30.6.15

José Antonio Fernández Sánchez (Será para não morrer)





Será para não morrer que eu escrevo.
Escolho palavras que gravo
por dentro da pele.
E espero que não me abandone a fé
quando chegar o momento de escolher
entre a dor e o osso.


José Antonio Fernández Sánchez


(Trad. A.M.)

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29.6.15

José Cardoso Pires (Doutorzinho-1)





Como ia dizendo, tudo isso, aborto, telefonema e tudo o mais, foi apenas o triste pio de um enredo que ela fabricara por si própria e por sua conta e risco.

Absolutamente.

A Maria agora já não alimentava ilusões.

Armada em louva-a-deus castigadora, pusera-se a trabalhar o indivíduo, a inventá-lo, se calhar até a inventá-lo, quem lhe garantia hoje que não, e acabara como acabou, amarrada de pés e mãos.

Acabara quando?

Há meses, há muito.

Quando um dia abriu os olhos e viu que o Menino das Bruxas lhe tinha dado o nó cego.

Que lhe estava toda na mão, e de que maneira.

‘Mana, o gajo deu-me a volta. Deixou-me toda apanhada, o gajo’. (p.198)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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José Ángel Valente (Outubro)





OCTUBRE



Hay una leve luz caída
entre las hojas de la tarde.
      Dame
tu mano y cruza
de puntillas conmigo
para nunca pisarla,
para no arder tan tenue
en sus dormidas brasas
y consumirte lenta
en el perfil del aire.

José Ángel Valente




Há uma leve luz caída
entre as folhas da tarde.
      Dá-me
a tua mão e passa
comigo em bicos de pés
para não a pisares,
para não arderes ténue
em suas brasas adormecidas
e te consumires lenta
no perfil do ar.


(Trad. A.M.)

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28.6.15

Cassiano Ricardo (Deixa estar, jacaré)





DEIXA ESTAR, JACARÉ



Jacaré da lagoa
você nunca esteve triste.
Você tem tudo quanto quer.
Tem água boa, é dono da lagoa.
Vai ao cinema ver a lua tomar banho
quando a lua parece, de tão nua,
um corpo branco de mulher.

Você cresceu e as lagartixas e os lagartos
tão verdolengos não cresceram...

Viraram bichos de jardim.

Só você, jacaré,
foi que cresceu assim!

Mas olhe, escute uma coisa:
quando a felicidade é tão grande
que chega a passar da conta,
a gente deve desconfiar.

Deixa estar, jacaré...
a lagoa há-de secar.


Cassiano Ricardo

[O melhor amigo]

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27.6.15

José Alcaraz (Marcador)





MARCAPÁGINAS



No hay nadie.
La casa te recibe
despertando de una siesta.
Sus bostezos son luces
que se encienden y contagian sosiego.
El cansancio se adapta a las dimensiones,
la soledad se acomoda en el aire.
El único sonido eres tú.
Cenarás, caerás rendido en la cama.
Pero antes,
en un libro marcarás una página
como si fuera tu vida
como quien separa un día de otro
para recordar quién es y dónde vive.


José Alcaraz

[Sureando]




Não está ninguém.
A casa recebe-te
acordando de uma sesta.
Seus bocejos são luzes
que se acendem e contagiam sossego.
O cansaço adapta-se ao lugar,
a solidão instala-se no ambiente.
O único ruído és tu.
Vais jantar e cair na cama rendido.
Mas antes
marcarás uma página no livro,
como se fosse tua vida,
como quem separa um dia de outro
para lembrar quem é e onde vive.

(Trad. A.M.)

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26.6.15

José Cardoso Pires (Vila Bertha)




'Vila Bertha, conheces?' perguntou ela.

Alexandra passara lá há muitos anos: um pátio de vivendas sossegadíssimas, roseirais a transbordar dos muros, não era?

Com uma entrada em arco, acrescentou a Maria.

Isso mesmo, disse a seguir.

Ali é que tudo começara.

Uma noite, junto desse arco e por baixo de um ramo de nespereira que caía de uma vedação, é que a Maria se amandara ao Doutorzinho e o desabotoara de alto a baixo.

Ali, nesse lugar.

Recebeu-o pela primeira vez, encostada ao muro e de perna no ar, e logo subira às estrelas. (p.197)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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José Agustín Goytisolo (Aquela flor instantânea)





ESA FLOR INSTANTÁNEA



Miedo a perderse ambos
vivir uno sin otro:
miedo a estar alejados
en el viento en la niebla
en los pasos del día
en la luz del relámpago
en cualquier parte. Miedo
que les hace abrazarse
unirse en este aire
que ahora juntos respiran.
Y se buscan y buscan
esa flor instantánea
que cuando se consigue
se deshace en un soplo
y hay que ir a encontrar otras
en el jardín umbrío.
Miedo; bendito miedo
que propicia el deseo
la agonía y el rapto
de los que mueren juntos
y resucitan luego.

