31.10.10

Jorge de Sena (O Sena não se vende)






O SENA NÃO SE VENDE




Dizem alguns directores literários
(e accionistas da própria propaganda)
que «o Sena não se vende». E é verdade:
Não vende. Só as putas se vendem.
E em Portugal são tantas que não há
bolsas bastantes para comprá-las,
nem caralhos bastantes
para fodê-las como mereciam.



Jorge de Sena


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Miguel Hernández (Ventos do povo)








VIENTOS DEL PUEBLO




Vientos del pueblo me llevan,
vientos del pueblo me arrastran,
me esparcen el corazón
y me aventan la garganta.


Los bueyes doblan la frente,
impotentemente mansa,
delante de los castigos:
los leones la levantan
y al mismo tiempo castigan
con su clamorosa zarpa.


No soy de un pueblo de bueyes,
que soy de un pueblo que embargan
yacimientos de leones,
desfiladeros de águilas
y cordilleras de toros
con el orgullo en el asta.


Nunca medraron los bueyes
en los páramos de España.


¿Quién habló de echar un yugo
sobre el cuello de esta raza?
¿Quién ha puesto al huracán
jamás ni yugos ni trabas,
ni quién al rayo detuvo
prisionero en una jaula?


Asturianos de braveza,
vascos de piedra blindada,
valencianos de alegría
y castellanos de alma,
labrados como la tierra
y airoso como las alas;
andaluces de relámpagos,
nacidos entre guitarras
y forjados en los yunques
torrenciales de las lágrimas;
extremeños de centeno,
gallegos de lluvia y calma,
catalanes de firmeza,
aragoneses de casta,
murcianos de dinamita
frutalmente propagada,
leoneses, navarros, dueños
del hambre, el sudor y el hacha,
reyes de la minería,
señores de la labranza,
hombres que entre las raíces,
como raíces gallardas,
vais de la vida a la muerte,
vais de la nada a la nada:
yugos os quieren poner
gentes de la hierba mala,
yugos que habeis de dejar
rotos sobre sus espaldas.


Crepúsculo de los bueyes
está despuntando el alba.


Los bueyes mueren vestidos
de humildad y olor de cuadra:
las águilas, los leones
y los toros de arrogancia,
y detrás de ellos, el cielo
ni se enturbia ni se acaba.
La agonía de los bueyes
tiene pequeña la cara,
la del animal varón
toda la creación agranda.


Si me muero, que me muera
con la cabeza muy alta.
Muerto y veinte veces muerto,
la boca contra la grama,
tendré apretado los dientes
y decidida la barba.


Cantando espero a la muerte
que hay ruiseñores que cantan
encima de los fusiles
y en medio de las batallas.



MIGUEL HERNÁNDEZ
Viento del Pueblo
(1936-7)





Ventos do povo me levam,
ventos do povo me arrastam,
esparzem-me o coração
e a garganta me arejam.


Os bois dobram a frente,
impotentemente mansa,
perante os castigos:
os leões erguem-na
e ao mesmo tempo castigam
com sua esplêndida pata.


Não sou de um povo de bois
mas de um povo impedido
por jazidas de leões,
desfiladeiros de águias
e cordilheiras de toiros
com o orgulho nas hastes.


Nunca medraram os bois
nestes páramos de Espanha.


Quem falou em pôr um jugo
no pescoço desta raça?
Quem já pôs ao furacão
algum dia jugo ou laço,
ou quem o raio deteve
prisioneiro numa jaula?


Asturianos de bravura,
bascos de pedra blindada,
valencianos de alegria
e castelhanos de alma,
lavrados como a terra
e airosos como asas;
andaluzes de relâmpagos,
nascidos entre guitarras
e forjados na bigorna
torrencial das lágrimas;
estremenhos de centeio,
galegos de chuva e calma,
catalães de firmeza,
aragoneses de casta,
murcianos dinamite
espalhada como fruta,
leoneses, navarros, donos
da fome, do suor e da acha,
reis do minério,
senhores da lavoura,
homens que entre raízes,
como raízes galhardas,
ides da vida à morte,
ides do nada ao nada:
um jugo vos quer pôr
gente da erva ruim,
jugo que haveis de deixar
desfeito nas suas costas.


