Ao descolar do automóvel – seriam dez horas quando muito – abatia-se sobre a cidade a quietude dos lugarejos, ditosamente adormecidos com o recolher do galo.
Noite obscura, fosforejavam as estrelas no céu fundo e baço, como brasas espalhadas num imenso cinzeiral.
Adiante do carro fugia a estrada, inalteravelmente negra e silenciosa, ora disparando em voo de flecha, ora serpenteando acima da vargem a que as tintas opacas da noite imprimiam as aparências dum tenebroso e desmedido mar.
Mal lhe descompunha a negrura a luz forte dos faróis e à sua nudez imponderável o zumbido rouco do motor dava a amplificação majestosa dum deserto.
Das sebes, onde uma macieirinha anã devia erguer ramos, pesados de velhice e de frutos tenros, das copas altas das mimosas e acácias, com os troncos grossos perfilados como patrulhas ao longo das valetas, dos quintais do pobre, dos próprios coutos de mato galego, vinham alagar, envolver o carro os rescendores da Primavera esmorecente.
- AQUILINO RIBEIRO,
O homem que matou o diabo, Bertrand, 1985, p. 99.
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