José Agustín Goytisolo

[Mi manera de estar solo]



Medo de se perderem ambos
de ficarem um sem o outro:
medo de estarem distantes
no vento na névoa
nos passos do dia
na luz do relâmpago
em qualquer parte. Medo
que os faz abraçar
e unir-se no ar
que juntos agora respiram.
E buscam-se e buscam
aquela flor instantânea
que quando se alcança
se desfaz com um sopro
e outras há que encontrar
no jardim sombrio.
Medo, bendito medo
que gera o desejo
a agonia e o rapto
dos que morrem juntos
e depois ressuscitam.

(Trad. A.M.)

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24.6.15

Jesús Lizano (A beleza)





LA BELLEZA



¿Y si os dijera que la belleza
se encuentra en todas las cosas,
que ilumina todos los mundos,
que alienta todos los cambios,
que se deshace y recupera
sus formas, sus alianzas,
que se funde y solidifica,
se extiende y se recoge,
se esconde y se manifiesta,
baila en una partícula,
se pasea en un astro,
despierta en todas las voces?
¿Y si os dijera
que no está en la imagen sino en el impulso,
en la atracción que nos envuelve,
que la belleza
está naciendo continuamente,
que basta diluirse en ella
para olvidarse de nuestra finitud,
de nuestra esencia escindida,
confusa, turbulenta?
¿Y si os dijera
que la fuerais llamando,
que abrierais las ventanas
de los sueños y de las cosas?
Qué cosa no fue antes un sueño
y qué sueño existiría
si no existiera la belleza?
Ella la que sufre,
la que grita, la que proclama
la libertad de las cosas,
la libertad de los sueños,
atraviesa los ojos,
atraviesa las manos,
se confunde con las lágrimas,
emerge de todos los movimientos,
engendra nuestros deseos.
¿Y si os dijera que el universo
sólo es el mensajero de la belleza?
¿Y si os dijera
que morir es diluirse en la belleza,
transformarse en mundo,
que el mundo sólo es belleza transformándose,
que vivir es transformarse en belleza?
¡Habría conquistado la inocencia!


Jesús Lizano

[Electricidad con ictericia]




E se eu vos dissesse que a beleza
está em todas as coisas,
ilumina os mundos todos,
alimenta as mudanças,
que se desfaz e recupera
suas alianças e formas,
que se estende e recolhe,
que se esconde e revela,
baila numa partícula,
passeia-se num astro,
desperta em todas as vozes?
E se eu vos dissesse
que não está na imagem mas no impulso,
na atracção que nos envolve,
que a beleza
está sempre a nascer
continuamente,
que basta diluir-se nela
para esquecer a nossa finitude,
nossa essência cindida, confusa e turbulenta?
E se eu vos dissesse para a chamardes,
para abrirdes as janelas
dos sonhos e das coisas?
Que coisa não foi antes um sonho
e que sonho haveria
se não existisse a beleza?
Beleza, a que sofre,
a que grita, a que proclama
a liberdade das coisas,
a liberdade dos sonhos,
a que atravessa os olhos,
atravessa as mãos,
confunde-se com as lágrimas,
emerge de todos os movimentos,
engendra nossos desejos.
E se eu vos dissesse que só o Universo
é o mensageiro da beleza?
E se eu vos dissesse
que morrer é diluir-se na beleza,
transformar-se em mundo,
que o mundo só é beleza transformando-se,
que viver é transformar-se em beleza?
Conquistaria a inocência!

(Trad. A.M.)

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23.6.15

José Cardoso Pires (Zarpar, zarpar)





Alexandra, vestido de seda, sapato de lagarto, muito executiva, muito Alpha Linn, pousou o relógio:
'A Mana, Deus lhe perdoe, anda a modos que transviada da Fé e do Império e olhe que isso não é nada de bom agouro'.

E a Maria arreganhou um sorriso e respondeu-lhe que não senhora, mais Império menos Império, ela tinha fases.

Dependia das noites e do gástrico, a mana que ficasse sabendo.

Em princípio, porém, estava certa de que os nossos avózinhos conquistadores quando se fizeram ao mar foi para fugirem à santa terrinha e por mais coisa nenhuma.

Mentira? Ah, pois não.

Os cá da casa já nesse tempo eram chatos como a ferrugem e mais mãozinhas que todos os infiéis por inteiro, de maneira que quem não arranjava outra forma de escapar ia-se às naus e punha-se a navegar para as descobertas. (p.178)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Vanesa Pérez-Sauquillo (No dejes que la luz)





No dejes que la luz
de mi cuerpo te engañe.
Voy quemando las naves.




Vanesa Pérez-Sauquillo

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22.6.15

Fernando Assis Pacheco (Elegia)





ELEGIA



Já não me lembra bem o pide Catarino
nem já chove como chovia nas manhãs da minha rua
nem haverá talvez cinco leitores o que se chama interessados
na vida que eu levava: um erro e um desperdício

eram tantas as mulheres enganando os meus passos
tão inclemente o estudo dos poetas antigos
que pensei concorrer à função pública
onde estaria de todos esses males ao abrigo

com 40 mil habitantes no melhor dos casos
a cidade tinha um ar modesto e a puxar para o triste
sempre os mesmos cães magros sempre a mesma gente lenta
o mesmo nevoeiro subindo em espiral do rio

nesse tempo ainda os meus pais eram da família
que depois perdi em anos consecutivos
e eu julgava-os imortais como deuses de luz clara
brilhando à mesa sobre a grande toalha de linho

nem tão-pouco pretendo aborrecer agora os meus filhos
com histórias dessa que enterrada está Coimbra
nós vamos no oco da onda ébrios de sal mordente
o que vem dar à praia é espuma fria e olvido


