key,
a very large key,
that opens something
- some useful door
- somewhere
up there.

Anne Sexton

[Hasta donde llega la voz]



Como disse o bombeiro,
não queiras um quarto acima do quinto
andar em qualquer hotel em Nova Iorque.
Têm escadas, mas ninguém as subirá.
Como disse o New York Times,
o elevador acerta sempre
com o piso do incêndio,
abre-se automaticamente
e não se fecha.
Estes os avisos
que tu terás de esquecer
se a ideia for sair de ti mesmo
e ir-te esmagar de encontro ao céu.

Muitas vezes passei eu
do quinto andar,
por ali acima,
mas só uma vez cheguei ao topo.
Piso sessenta,
plantas pequenas e cisnes
curvados sobre a campa.
Piso duzentos,
montes com a paciência de um gato
e silêncio calçado com sapatilhas.
Piso quinhentos,
cartas e mensagens com séculos,
aves de beber,
uma cozinha feita de nuvens.
Piso seis mil,
estrelas,
esqueletos em chama,
com os braços cantando.
E uma chave,
uma chave enorme
que alguma coisa há-de abrir
- alguma porta útil
- em algum lado
- lá em cima.

(Trad. A.M.)

.

1.4.14

Pablo Neruda (Ode ao livro-II)





ODA AL LIBRO (II)


Libro
hermoso,
libro,
mínimo bosque,
hoja
tras hoja,
huele
tu papel
a elemento,
eres
matutino y nocturno,
cereal,
oceánico,
en tus antiguas páginas
cazadores de osos,
fogatas
cerca del Mississippi,
canoas
en las islas,
más tarde
caminos
y caminos,
revelaciones,
pueblos
insurgentes,
Rimbaud como un herido
pez sangriento
palpitando en el lodo,
y la hermosura
de la fraternidad,
piedra por piedra
sube el castillo humano,
dolores que entretejen
la firmeza,
acciones solidarias,
libro
oculto
de bolsillo
en bolsillo,
lámpara
clandestina,
estrella roja.

Nosotros
los poetas
caminantes
exploramos
el mundo,
en cada puerta
nos recibió la vida,
participamos
en la lucha terrestre.
Cuál fue nuestra victoria?
Un libro,
un libro lleno
de contactos humanos,
de camisas,
un libro
sin soledad, con hombres
y herramientas,
un libro
es la victoria.
Vive y cae
como todos los frutos,
no sólo tiene luz,
no sólo tiene
sombra,
se apaga,
se deshoja,
se pierde
entre las calles,
se desploma en la tierra.
Libro de poesía
de mañana,
otra vez
vuelve
a tener nieve o musgo
en tus páginas
para que las pisadas
o los ojos
vayan grabando
huellas:
de nuevo
descríbenos el mundo
los manantiales
entre la espesura,
las altas arboledas,
los planetas
polares,
y el hombre
en los caminos,
en los nuevos caminos,
avanzando
en la selva,
en el agua,
en el cielo,
en la desnuda soledad marina,
el hombre
descubriendo
los últimos secretos,
el hombre
regresando
con un libro,
el cazador de vuelta
con un libro,
el campesino arando
con un libro.

Pablo Neruda



Livro
belo,
livro,
mínimo bosque,
folha
após folha,
cheira
aos elementos
teu papel,
és matinal
e nocturno,
cereal,
oceânico,
nessas páginas antigas
caçadores de ossos
fogueiras do Mississipi,
canoas das ilhas,
mais tarde
caminhos
e caminhos,
revelações,
povos
levantados,
Rimbaud como um peixe
ferido a sangrar
palpitante no lodo,
e a beleza
da fraternidade,
pedra a pedra
sobe o castelo humano
dores entretecendo
a firmeza,
acções solidárias,
livro
oculto
de bolso
em bolso,
lâmpada
clandestina,
estrela vermelha.

Nós, poetas
caminhantes
exploramos
o mundo,
a vida nos recebendo
em cada porta,
participamos
na luta terrestre.
Qual a vitória nossa?
Um livro,
um livro cheio
de humanos contactos,
de camisas,
um livro
sem solidão, com homens
e ferramentas,
um livro
é a vitória.
Vive e cai
como todo o fruto,
não só tem luz,
não só tem
sombra,
como se apaga
e desfolha,
perde-se
pelas ruas,
despenha-se na terra.
Livro de poesia
de manhã,
volta
de novo
a ter neve ou musgo
nessas páginas,
para que os passos
ou os olhos
aí vão deixando
marcas:
diz-nos de novo
o mundo
os veios
por entre a espessura,
os altos bosques,
os planetas
polares,
e o homem
nos caminhos,
nos novos caminhos,
avançando
na selva,
na água,
no céu,
na solidão nua do mar,
o homem
descobrindo
os últimos segredos,
o homem
regressando
com um livro,
o caçador de volta
com um livro,
o camponês lavrando
com um livro.