Crepúsculo dos bois
vem despertando a aurora.


Os bois morrem vestidos
de humildade e cheiro da corte:
as águias, os leões
e os toiros de arrogância,
o céu por trás deles
nem se turva nem se acaba.
A agonia dos bois
apresenta cara pequena,
a do animal macho
engrandece a criação.


Se hei-de morrer, que morra
de cabeça bem erguida.
Morto mil vezes morto,
a boca colada ao chão,
hei-de ter os dentes cerrados
e a barba bem cortada.


Cantando espero a morte
pois há rouxinóis que cantam
acima das espingardas
e no fragor da batalha.



(Trad. A.M.)



>>  M.H., muito visto ultimamente:

Cómo cantaba mayo (El rayo que no cesa)
Idem (Echa la luna en pandos aguaceros)
Luz & sombra (Canción del esposo soldado)
Idem (Las manos)
Idem (Sentado sobre los muertos)
Idem (Los cobardes)


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30.10.10

Jorge Carvalheira (Um grupo de espanhóis)






Um grupo de espanhóis ceia tardia e ruidosamente, ficamos sem saber se há motivos para a casual celebração ou se não é antes de inveterado costume que se trata, olha uma pessoa estes cristãos e fica na dúvida se tanta exuberância é assomo doentio de grandeza, como já se tem dito, ou natural manifestação de sanidade de espírito, qualquer paisano é um duque d’alba em pelota, a quem o sol pede licença para se levantar.



- JORGE CARVALHEIRA, As aves levantam contra o vento, Quasi Ed., 2007, p. 43-4.


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Luís Miguel Nava (Dos descampados)






DOS DESCAMPADOS




Cresceram-me entre os ossos já as primeiras ervas.
Talvez dos descampados que me vêm
do espírito acabar à boca dos sentidos
por fim surjam aqueles que quando escavam
o fazem como se avançassem
assim para uma vida mais autêntica.
Terão o tempo nas mãos como uma enxada.
Brilhar-lhes-ão nas pás
pedaços do meu corpo que respiram.



Luís Miguel Nava


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29.10.10

Miguel d'Ors (Palavras, nada)




PALABRAS. NADA

                   (A José Luis García Martín )


Allá la iglesia humilde asomándose apenas
entre las carballeiras, allá el monte Coirego
con su corona fresca de eucaliptus,
y las risas desnudas de los niños
que juegan con el río,
y la pompa barroca de las parras,
y las voces queridas que vuelven con las vacas
y comentan la lluvia. Allá... Muy lejos.

Aquí, en mi noche sola y extranjera,
unas palabras torpes, agrupadas
para salvar – ilusas - la distancia:
«Allá la iglesia humilde asomándose apenas...»
Tinta sobre papel. Palabras. Nada.

Miguel d’Ors



Além a igreja humilde mal assomando
entre os carvalhos, além o monte Coirego
com sua coroa fresca de eucaliptos,
e os risos nus dos meninos
brincando no rio,
e a pompa barroca das parras,
e as vozes queridas que voltam com as vacas
e comentam a chuva. Além... Muito longe.

Aqui, em minha noite só e estrangeira,
algumas palavras torpes, juntadas
para salvar – iludidas – a distância:
“Além a igreja humilde mal assomando...”
Tinta sobre papel. Palavras. Nada.

(Trad. A.M.)



>>  Amediavoz (30p)  /  Abel Martín (57p)  /  Wikipedia

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José Miguel Silva (Ítaca)






ÍTACA




A salsa, o lúcio não têm pressa
e o fio de azeite aprende a esperar.
Cada dia que passa, não sei como é
- jantamos mais tarde. Precisa uma casa
de ter quem a viva, quem reze por ela,
por isso te espero de roupa no chão,
sem nada vestido debaixo da pele.