Fernando Assis Pacheco

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21.6.15

Valeria Pariso (Segredo)





SECRETO



No es que mi abuela fuese sabia
como un gato que guarda alguna vida
por si se cae trepando la ventana.
Tenía los dedos duros y doblados
y los ojos marrones como nueces
pero eso no hacía que supiese.
Mi abuela había aprendido de la tierra
los laberintos que hacen las hormigas
para guardar a salvo su alimento.
Mi abuela hizo lo mismo con mi abuelo,
guardó algo de su amor
no lo dio todo
y así sobrevivió sin sobresaltos.

Valeria Pariso

[Alabanzas del desorden]



Não é que minha avó fosse sábia
assim como um gato que guarda uma vida
para o caso de tombar da janela.
Tinha os dedos duros e tortos
e olhos castanhos como nozes
mas isso não lhe dava saber.
Minha avó tinha aprendido da terra
os labirintos que fazem as formigas
para guardar seu alimento a salvo.
Minha avó fez o mesmo com meu avô,
guardou algum do seu amor
não lho deu todo
e assim sobreviveu sem sobressaltos.

(Trad. A.M.)

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20.6.15

José Cardoso Pires (Salazar-2)





Durante dez meses bem contados, o cadáver do excelentíssimo esperneara numa cama, em debate com o Criador sobre a oportunidade ou não de lhe entregar a alma sem mais delongas e deixar o país aos perdulários.

E nem acreditava.

Dez meses, for Chrissake.

E o caso é que durante esses dez meses não houve um só dia em que não chegassem peregrinações de senhoras sociais a fazerem o acenozinho ao gemebundo, ministros que já não eram ministros e que fingiam que vinham a despacho, e soldados, soldados de África, uns condecorados, outros sem pernas, até esses lá iam deixar a assinatura em louvor da guerra contra os pretos.

Assim mesmo.

Nada disto era boato, podia ler-se nos jornais.

Os enfermos importantes nem na morte têm sossego e constava que à volta daquele pai da pátria só se viam curas de mãos postas, médicos a arrepelarem os cabelos e pides com microfones à coleira a fingirem de estetoscópios. (p.169)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Roger Wolfe (Glosa a Celaya)





GLOSA A CELAYA



La poesía
es un arma
cargada de futuro.

Y el futuro
es del Banco
de Santander.


Roger Wolfe

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19.6.15

Amadeu Baptista (Ronda dos traidores)