(Trad. A.M.)


.

31.3.14

Ana Luísa Amaral (Olho-te pelo reflexo)





Olho-te pelo reflexo
do vidro
e o coração da noite

e o meu desejo de ti
são lágrimas por dentro,
tão doídas e fundas
que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.


Ana Luísa Amaral

.

30.3.14

Laura Ponce (Não andamos)





NO ANDAMOS



Las mujeres no andamos por ahí midiendo
quién la tiene más profunda
porque el dolor es inconmensurable
y alcanza para todas.

Laura Ponce

[Emma Gunst]



Nós mulheres não andamos por aí a medir
quem tem a dor mais profunda
porque a dor não se mede
e chega para todas.

(Trad. A.M.)

.

29.3.14

Amadeu Baptista (Dois mil e três)





DOIS MIL E TRÊS



Aos cinquenta anos há já poucas decisões
para tomar.

Os filhos estão criados,
há muito que deixaram de tocar a relha
do arado
e de olhar as árvores
como poderosos
instrumentos da imperceptibilidade.

Sem alegria,
ouvimo-los sussurrar,
quase em segredo,

«agora não se agaste,
de há uns tempos a esta parte pertencemos
a um reino
de números primos
e não queremos voltar ao canavial».

Aos cinquenta anos,
nem já um cão queremos ter,
vamos de café em café a pôr questões inúteis,
a perguntar
se o desejo que temos pela mulher que passa
é realmente genuíno,
ou só a desejamos
pelas meias violeta que lhe iluminam
a perna,
fazendo entretecer a agitação do corpo
com uma certa graciosidade incontornável.

Aos cinquenta anos,
apenas indagamos as horas a que é o jogo,
sem qualquer intenção de o irmos ver
ou anotar na agenda
a hora pré-determinada
da consulta
em que a exclusão nos vai visitar,
aqui,
ali,
no centro médico,
ou na capela mortuária
onde dizemos um derradeiro adeus
ao mais pontual amigo.

Aos cinquenta anos,
constatamos que o radiador perde água,
que a lâmpada fundida está coberta
por uma fina película de poeira
que nunca viramos antes,
a mesma poeira que suja a nossa pele,
a nossa excessiva presença pela casa.

Aos cinquenta anos
a cabeça vai-nos caindo sobre o peito
e sufocamos com sono
e os joelhos dobram-se sobre nós,
no exacto momento em que recitamos a oração da infância,
com medo do escuro,
o mesmo medo do escuro
de quando éramos meninos
e o vigor dos nossos tornozelos suportava
a correria no vento,
entre os fetos.

Aos cinquenta anos
perdemos mais um dente,
espiamos a cabeleira ainda farta,
percebendo que não nos irá faltar cabelo
até ao fim,
se, eventualmente,
a radioterapia se desviar de nós
e o arsenal químico do costume
se não interpuser entre a nossa ténue esperança.

Aos cinquenta anos
ainda projectamos ir pela pedreira
à procura de mica e feldspato,
ainda interpelamos a morte
com as mãos vivas, ensombrecendo
o chão à nossa frente,
limpo,
sinuosamente limpo à nossa frente,
atirando uma pedra para o lago
na tentativa vã de descobrirmos
o que são esses círculos circuncêntricos
que, com mansa bonança, avançam
para a margem.

Aos cinquenta anos,
dizemos, entre-dentes,
“calma, não é, ainda, o fim do mundo”,
enquanto perscrutamos o sulco
que a retroescavadora abriu
no campo largo.


Amadeu Baptista


[Amadeu Baptista]

.

28.3.14

Francisco Brines (Qual é a glória da vida?)





¿ Cuál es la gloria de la vida, ahora
que no hay gloria ninguna,
sino la empobrecida realidad ?
¿ Acaso conocer que el desengaño
no te ha arrancado ese deseo hondo
de vivir más ?

La gloria de la vida fue creer
que existía lo eterno;
o, acaso, fue gloria de la vida
aquel poder sencillo
de crear, con el claro pensamiento,
la fiel eternidad.
La gloria de la vida, y su fracaso.

Francisco Brines



Qual é a glória da vida, agora
que não há glória nenhuma,
só a pobre realidade?
Saber talvez que o desengano
não te arrancou o desejo profundo
de viver mais?