Abrimos a água, enxugo-te o rosto
podemos agora deixar de mentir.
Só com o corpo, relógio parado,
deixámos o mundo a rugir no escuro.
Urtiga nenhuma nos vai separar.
Ouvimos o sulco da garra na porta
e rimo-nos baixo. Não sei como é
- cada dia que passa jantamos mais tarde.



JOSÉ MIGUEL SILVA
Ulisses já não mora aqui
(2002)



[Lavorare Stanca]


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28.10.10

Olhar (84)








Lagoa da Lomba

Flores

(Açores)


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Amalia Bautista (Sonho com meu pai)







SUEÑO CON MI PADRE




Ya estoy aquí, no llores, pequeñaja,
me parte el corazón verte llorar.
Me despedí de todos al marcharme,
menos de ti, no te encontré aquel día
y tuve que partir, tenía prisa,
no podía esperar. Pero les dije
que volvería en cuanto terminara
de hacer lo que tenía que hacer lejos.
¿Por qué nadie te dijo nada de esto?
¿Cómo han dejado que sufrieras tanto
pensando que había muerto? Pobre Amalia,
tan fría y racional en apariencia,
tan vulnerable corazón adentro.
Ya estoy aquí. No llores, que tu llanto
podría disolverme en las tinieblas
de nuevo y para siempre.


Amalia Bautista






Já aqui estou, não chores, pequenita,
parte-me o coração ver-te chorar.
Despedi-me de todos ao partir,
menos de ti, não te encontrei naquele dia
e tive que andar, estava com pressa,
não podia esperar. Mas avisei
que voltaria quando terminasse
de fazer o que tinha de fazer longe.
Porque é que ninguém te disse nada?
Como puderam deixar que sofresses tanto
pensando que eu tinha morrido? Pobre Amalia,
tão fria e racional na aparência,
tão vulnerável lá dentro no coração.
Estou aqui. Não chores, que o teu pranto
poderia dissolver-me nas trevas
mais uma vez, para sempre.


(Trad. A.M.)


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27.10.10

José Mário Silva (Bestiário mínimo)






BESTIÁRIO MÍNIMO




I. corvos

Vírgulas suspensas
entre ciprestes.


II. grilos

Já se calaram há muito
mas o seu canto ficou a pairar
sobre a seara, dentro da cabeça.


III. salmões

O rio original, espécie de útero,
chama por eles. E eles voltam.


IV. rãs

Vivem na margem do lago,
à espera de uma fábula ou
de um verso japonês.



José Mário Silva




[Ruialme]


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Jacques Prévert (Paris at night)






PARIS AT NIGHT




Trois allumettes une à une allumées dans la nuit
La premiére pour voir ton visage tout entier
La seconde pour voir tes yeux
La dernière pour voir ta bouche
Et l'obscuritè tout entière pour me rappeler tout cela
En te serrant dans mes bras.


Jacques Prévert





Três lumes um por um acendidos na noite
O primeiro para ver o teu rosto todo
O segundo para ver teus olhos
O último a tua boca
E a escuridão toda para lembrar tudo isso
Apertando-te nos meus braços.



(Trad. A.M.)


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26.10.10

Álvaro Mutis (Encontro)






CITA




Bien sea en la orilla del río que baja de la cordillera
golpeando sus aguas contra troncos y metales dormidos,
en el primer puente que lo cruza y que atraviesa el tren
en un estruendo que se confunde con el de las aguas;
allí, bajo la plancha de cemento,
con sus telarañas y sus grietas
donde moran grandes insectos y duermen los murciélagos;
allí, junto a la fresca espuma que salta contra las piedras;
allí bien pudiera ser.
O tal vez en un cuarto de hotel,
en una ciudad adonde acuden los tratantes de ganado,
los comerciantes en mieles, los tostadores de café.
A la hora de mayor bullicio en las calles,
cuando se encienden las primeras luces
y se abren los burdeles
y de las cantinas sube la algarabía de los tocadiscos,
el chocar de los vasos y el golpe de las bolas de billar;
a esa hora convendría la cita
y tampoco habría esta vez incómodos testigos,
ni gentes de nuestro trato,
ni nada distinto de lo que antes te dije:
una pieza de hotel, con su aroma a jabón barato
y su cama manchada por la cópula urbana
de los ahitos hacendados.
O quizás en el hangar abandonado en la selva,
a donde arribaban los hidroaviones para dejar el correo.
Hay allí un cierto sosiego, un gótico recogimiento
bajo la estructura de vigas metálicas
invadidas por el óxido
y teñidas por un polen color naranja.
Afuera, el lento desorden de la selva,
su espeso aliento recorrido
de pronto por la gritería de los monos
y las bandadas de aves grasientas y rijosas.
Adentro, un aire suave poblado de líquenes
listado por el tañido de las láminas.
También allí la soledad necesaria,
el indispensable desamparo, el acre albedrío.
Otros lugares habría y muy diversas circunstancias;
pero al cabo es en nosotros
donde sucede el encuentro
y de nada sirve prepararlo ni esperarlo.
La muerte bienvenida nos exime de toda vana sorpresa.