RONDA DOS TRAIDORES



Povos traídos já o foram muitos.
De gregos a romanos a mais de muitos centos
todos foram incorporados no grande índice
dos bichos que sentiram a lâmina na goela,
ou a entrar nos flancos para que não pudessem
ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.
O mal é esse mesmo, que possa a traição
grudar-se aos ossos e os mentecaptos
se sirvam dela nos banquetes férteis
em que de lampreia e faisão se embrutecem,
enquanto nos baldios a pobreza cresce.
Contudo, os brutos serão sempre os outros,
que ao longo da história se omitiram
por um gesto em falso ou um maligno passo,
ou até mesmo um decreto do senado.
Ou dormiram demais, ou no seu sono leve
trabalharam muito para que a indulgência
lhes custasse a família, os filhos, o sustento
e fossem retalhados como cordeiros mansos
que das regiões claras só podem conhecer
a escuridão infrene que os aniquila.
Traídos os traidores da ousadia
de permanecerem traídos para sempre
melhor seria que sangrassem dos ouvidos
ou que a boca de raiva lhes espumasse
pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.
Ainda assim, não se passa nada. À vida
vão uns tantos para sofrê-la, a ranger
os poucos dentes ralos e a pôr as unhas
a salvo de qualquer lima, que está caro
o aço e nada é mais diverso
do que querer-se algo e nada se fazer
para que alguma coisa mude para que tudo
fique tal como estava antes do que se quis
mudar no âmbito das pirâmides
ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,
é o que mais há nas longas multidões
que os povos significam, ajoelhadas
bestas que aqui ovacionam e mais além
irão querer linchar sem que para isso
tenham paixão bastante. Dúvidas há
de que sejam homens, ou que da sua
espécie a humanidade seja em seu ardor
e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,
sem que, no entanto, alastrem pelo mundo
a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.
E ainda falam do tempo irrepetível,
dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,
da coroação do espanto, dos mares repletos
de fúrias e desmandos. A uns e outros todos
se vão traindo, cheios de culpa mas nunca
com remorsos de enquistarem assim os corações
nefastos, demasiado puros da pulhice alheia
que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar
das grades que em volta assestam
as prisões que para si criaram,
danados de requebros não mais do que servis
à espera das migalhas que irão cair
do espavento dos bolsos que alguns benévolos
premeditadamente planeiam denegar
à fome secular e à calamidade.
Melífluo é o combate marcado por recuos,
surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,
e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados
sobre a lama que os seus pés abriram
sem que de nada mais se arroguem que a traição
que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.
A uns e outros se abatem pelas costas.
Os de cima os de baixo e os de baixo
os de baixo, que é sempre a cair
que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,
ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,
ou no destemor que alguns da covardia
sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,
usadas com perícia a perorar
as circunstâncias graves em que se vive
num território de recursos parcos.
Traidor é sempre quem trair se deixa,
atento ou desatento à luz dos anos,
pasmado ou exaltado no seu entusiasmo
de ser sem terra, ou ter sido dela
há muito expulso, ou ser seu pasto
em vida como o será quando for morto,
a privar com os vermes que, afoitos,
em cada aresta sopesam o momento
para abocanhar a carne das ovelhas
que, cegas e ordeiras, transitam
no foco de infecção para que alastre
a irredimível doença de que todos
sofrem. Ah, os rostos giram
nas quadraturas dos séculos, vãos uns
ceder e outros descompor-se, outros
empenham a palavra e voltarão com ela
atrás, pelo caminho ínvio, ainda outros
murmurarão a surdina entorpecente
de um rumor, de uma conjura, de um juro
que se cobra, de uma mácula caída
sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada
contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,
de um crente que se fiou, do alento
de um homem que a si mesmo se traiu,
assim como traiu os seus mortos antecedentes
e consequentes, em velhas e novas gerações
de traidores no comum descampado
dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue
ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino
selvagem, o castanheiro espesso, o regaço
de quem nos olhou pela primeira e pela última
vez como um filho querido e nos deixou partir
para a imobilização, a providência, o sossego,
a contagem incólume dos cabelos,
o beijo na face e a mão sobre o ombro,
a candura aos portões da Babilónia, os catorze
mil cegos que Samuel viu arrastar-se
nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,
vítimas estes da traição que a fereza é.
É desse lixo que os monturos se ampliam,
traição sobre traição sem mais remédio
do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios
da compaixão, do nojo, da bondade.
E no horizonte crespo o deserto amplia-se,
passam os comboios mas tudo está perdido,
o mar adensa-se e as traições
progridem, obsessiva e suja
a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez
de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos
de estuque que as galerias mostram,
um rol de heróis que a própria mãe venderam,
sem mais consolo do que viverem disso,
por um domínio, um lugar, uma quantia,
uma vara de porcos, castrados e cevados.


Amadeu Baptista

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18.6.15

Roberto Bolaño (Sujo, mal vestido)





SUCIO, MAL VESTIDO



En el camino de los perros mi alma encontró
a mi corazón. Destrozado, pero vivo,
sucio, mal vestido y lleno de amor.
En el camino de los perros, allí donde no quiere ir nadie.
Un camino que sólo recorren los poetas
cuando ya no les queda nada por hacer.
¡Pero yo tenía tantas cosas que hacer todavía!
Y sin embargo allí estaba: haciéndome matar
por las hormigas rojas y también
por las hormigas negras, recorriendo las aldeas
vacías: el espanto que se elevaba
hasta tocar las estrellas.
Un chileno educado en México lo puede soportar todo,
pensaba, pero no era verdad.
Por las noches mi corazón lloraba. El río del ser, decían
unos labios afiebrados que luego descubrí eran los míos,
el río del ser, el río del ser, el éxtasis
que se pliega en la ribera de estas aldeas abandonadas.
Sumulistas y teólogos, adivinadores
y salteadores de caminos emergieron
como realidades acuáticas en medio de una realidad metálica.
Sólo la fiebre y la poesía provocan visiones.
Sólo el amor y la memoria.
No estos caminos ni estas llanuras.
No estos laberintos.
Hasta que por fin mi alma encontró a mi corazón.
Estaba enfermo, es cierto, pero estaba vivo.


Roberto Bolaño

[Lifevest under your seat]



No caminho dos cães minha alma encontrou
meu coração. Destroçado, mas vivo,
sujo, mal vestido e repleto de amor.
No caminho dos cães, lá onde ninguém quer ir.
Um caminho que percorrem só os poetas
quando não têm já nada mais para fazer.
Mas eu tinha ainda tanta coisa que fazer!
E contudo ali estava, a deixar-me matar
pelas formigas vermelhas e também
pelas pretas, percorrendo aldeias
vazias, o espanto subindo
até tocar as estrelas.
Um chileno educado no México pode aguentar tudo,
pensava eu, mas era mentira.
À noite meu coração chorava. O rio do ser, diziam
uns lábios com febre que depois descobri que eram os meus,
o rio do ser, o rio do ser, o êxtase
que se dobra na orla destas aldeias abandonadas.
Pregadores e teólogos, adivinhos
e salteadores emergiram
como realidades aquáticas no seio de uma realidade metálica.
Visões só as provocam a febre e a poesia.
Só o amor e a lembrança.
Não estes caminhos, nem estas planuras.
Estes labirintos não.
Até que minha alma por fim encontrou meu coração.
Estava doente, é certo, mas estava vivo.

(Trad. A.M.)

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17.6.15

José Cardoso Pires (Salazar-1)





Momento, porém.