A glória da vida foi crer
que o eterno existia;
ou, porventura, aquele simples poder
de criar, em pensamento,
a fiel eternidade.
A glória da vida - e o seu fracasso.

(Trad. A.M.)

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27.3.14

Mark Strand (Espelho)





MIRROR



A white room and a party going on
and I was standing with some friends
under a large gilt-framed mirror
that tilted slightly forward
over the fireplace.
We were drinking whiskey
and some of us, feeling no pain,
were trying to decide
what precise shade of yellow
the setting sun turned our drinks.
I closed my eyes briefly,
then looked up into the mirror:
a woman in a green dress leaned
against the far wall.
She seemed distracted,
the fingers of one hand
fidgeted with her necklace,
and she was staring into the mirror,
not at me, but past me, into a space
that might be filled by someone
yet to arrive, who at that moment
could be starting the journey
which would lead eventually to her.
Then, suddenly, my friends
said it was time to move on.
This was years ago,
and though I have forgotten
where we went and who we all were,
I still recall that moment of looking up
and seeing the woman stare past me
into a place I could only imagine,
and each time it is with a pang,
as if just then I were stepping
from the depths of the mirror
into that white room, breathless and eager,
only to discover too late
that she is not there.

Mark Strand

[Marcelo Leites]



Uma sala branca, uma festa a correr,
e eu com alguns amigos
debaixo de um grande espelho dourado
ligeiramente inclinado
sobre a lareira.
A tomar uísque,
alguns de nós tentando decifrar
o preciso tom do amarelo
que o sol do ocaso punha nos copos.
Eu fecho os olhos por um instante,
depois olho para o espelho:
uma mulher de verde está encostada
à parede distante.
Parece distraída,
a brincar com o colar
nos dedos da mão,
a olhar muito fita para o espelho,
não para mim, para trás de mim, um canto
que poderia ocupar alguém
que estivesse para chegar,
estando então a iniciar a viagem
que levaria àquela mulher.
Aí, de repente, os meus amigos
dizem que está na hora de ir.
Isto foi há anos e,
se me passou onde é que fomos depois
e quem éramos nós todos,
lembro-me ainda quando ergui os olhos
e vi a mulher a fitar para trás de mim,
um recanto que eu não via e só podia imaginar.
Lembro, com um espinho a morder-me cá dentro,
como se eu então aparecesse na sala,
vindo lá do fundo do espelho,
sem fôlego e ansioso,
só para descobrir tarde de mais
que ela não está ali presente.

(Trad. A.M.)

.

26.3.14

Julio Cortázar (Distribuição do tempo)





DISTRIBUCIÓN DEL TIEMPO



Cada vez somos más los que creemos menos
en tantas cosas que llenaron nuestras vidas,
los más altos, indiscutibles valores vía Platón o Goethe,
el verbo, su paloma sobre el arca de la historia,
la pervivencia de la obra, la filiación y la heredad.

No por eso caemos con el celo del neófito
en esa ciencia que ya pone sus robots en la luna;
en verdad, en verdad, nos es bastante indiferente,
y si el doctor Barnard transplanta un corazón
preferiríamos mil veces que la felicidad de cada cual
fuese el exacto, necesario reflejo de la vida
hasta que el corazón insustituible dijera dulcemente basta.

Cada vez somos más los que creemos menos
en la utilización del humanismo
para el nirvana estereofónico
de mandarines y de estetas.

Sin que eso signifique
que cuando hay un momento de respiro
no leamos a Rilke, a Verlaine o a Platón,
o escuchemos los claros clarines,
o miremos los trémulos ángeles
del Angélico.


Julio Cortázar

[De sibilas y pitias]



Cada vez somos mais os que cremos menos
em tantas coisas que encheram nossas vidas
os mais altos e indiscutíveis valores via Platão ou Goethe,
o verbo, sua pomba sobre a arca da história,
a pervivência da obra, a filiação e a sucessão.

Nem por isso caímos com o zelo do neófito
nessa ciência que põe já os seus robôs na lua;
em verdade, em verdade, é-nos bastante indiferente,
e se o dr. Barnard transplantar um coração
preferiríamos mil vezes que a felicidade de cada qual
fosse o exacto, necessário reflexo da vida
até o coração insubstituível dizer docemente basta.

Cada vez somos mais os que cremos menos
na utilização do humanismo
para o nirvana estereofónico
de mandarins e de estetas.