Álvaro Mutis






Seja na margem do rio que desce da cordilheira
batendo suas águas contra troncos e metais adormecidos,
na primeira ponte que o comboio atravessa
com um estrondo que se confunde com o da corrente;
ali, sob a placa de cimento,
com suas teias de aranha e suas rachas
onde habitam grandes insectos e dormem os morcegos;
ali, junto da fresca espuma que salta contra as rochas;
bem podia ser ali.
Ou talvez num quarto de hotel,
numa cidade a que acorrem os criadores de gado,
os comerciantes de mel, os torradores de café.
À hora de mais bulício nas ruas,
quando as primeiras luzes se acendem
e abrem os bordéis
e sobe das tabernas a algaravia dos gira-discos,
o toque dos copos e o ruído das bolas de bilhar;
o encontro conviria a essa hora
e desta vez tão pouco haveria testemunhas incómodas,
nem pessoas do nosso trato,
nem nada diferente do que já te disse:
um quarto de hotel, com seu cheiro de sabonete barato
e sua cama manchada pela cópula urbana
dos donos da terra.
Ou talvez no hangar abandonado na selva,
onde arribavam os hidroaviões a deixar o correio.
Há ali um certo sossego, um recolhimento gótico
debaixo da estrutura de vigas metálicas
invadidas pela ferrugem
e tingidas por um pólen cor de laranja.
Fora, a desordem lenta da selva,
seu hálito espesso percorrido
de súbito pela gritaria dos símios
e dos bandos de aves belicosas.
Dentro, um ar suave povoado de líquenes
riscado pelo toque das lâminas.
Ali também a solidão necessária,
o desamparo indispensável, o amargo alvedrio.
Outros lugares haveria e diferentes circunstâncias;
mas ao fim e ao cabo em nós
é que se dá o encontro
e de nada serve prepará-lo ou esperá-lo.
A morte bem-vinda nos exime de toda a vã surpresa.


(Trad. A.M.)


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José Rentes de Carvalho (O dedo de Deus)






Os moradores abandonaram as casas anos atrás, quando a lavoura deixou de compensar.

Tirante a quinta das Arcas a meia encosta, também já despovoada, mas onde por enquanto ainda tratam das oliveiras e dos amendoais, o que eu conheci como searas são hoje matos.

Nos meus tempos de criança a brisa fazia ondular num ritmo hipnótico as ladeiras plantadas de cereal, e não era preciso muita fantasia para imaginar um dedo gigantesco a passar e repassar sobre elas, dando-lhes vida.

O dedo de Deus.

Agora, mais bastos que no passado, os pinheiros estendem-se à toa pelos montes.

Vistas de longe, as suas copas parecem um tapete verde lançado sobre a terra estéril, onde os silvedos, as giestas, as estevas, os carrascos e cem outros arbustos daninhos, crescem tão densos que só as fragas maiores não desapareceram ainda sob eles.



- J. RENTES DE CARVALHO, Ernestina, Ed. Escritor, Lx. 2001, p. 11.

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25.10.10

José Luís Peixoto (O tempo, subitamente solto)






o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.