Em relação ao Salazar, o amigo faquir punha reservas.

Oficialmente, sim: oficialmente, o doutor dinossauro estava morto, enterrado e com lutos nacionais.

Era facto assente.

Veio nos jornais estrangeiros e o país até já tinha um novo governante que subirá ao poder por contestação, como dizem uns, ou por testamento, como dizem outros.

No entanto, nada de precipitações, na opinião mais íntima e confidencial do faquir, o Salazar continuava vivo e era ele quem ditava as leis num quarto secreto de hospital, rodeado dos mesmos pides e dos mesmos dragões de igreja que o tinham acompanhado até à morte diplomática. (p.167)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Piedad Bonnett (Agora que já passei)





Ahora que ya remonto la mitad del camino de mi vida,
yo que siempre me apené de las gentes mayores,
yo, que soy eterna pues he muerto cien veces
de tedio, de agonía,
y que alargo mis brazos al sol en las mañanas
y me arrullo en las noches
y me canto canciones para espantar el miedo,
¿qué haré con esta sombra que comienza a vestirme
y a despojarme sin remordimientos?
¿Qué haré con el confuso y turbio río que no encuentra su mar,
con tanto día y tanto aniversario,
con tanta juventud a las espaldas,
si aún no he nacido, si aún hoy me cabe un mundo entero
en el costado izquierdo?

Piedad Bonnett



Agora que já passei do meio da minha vida,
eu que sempre me apiedei dos mais velhos,
eu, que sou eterna pois mil vezes morri
de tédio, de agonia,
e que estendo meus braços para o sol da manhã
e arrulo à noite
e canto canções para espantar o medo,
que farei eu desta sombra que começa a vestir-me
e a despojar-me sem remorsos?
O que farei com este confuso e turvo rio
que não encontra seu mar,
com tanto dia e aniversário,
tanta juventude para trás,
se ainda nem sequer nasci,
se ainda hoje me cabe um mundo inteiro
aqui do lado esquerdo?

(Trad. A.M.)

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16.6.15

Alexandre O'Neill (Seis poemas confiados/VI)





(VI)

A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?
Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!
A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?
A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!


ALEXANDRE O'NEILL
Poemas com Endereço(1962)

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15.6.15

Pepe Ramos (Carne de Maitena)





CARNE DE MAITENA



Llega a casa destrozada.
Se descalza
y se deja caer en el sillón.
Sus lágrimas mojan
el papel couché
de la sección de tendencias
del suplemento dominical.
Necesita romper alguna foto
y escuchar innumerables veces
una determinada canción.

Muy cinematográfica ella,
mandará un mensaje con el móvil,
se conmoverá ante su imagen
conmovida en el espejo
y sosteniendo en la mano
una caja de antidepresivos
tomará una decisión radical:

Mañana se cortará el pelo
o quizá se apunte a reiki.

Pepe Ramos




Chega a casa destroçada.
Põe-se descalça
e deixa-se cair no sofá.
As lágrimas molham-lhe
o papel couché
da secção de tendências
do suplemento dominical.
Precisa de rasgar uma foto
e ouvir inúmeras vezes
uma certa canção.

Muito cinematográfica,
mandará uma mensagem com o móvel,
comover-se-á diante da sua imagem
comovida no espelho
e segurando na mão
uma caixa de anti-depressivos
tomará uma decisão radical:

Amanhã vai cortar o cabelo
ou talvez marque o reiki.

(Trad. A.M.)

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14.6.15

José Cardoso Pires (Opus Night-4)





Opus Night fez que sim: 'Ah, pois'.

'Que eu, por sinal - vai ela - até sou baptizada pela igreja'.

'Feitios. Tudo vai dos feitios e não há nada como realmente', tornou o Opus Night.

E logo a ruiva, desencabrestada: 'Não são feitios, são feses e ópois? A rapariga tem a sua fé, e ópois?'

Opus Night: 'Você fecha mas é a cloaca antes que a laranjada arrefeça.'

A ruiva: 'Eu? Mas fecho o quê, pá'.

Opus Night: 'A cloaca. A meia-ostra. A cuspideira.'

A ruiva, estonteada: 'Mas que é isto, mulher? O gajo não faz mais nada senão amandar motes à gente, então não vês? Oh com caraças, oh com caraças.' (p.98)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Pedro Salinas (Afogando-me nela)





AHOGÁNDOME EN ELLA



Si no es el mar, sí es su imagen,
su estampa, vuelta, en el cielo.
Si no es el mar, sí es su voz
delgada,
a través del ancho mundo,
en altavoz, por los aires.
Si no es el mar, sí es su nombre,
es un idioma sin labios,
sin pueblo,
sin más palabra que ésta:
mar.
Si no es el mar, sí es su idea
de fuego, insondable, limpia;
y yo,
ardiendo, ahogándome en ella.

Pedro Salinas

[Noctambulario]



Se não é o mar, é a sua imagem
a sua estampa, virada, no céu.
Se não é o mar, é sua voz
delgada,
através do largo mundo,
pelos ares, em alta voz.
Se não é o mar, é seu nome,
um idioma sem lábios,
sem povo,
sem mais palavra que esta:
mar.
Se não é o mar, é a sua ideia
de fogo, limpa, insondável;
e eu,
a arder, afogando-me nela.


