28.6.16

Alberto Pimenta (Nada falta)





NADA FALTA



Ao cair da tarde,
passa lá fora
a melancólica,
antiquíssima flauta
do amolador.

Vai-se afastando
e deixando atrás de si,
como uma cascata,
a toada
magoada e urgente
da noite que vem
e promete ser
varrida de água
e de vento,
fatal para vagabundos
e para espíritos aflitos
ou afligidos.

Mas
entre os múltiplos golpes
executados por aí
com um cutelo de dois gumes
de fabrico euro-alemão,
esta tormenta,
no ritmo da flauta
anuncia sobretudo a queixa
de mais um trabalho
em liberdade e em gosto
prestes a morrer.

Parece
que mais ninguém a ouve,
e,
pelo silêncio que fica,
parece até
que já não há ninguém vivo na rua.
Nem os cães...
Estarão
a ver
as inundações
na América...

- Os cães também?

Claro, nem ladram.

A televisão
inunda-lhes a casa lá longe
e eles gostam.
Também lhes afia as facas
que trazem na cabeça
e todos gostam.
Não precisam de amolador.
Não precisam de mais nada.


Alberto Pimenta

[Domingos Mota]

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