Sem que isso signifique,
quando há um momento de pausa,
que não leiamos Rilke, Verlaine ou Platão,
ou escutemos os claros clarins,
ou contemplemos os anjos trémulos
de Angelico.

(Trad. A.M.)

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25.3.14

Alda Merini (Temor dos teus olhos)





PAURA DEI TUOI OCCHI



Paura dei tuoi occhi,
di quel vertice puro
entro cui batte il pensiero,
paura del tuo sguardo
nascosto velluto d'algebra
col quale mi percorri,
paura delle tue mani
calamite leggere
che chiedono linfa,
paura dei tuoi ginocchi
che premono il mio grembo
e poi ancora paura,
finché il mare sommerge
questa mia debole carne
e io giaccio sfinita
su di te che diventi spiaggia
e io che divento onda
che tu percuoti e percuoti
con il tuo remo d'Amore.

Alda Merini



Temor dos teus olhos,
desse vértice puro
onde bate o pensamento,
temor do teu olhar
oculto veludo de álgebra
com que me percorres,
temor das tuas mãos
magnetos ligeiros
reclamando seiva,
temor dos teus joelhos
que me apertam o ventre
e depois temor ainda,
até o mar cobrir
este meu corpo débil
e eu por terra, desfeita
debaixo de ti feito praia
e eu então feita onda
que tu feres uma vez e outra
com o teu remo de Amor.


> Outra versão: Luz & sombra (J.E.Simões)

.

24.3.14

Manuel Moya / Violeta (Fazer as coisas mal)





Hacer las cosas mal, sin propósito de enmienda,
sin que te tiemble el pulso, vamos.
Todo mal.
Levantar una casa en un peñasco
para que no duermas tranquila en esa casa.
Que en cada tempestad algo se caiga,
no soporte, se destruya.
Hacer las cosas mal,
tener el valor de hacerlas mal.
Dejar clavos en el suelo y cristales en los ojos.

Pero que quepas, que quepas tú
aunque no duermas.
Que quepas, que no haya
día que no pienses
que estás a punto de palmarla,
de irte a la otra esquina,
que ya nadie te pueda librar de la desgracia.

Violeta C. Rangel

[Apología de la luz]



Fazer mal as coisas, sem propósito de emenda,
sem tremer o pulso, vá.
Tudo mal.
Fazer uma casa num penhasco
para não dormir nela tranquila.
Que algo caia na tempestade,
não aguente, se desfaça.
Fazer mal as coisas,
ter coragem de fazê-las mal.
Deixar picos no chão e vidros nos olhos.

Mas que tu caibas, que caibas
embora não durmas.
Que caibas, que dia não passe
que não penses
que estás quase a largá-la,
a mudar de esquina,
e que ninguém já te livra da desgraça.

(Trad. A.M.)

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23.3.14

Almada Negreiros (Manifesto anti-Dantas)





MANIFESTO ANTI-DANTAS


Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d'Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair... Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
(...)


Almada Negreiros


YouTube (Mário Viegas)

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22.3.14

Um verso (135)





Um verso de Luís Amaro
(verdadeiro, por sinal):





A verdade das coisas está perto



Luís Amaro

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Alexandre O'Neill (Seis poemas confiados/III)





(III)


Sê como és: o sol é bom,
o ar vivaz.
Do azul aos azuis, do verde aos verdes,
a terra é menina e o tempo rapaz.
Também tu és menina
(um bichinho rebelde, de tão natural!)
e correr descalça era mesmo o que querias,
mas seria indecente nesta capital…
E enquanto, doutro verde possuído,
em versos me explico, bem ou mal,
à primavera corres, já descalça,
por uma relva ideal!


Alexandre O'Neill

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21.3.14

Oliverio Girondo (Visita)





VISITA



No estoy.
No la conozco.
No quiero conocerla.
Me repugna lo hueco,
La afición al misterio,
El culto a la ceniza,
A cuanto se disgrega.
Jamás he mantenido contacto con lo inerte.
Si de algo he renegado es de la indiferencia.
No aspiro a transmutarme,
Ni me tienta el reposo.
Todavía me intrigan el absurdo, la gracia.
No estoy para lo inmóvil,
Para lo inhabitado.

Cuando venga a buscarme,
Díganle:
"se ha mudado".


Oliverio Girondo

[Crepusculario siglo XXI]




Não estou,
não a conheço,
não quero conhecê-la.
Repugna-me o vazio,
a afeição ao mistério,
o culto da cinza,
de quanto se decompõe.
Jamais tive contacto com o inerte.
Se de algo reneguei, foi da indiferença.
Não aspiro a transformar-me,
nem o repouso me tenta,
e ainda me intrigam o absurdo, a graça.
Não estou para o imóvel,
para o inabitado.