(Trad. A.M.)

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13.6.15

Alberto de Lacerda (Às vezes as lágrimas)





Às vezes as lágrimas são praias
inundadas de luz
mãos abertas morenas
aceitando



ALBERTO DE LACERDA
Oferenda II
IN-CM (1994)


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12.6.15

Pedro A. González Moreno (A tempestade, amanhã)





MAÑANA, LA INTEMPERIE



Por si no amaneciera
mañana, que la casa
no parezca vacía;
que todo continúe como al borde
de suceder, no olvides
dejar llenas las copas, como si el vino fuese
una última forma de esperanza.
Y ahí, sobre el mantel, recién partido,
deja también el pan
para que haya un olor a espigas altas
o para que parezca
que hay cosas que se pueden compartir todavía.
Deja algún libro abierto en cualquier sitio,
como si fueras a volver muy pronto;
que parezca que todo se ha quedado esperándote.
Que no note la muerte cuando llegue
que en esta casa ya
no vive nadie. Deja
abierta una ventana para que entre
todo ese ruido extraño
y ajeno de la calle.
Que en tu muerte no haya
esa misma intemperie que hubo siempre en tu vida.


Guarda en algún espejo
tu mirada y un poco de esa lumbre
que ya no habrá en tus ojos
mañana; y guarda dentro de un cuaderno
el ascua viva de tu tacto. Deja
encendida una lámpara,
por si acaso la noche
durara demasiado.
Déjalo todo como si esta noche
no fuera a ser la última. No olvides
dejar un libro abierto en cualquier página.


Y deja tu ventana bien abierta
para que así mañana la luz te reconozca,
aunque ya sólo seas
un cuerpo roto, un cuerpo sin memoria y con frío;
para que así mañana (si amanece)
siga entrando por ella -aunque tú no lo oigas-
todo ese ruido extraño
y ajeno de la vida.

Pedro A. González Moreno

[Sinfonia de las palabras]



Não pareça a casa vazia,
caso não amanheça amanhã;
que tudo continue à beira
de acontecer, deixa os copos cheios,
não esqueças, como se o vinho fora
a última forma da esperança.
E deixa também o pão, partido,
na toalha,
para haver um cheiro de espigas altas
ou parecer ao menos que há coisas
que ainda se podem partilhar.
Deixa um livro aberto em qualquer sítio
como se fosses voltar muito em breve;
e que tudo pareça que ficou à tua espera.
Não note a morte ao chegar
que já não vive ninguém na casa.
Deixa aberta a janela para poder entrar
todo esse barulho estranho
e alheio da rua.
Não haja na tua morte
essa mesma intempérie
que sempre houve na tua vida.

Guarda num espelho
o teu olhar e um pouco dessa luz
que em teus olhos já não haverá
amanhã; e põe dentro dum caderno
a brasa viva do teu tacto. Deixa acesa
uma lâmpada, não vá a noite
durar demasiado.
Deixa tudo como se esta noite
não estivesse para ser a última.
Não te esqueças de deixar um livro
aberto em qualquer página.

E deixa bem aberta a janela
para a luz te conhecer amanhã,
mesmo que sejas apenas
um corpo partido, com frio e sem memória;
para que assim amanhã (caso amanheça)
entre de novo por ela – mesmo que tu não ouças –
todo esse barulho estranho
e alheio da vida.

(Trad. A.M.)

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11.6.15

José Cardoso Pires (Opus Night-3)





Enganos destes só podiam ter lugar às horas do lusco-fusco, que eram aquelas em que o Opus Night perdia o pé.

Por essas alturas ainda se encontrava, de um modo geral, no dobrar do meridiano da ressaca e em tais longitudes havia sempre miragens porque desgovernava entre a memória do dia e a memória da noite.

Assim, se neste doze de Maio o Nuno tivesse entrado uma hora mais cedo no bar onde o foi encontrar, talvez o Opus Night não o tivesse reconhecido, talvez lhe tivesse virado a cara como um marquês enfastiado.

Mas não, o Nuno chegara na maré justa e ele abriu-se-lhe num anoitecer fumegante, sobrevoado por rótulos de todas as bebidas. (p.90)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Paco Moral (Constatações)





CONSTATACIONES


1
Es mentira que el tiempo
ponga a nadie en su sitio.
Como mucho otorga espacio y alma a quien no los merece.
Es implacable, es cierto,
pero yerra el disparo en cada ejecución.
Le tiembla el pulso.

2
La soledad no es buena,
lo diga el 'sursum corda' o el diablo.
Tan sólo te acompaña cuando te estás muriendo.
Eso sí, no te reprocha nada
porque es muda.

3
Casi nunca el amor es de ida y vuelta.
A lo que se aproxima
en su avaricia es al dolor recíproco.
Y a compartir migajas que son de otros.
Pero sin duda ayuda a transitar naufragios.
Como Dios, que aunque aprieta nunca ahoga.
O eso dicen.