José Luís Peixoto


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Alejandra Pizarnik (Agora)






ahora
       en esta hora inocente
yo y la que fui nos sentamos
en el umbral de mi mirada



Alejandra Pizarnik





agora
       nesta hora inocente
eu e a que fui sentadas
no umbral de meu olhar


(Trad. A.M.)

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24.10.10

Olhar (83)








Flores


(Açores)

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José Gomes Ferreira (Ó pastor que choras)





Ó pastor que choras 

o teu rebanho onde está? 

Deita as mágoas fora, 

carneiros é o que mais há 



uns de finos modos 

outros vis por desprazer... 

Mas carneiros todos 

com carne de obedecer. 



Quem te pôs na orelha 

essas cerejas, pastor? 

São de cor vermelha, 

vai pintá-las de outra cor. 



Vai pintar os frutos, 

as amoras, os rosais... 

Vai pintar de luto 

as papoilas dos trigais.



José Gomes Ferreira

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23.10.10

Ana Rossetti (Confim)






CONFÍN




Se bucea una y otra vez
tras los restos del naufragio.
Y una y otra vez
se depositan las capturas
en la pulida lámina de la orilla.
¿Qué es lo que queda fuera?
¿La espuma que se desborda de las manos
o el océano denso del lenguaje?



Ana Rossetti

[Neorrabioso]





Mergulha-se uma e outra vez
entre os restos do naufrágio.
E depõe-se a colheita
uma vez e outra
na lâmina polida da margem.
O que é que fica de fora?
A espuma que sobra das mãos
ou o oceano denso da linguagem?


(Trad. A.M.)





>>  Amediavoz (42p)  /  Cervantes (9p)  /  Wikipedia

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José Agostinho Baptista (Perda)






PERDA




Fazem-se de soluços
as embriagadas estações do teu vulto,
e calam-se,
calam-se outra vez os sinos quando te
levantas de costas para os templos,
amaldiçoando as cidades,
os relógios que arruínam o corpo para sempre,
sabendo que no fim das veredas de lama se
abre uma clareira de ossos dispersos, com o
terror por dentro,
com as bússolas que há muito perderam o
norte e jazem como tu, entre a imobilidade e
a ferrugem.



JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
Agora e na Hora da Nossa Morte
Assírio & Alvim
(1998)

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22.10.10

João Miguel Fernandes Jorge (Décimo sexto castelo de Holanda)






DÉCIMO SEXTO CASTELO DE HOLANDA





Às vezes escrevo num caderno
pequenas frases. Coisas sem
nexo e sem nenhuma legitimidade
para um dia poderem dar lugar a
um verso. Escrevo-as de noite
a meio do sono e no dia seguinte
não sei que sentido lhes possa
atribuir. E que quererão dizer
as que p’la madrugada de ontem
anotei?
“O chão seco da tua morte. O
duplo touro.
Cilindros de oiro. De quem era
a sala das sombras? Coisas de
vaidade, o meu relógio, o globo
onde lês as cidades do mundo”.
Às vezes deixo-me ficar sentado,
como agora estou a esta mesa no
quarto do hotel
e os sentidos prendem-se a essas
palavras que valem o que vale
uma viagem ao extremo da maior
melancolia da noite.



João Miguel Fernandes Jorge

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Manuel J. Castilla (Volta o verde)






EL VERDE VUELVE




Cuando la primavera está llegando
cuando el verde aparece en los álamos
tan tiernamente
que no se sabe si es hoja
o rana pequeñita que comienza a cantar
en los charcos del aire,
entonces, sin querer,
uno le ve la sombra clara a su propio silencio
y algo que se parece a los dedos de Dios
le enternece los ojos.


Ese pequeño verde que brinca,
esa como mirada de niña que florece,
esa lágrima dulce de la tierra, derrumbándose,
ese parado goce de la savia
es el primer vagido de la primavera.
Son unas hojas tiernas.
Eso es todo el suceso. Casi nada.


Manuel J. Castilla



[Marcelo Leites]







Quando chega a Primavera
quando o verde aparece nos álamos
tão tenro
que não se sabe se é folha
ou rã pequenina começando a cantar
nos charcos do ar,
então, sem querer,
vemos-lhe a sombra clara do silêncio
e enternece-nos a vista
algo parecido com os dedos de Deus.