Quando vier a buscar-me,
digam-lhe apenas:
-“Mudou-se”.

(Trad. A.M.)

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20.3.14

Alberto de Lacerda (A luz que de ti me vem)





A luz que de ti me vem
devolvo-a
amorosamente
a tudo quanto existe



Alberto de Lacerda

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19.3.14

Um verso (134)





Um verso de Ramos Rosa
(como sempre, baralhando as contas):




nenhum acaso / nenhuma porta / impossível sair



António Ramos Rosa


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Blas de Otero (À imensa maioria)





A LA INMENSA MAYORIA   



Aquí tenéis, en canto y alma, al hombre
aquel que amó, vivió, murió por dentro
y un buen día bajó a la calle: entonces
comprendió; y rompió todos sus versos.

Así es, así fue. Salió una noche
echando espuma por los ojos, ébrio
de amor, huyendo sin saber adónde:
a donde el aire no apestase a muerto.

Tiendas de paz, brizados pabellones,
eran sus brazos, como llama al viento;
olas de sangre contra el pecho, enormes
olas de odio, ved, por todo el cuerpo.

¡Aquí! ¡Llegad! ¡Ay! Ángeles atroces
en vuelo horizontal cruzan el cielo;
horribles peces de metal recorren
las espaldas del mar, de puerto a puerto.

Yo doy todos mis versos por un hombre
en paz. Aquí tenéis, en carne y hueso,
mi última voluntad. Bilbao, a once
de abril, cincuenta y tantos. Blas de Otero.

Blas de Otero



Aqui tendes o homem, em canto e alma,
esse que amou, viveu, morreu por dentro
e um belo dia desceu à rua, então
compreendeu, e rasgou seus versos todos.

Assim é, assim foi. Uma noite saiu
a deitar espuma dos olhos, ébrio
de amor, a fugir sem saber pra onde:
onde o ar não cheirasse a morto.

Tendas de paz, airadas bandeiras
eram seus braços, como chama ao vento;
ondas de sangue contra o peito, enormes
ondas de ódio, vêde, por todo o corpo.

Aqui, vinde. Ai, anjos atrozes
cruzam o céu em voo plano;
peixes horríveis metálicos vão
às costas do mar, de porto em porto.

Por um homem em paz eu dou meus versos
todos. Aqui tendes, em carne e osso,
minha última vontade. Bilbao, em onze
de Abril, cinquenta e tal. Blas de Otero.

(Trad. A.M.)

.

17.3.14

Octavio Paz (Cada poema é único)





Cada poema es único.
En cada obra late,
con mayor o menor grado,
toda la poesía.
Cada lector busca algo en el poema.
Y no es insólito que lo encuentre:
Ya lo llevaba dentro.

Octavio Paz

[Sureando]



Cada poema é único.
Em cada obra lateja,
em maior ou menor grau,
a poesia toda.
Cada leitor busca algo no poema.
E não é insólito que o encontre:
já o tinha dentro de si.

(Trad. A.M.)

.

16.3.14

Coitado do Jorge (88)





(BOM DIA)



Bom dia, coração.

Só bom dia.

Da noite, falamos depois...

.

Marina Colasanti (Sexta-feira à noite)





SEXTA-FEIRA À NOITE



Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
os homens ressonam de borco
enquanto as mulheres no escuro
encaram seu destino
e sonham com o príncipe encantado.

Marina Colasanti



>>  Marina Colasanti (sítio) / As Tormentas (24p) / Utopia (6p)

.

15.3.14

Laura Ponce (O fogo)





EL FUEGO



Quizá este fuego arda
tan sólo porque es fuego
y no lo anime nada más
que su primaria condición.

Parecerá que abrasa,
que su lengua se inclina
con derrotero cierto.
Que se ha iniciado entonces.

Falso de toda falsedad.

El fuego
no reconoce pertenencia.
Su existencia está
irremediablemente atada
a la catástrofe:

es
lo que quema

Laura Ponce


[El whisky desnudo]



Talvez este fogo arda
tão só porque é fogo
e o não anime mais nada
que sua básica condição.

Parece que abrasa,
que sua língua se inclina
com derrotina certa.
Que se iniciou então.

Falso, redondamente falso.

O fogo
não reconhece pertença.
Sua existência está
irremediavelmente ligada
à catástrofe:

é
aquilo que queima.

(Trad. A.M.)

.




14.3.14

Albano Martins (Se o tempo)





Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.


Albano Martins


[Luz & sombra]

.