Paco Moral



1
É mentira que o tempo
ponha alguém no seu lugar.
Quando muito outorga espaço e alma a quem não merece.
É implacável, é certo,
mas erra o tiro em cada disparo.
Treme-lhe o pulso.

2
Não é boa a solidão,
quer o diga o diabo ou 'sursum corda'.
Tão só te acompanha quando estás para morrer.
Isso sim, não te censura nada
porque é muda.

3
O amor quase nunca é de ir e voltar.
Do que está perto
na sua avareza é da dor recíproca.
E de partilhar migalhas que pertencem a outros.
Mas ajuda decerto a superar naufrágios.
Como Deus, que embora aperte nunca esmaga.
Ou assim dizem.

(Trad. A.M.)

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10.6.15

Albano Martins (Escrito a vermelho)





ESCRITO A VERMELHO



Também ainda não disseste
(e é bom que o faças antes que anoiteça)
que foi ao serviço duma causa que vieste.
Não lhe dirás o nome, nem é preciso, julgo eu.
Basta que se saiba que foi com sangue que
sempre o escreveste. E bastará, por isso, que
leiam os teus versos. Porque em todos eles está
escrito a vermelho.


Albano Martins

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9.6.15

Meira Delmar (O regresso)





EL REGRESO



Cada día que pasa,
cada día,
es más corto el camino
de regreso.

De repente la nave
romperá el horizonte
y la veré avanzar hacia la orilla
flamante de banderas.

Y en un instante el sol
habrá borrado
todos los años
que viví en la sombra.

Meira Delmar



Cada dia que passa,
cada dia,
é mais curto o caminho
de regresso.

De repente a nave
rasgará o horizonte
e eu a verei avançar para a margem
flamante de bandeiras.

E num instante o sol
apagará os anos
todos que vivi na sombra.

(Trad. A.M.)

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8.6.15

José Cardoso Pires (Opus Night-2)





Ao pôr-do-sol era possível vê-lo, de pé e obstinadamente só, a olhar um qualquer horizonte para lá do balcão.

Dizia-se que estava a dobrar o meridiano, era a expressão - e aguardava-se.

Uma vez passada essa linha que lhe dividida a memória,o homem começaria a regressar ao seu natural (que era o dos copos) e até a voz seria outra.

Porque, na meia-tinta do ocaso, Sebastião Manuel, lisboeta por fadário e transmontano por convicção, também mudava de voz se lhe desse para recordar os nordestes da infância ou a Casa da lavoura paterna.

Isso era público, sabia-se.

Assim como se sabia, embora ele nunca o dissesse, que tinha um irmão juiz, beato, salazarista, solteiro, vegetariano e, finalmente, membro da Opus Dei.

Daí chamarem-lhe a ele Opus Night, Sebastião Manuel, o Opus Night.

Ou Copus Night , também podia ser;
ou Octopus Night;
ou Antropus Night.(p.88)


JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Mario Benedetti (Pequenas mortes)





PEQUEÑAS MUERTES



Los sueños son pequeñas muertes
tramoyas anticipos simulacros de muerte
el despertar en cambio nos parece
una resurrección y por las dudas
olvidamos cuanto antes lo soñado
a pesar de sus fuegos sus cavernas
sus orgasmos sus glorias sus espantos
los sueños son pequeñas muertes
por eso cuando llega el despertar
y de inmediato el sueño se hace olvido
tal vez quiera decir que lo que ansiamos
es olvidar la muerte
apenas eso.


Mario Benedetti



Os sonhos são pequenas mortes
tramóias antecipações simulacros de morte
o despertar em troca parece-nos
uma ressurreição e por via das dúvidas
esquecemos quanto antes o sonhado
apesar de seus fogos suas cavernas
seus orgasmos suas glória seus espantos
os sonhos são pequenas mortes
por isso quando vem o despertar
e o sonho logo se faz esquecimento
quer dizer talvez que o que ansiamos
é esquecer a morte
apenas isso.

(Trad. A.M.)

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7.6.15

Affonso Romano de Sant'Anna (Assombros)





ASSOMBROS



Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.


Affonso Romano de Sant’Anna

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6.6.15

Óscar Hahn (Summa Theologica)





SUMMA THEOLOGICA



La niñez es la prueba
de la existencia de Dios

La vejez es la prueba
de su inexistencia

La muerte mira nomás
y no dice nada

Óscar Hahn

{Marcelo Leites]



A infância é a prova
da existência de Deus

A velhice é a prova
da sua inexistência

A morte olha apenas
e não diz nada

(Trad. A.M.)

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5.6.15

José Cardoso Pires (Opus Night-1)





Aqui nos bares do Chiado e balcões adjacentes era sabido que Opus Night, com a sua elegância de bom corte, cravo ao peito e voz sonante, tinha duas memórias distintas, uma para a noite, outra para o dia, sendo a primeira a mais certa por causa das fidelidades do vinho e a segunda a dos desastres e das corrosões por causa das borras acumuladas de véspera.

Sebastião Manuel estudara num internato jesuíta rodeado de invernos e de granito; para o norte ficavam os pais e a lavoura da família até à fronteira transmontana, para baixo era o marrocos da galderice, a Coimbra dos doutores, Terreiro do Paço e putas à solta.