Esse pequeno verde a brincar,
esse como olhar de menina a florir,
essa lágrima doce da terra, tombando,
esse lento gozo da seiva
é o primeiro vagido da Primavera.
São algumas folhas tenras.
Esse é o acontecimento. Quase nada.


(Trad. A.M.)




>>  Acta Literaria (perfil)  /  Salta (2p+info)  /  Wikipedia


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21.10.10

Paulo Leminski (Amor, então)






Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.



Paulo Leminski

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Anne Carson (Motel ocidental)






WESTERN MOTEL


Pink bedspreads you say
are not pleasing to you
yet you sit very straight
till the pictures are through.

Two suitcases watch you like dogs.

You wear your hair parted
low on the right.
Mountains outside
look like beds without night.

Two suitcases watch you like dogs.

Glass is for getaway.
Hot is out there.
You seem to know
the road ends here.

Two suitcases watch you like dogs.


Anne Carson

[Marcelo Leites]




Os cobertores cor de rosa dizes
não são do teu agrado
mas estás sentada muito direita
para as fotografias.

Duas malas olham para ti como cães.

Tens o cabelo penteado
com risco à direita.
Os montes lá fora
são como leitos sem noite.

Duas malas olham para ti como cães.

O vidro é para fuga.
Calor está lá fora.
Pelos vistos tu sabes
o caminho acaba aqui.

Duas malas olham para ti como se fossem cães.


(Trad. A.M.)




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20.10.10

Irene Albert (O pesar)






EL DUELO




Resultó que aquel dolor era un proceso. Llamarlo
así me dignificaba el llanto.
Llevé luto e insomnio rigurosos. Dije muchas veces
que quería morir.
Con el tiempo me fui serenando y me permití una
sonrisa tímida aquí y allá.
Me comí un dulce. Me vestí de gris.
Todos aplaudieron el ritual. Todos preguntaron.
Lo que no comprendo es el escándalo: por supuesto
que la parte más dura fue matarlo.



IRENE ALBERT
Zombie Love
Littera Libros
(2010)


[Ediciones Liliputienses]






Em verdade, aquela dor era um processo. Dizê-lo
assim dava-me dignidade ao pranto.
Pus luto rigoroso, além da insónia. Disse muita vez
que queria morrer.
Com o tempo fui serenando, permitindo-me
aqui e ali um tímido sorriso.
Comi doces e vesti-me de cinza.
Todos aplaudiram o ritual. Todos perguntaram.
O que não entendo é o escândalo, é claro
que a parte mais dura foi matá-lo.


(Trad. A.M.)

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Fernando Assis Pacheco (Seria o amor português)






SERIA O AMOR PORTUGUÊS



(Variações sobre um fado)



Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.


Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.


Nada me importa, mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.


Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.


Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?




FERNANDO ASSIS PACHECO
Cuidar dos Vivos
(1963)



[Luz & Sombra]

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19.10.10

Jorge Carvalheira (Este enjeitado povo)






E assim perceberemos nós melhor porque sempre foi este enjeitado povo, mar em fora, primeiro de cruz alçada e depois mesmo sem ela, encontrar a felicidade entre os cafres de qualquer sertão, não há entre nós e eles diferenças de maior, fazemos uns e outros os filhos no mesmíssimo lugar, estendendo no chão as mesmas pretas nós e eles, é uma santa fraternidade multirracial, assim ponham os olhos em nós os altivos saxões da Europa, e no exemplo da nossa obra civilizadora.

E, em diferenças havendo, chamamos o cipaio, que a nosso gosto porá as coisas nos lugares, quanto ao resto alguém decidirá, para que há-de o povo saber mais do que assinar o nome e contar os dias da semana, que são os de trabalho, que melhor vida se resume a tão simples contabilidade.



- JORGE CARVALHEIRA, As aves levantam contra o vento, Quasi Ed., 2007, p. 42.