Quando saiu da penumbra dos padres escolares e desembarcou em Lisboa para estudar agronomia, a luz solar entonteceu-o a um ponto tal que, pode dizer-se, nem conseguiu acertar a mão para assinar os papéis da matrícula.

Incompatibilizou-se com os reflexos, são percalços que acontecem, e, resultado, daí em diante Sebastião Manuel passou a ser só noites e tresnoites e madrugadas em canal. (p.88)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Roger Wolfe (Poema do cesto de papéis)





POEMA ENCONTRADO EN LA PAPELERA



Conozco todos los argumentos.
Conozco todos los contraargumentos.
Conozco la futilidad de nuestra vida.
Conozco el hambre, la sed, el ansia.
La alegría.
¿El amor? También.
El desamor. La dicha y la desdicha.
Tropiezo cada día con la misma piedra.
Tropiezo cada día con la misma piedra.
Tropiezo cada día con la misma piedra.
Al final ya no se sabe
si es que hay piedra o es que tropezamos
por costumbre, por amor al arte,
porque no somos capaces de otra cosa.
Porque el hombre es un animal que tropieza.
Porque no somos capaces de otra cosa.

Roger Wolfe



Conheço os argumentos todos.
E todos os contra-argumentos.
E a futilidade da vida.
Conheço a fome, a sede, a ânsia.
A alegria.
O amor? Também.
O desamor. A dita e a desdita.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
No fim já nem sabemos
se há mesmo pedra ou se tropeçamos
por hábito, por amor à arte,
porque não somos capazes de outra coisa.
Porque o homem é um animal que tropeça.
Porque não somos capazes de outra coisa.

(Trad. A.M.)

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4.6.15

A.M.Pires Cabral (Caminho de pé-posto)





CAMINHO DE PÉ-POSTO



Sou como este caminho de pé-posto.
Por mim passam caravanas e mendigos,
rolam enxurradas.

Nas bermas, nas fundas furnas
das minhas bermas, nidificam
animais daninhos e se multiplicam.

Estou muito diminuído das contínuas
erosões.
Mas, íngreme embora e pedregoso
e ocultado por tufos de ervas intrusas,
sou um caminho e levo a algum lugar.


A.M.PIRES CABRAL
Gaveta do Fundo
(2013)

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3.6.15

Roberto Juarroz (Algum dia acharei uma palavra)





Algún día encontraré una palabra
que penetre en tu vientre y lo fecunde,
que se pare en tu seno
como una mano abierta y cerrada al mismo tiempo.

Hallaré una palabra
que detenga tu cuerpo y lo dé vuelta,
que contenga tu cuerpo
y abra tus ojos como un dios sin nubes
y te use tu saliva
y te doble las piernas.
Tú tal vez no la escuches
o tal vez no la comprendas.
No será necesario.
Irá por tu interior como una rueda
recorriéndote al fin de punta a punta,
mujer mía y no mía,
y no se detendrá ni cuando mueras.


Roberto Juarroz




Algum dia acharei uma palavra
que penetre teu ventre e o fecunde,
que pare em teu seio
como uma mão aberta e
fechada ao mesmo tempo.

Encontrarei uma palavra
que detenha teu corpo e o volte,
que contenha teu corpo
e te abra os olhos como um deus sem nuvens
e te use a saliva
e te dobre as pernas.
Tu talvez não a escutes
ou não a compreendas.
Não será necessário,
irá como uma roda por dentro de ti,
percorrendo-te de ponta a ponta,
mulher minha e não minha,
e não se deterá nem quando morreres.


(Trad. A.M.)

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2.6.15

José Cardoso Pires (Isto não é um país)





Alexandra: "Isto não é um país, é um sítio mal frequentado". (p.28)


JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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Miriam Reyes (Se me pedir ponho-me de quatro)





Si me lo pide me pongo en cuatro patas
en dos, en una
meneo la cola
doy vueltas
me hago la muerta
salto por una galleta
le lamo los pies.
Y es que me muero de gusto cuando me rasca panza arriba.
Soy la perra más perra
que jamás nadie haya abandonado.

Miriam Reyes

[Noctambulario]



Se mo pedir ponho-me de quatro,
de duas, de uma
abano o rabo
viro-me
faço de morta
salto à bolacha
lambo-lhe os pés.
E morro de gozo quando me coça pela barriga acima.
Sou a cachorra mais cachorra
que ninguém jamais abandonou.

(Trad. A.M.)

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1.6.15

W. B. Yeats (A roda)





THE WHEEL



Through winter-time we call on spring,
and through the spring on summer call,
and when abounding hedges ring
declare that winter's best of all;
And after that there's nothing good
because the spring-time has not come -
Nor know that what disturbs our blood
is but its longing for the tomb.

W.B. Yeats




Todo o Inverno clamamos pela Primavera
e na Primavera suspiramos pelo Verão,
e quando as sebes rebentam viçosas,
assentamos que o melhor é ainda o Inverno;
E depois de tudo afinal nada presta
porque a Primavera não chega.
Nem sabemos o que nos sobressalta o sangue,
que é apenas a saudade do túmulo.

(Trad. A.M.)

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