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Jaime Sabines (Tem cada um)






¿Tiene uno, como la naturaleza, sus estaciones, sus ciclos de vida?
En el curso de quince o veinte días pasa una primavera
y un verano en el fondo del alma,
y luego viene un día violento en que nos quedamos
sin hojas, y fríos, e inmóviles.


Alma mía, cosechadora de lo que siembro con el sudor de mi frente,
con el frío sudor de mi frente,
¿puedes decirme a qué horas nos encontramos,
en qué sitio desierto vamos a vernos?


El diablo no hace caso de mis citas,
y Dios es sordo desde hace tiempo:
ven tú alma mía, testigo mío, dame todo
lo que no tienes en tus manos, lo que no te pertenece,
tu sonrisa, tus lágrimas.
¿Qué voy a hacer con ello? Nada.
Quisiera echarte gasolina encima y prenderte fuego, alma mía.
Para recuperarme.



Jaime Sabines







Tem cada um, como a natureza, suas estações, seus ciclos de vida?
Em quinze ou vinte dias passa uma Primavera
e um Verão no fundo da alma,
e a seguir vem um dia violento que nos deixa
sem folhas, imóveis e frios.


Alma minha, colhedora do que semeio com o suor da minha fronte,
com o frio suor da minha fronte,
podes dizer-me a que horas nos encontramos,
em que sítio deserto nos vamos ver?


O diabo não liga aos meus encontros
e faz tempo que Deus está surdo:
vem tu, alma minha, testemunha, dá-me
o que tens nas tuas mãos, que não te pertence,
o sorriso e as lágrimas.
Que vou eu fazer com isso? Nada.
Queria era deitar-te gasolina para cima
e pegar-te fogo, alma minha.
Para recuperar.


(Trad. A.M.)


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18.10.10

Um verso (86)






Um verso de Panero
(o de Mondragón):





O poema é o latido de um cão





Leopoldo María Panero


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João Cabral de Melo Neto (O poema)






O POEMA




A tinta e a lápis
Escrevem-se todos
Os versos do mundo.


Que monstros existem
Nadando no poço
Negro e fecundo?


Que outros deslizam
Largando o carvão
De seus ossos?


Como o ser vivo
Que é um verso,
Um organismo


Com sangue e sopro,
Pode brotar
De germes mortos?


   *


O papel nem sempre
É branco como
A primeira manhã.


É muitas vezes
O pardo e pobre
Papel de embrulho;


É de outras vezes
De carta aérea,
Leve de nuvem.


Mas é no papel,
No branco asséptico,
Que o verso rebenta.


Como um ser vivo
Pode brotar
De um chão mineral?




JOÃO CABRAL DE MELO NETO
O engenheiro
(1945)


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17.10.10

Manuel Moya / Violeta (Enfim)






En fin, así quedó la cosa,
hice lo que pude por vivir. He trabajado
cómo y dónde dios me dio a entender.
A ratos el amor presté por nada,
otras veces lo pagué
(siempre se acaba por pagar
con este menda). Ahora, a ver qué hago,
me cobra todo junto y a su modo:


en carne, en asco, en tralla,
en vaselina.



Violeta C. Rangel





Enfim, a coisa ficou assim,
fiz o que pude por viver. Trabalhei
como e onde deus me mandou.
Às vezes o amor dei-o por nada,
outras vezes paguei-o
(sempre se acaba por pagar
com este puto). Agora, a ver o que eu faço,
cobra-me tudo junto e a seu modo:


em carne, em asco, em chibata,
em vaselina.


(Trad. A.M.)

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Herberto Helder (Ciclo-V)






CICLO-V




Uma noite acordarei junto ao corpo infindável
da amada, e meu sangue não se encantará.
Então, rosa a rosa murcharão meus ombros.
Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos
de distância como se tudo fosse o cheiro
que as ervas pungentemente perdem
através do silêncio.
Plácido chegarei à mesa, e de súbito
o coração se atravessará de gelo puro.
O vinho? perguntarei. Flores de sal cobrirão
a luz poderosa do meu olhar.
Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente
pasmo da carne: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.


Então lembrarei a vermelha resina, o espesso
murmúrio do sangue,
o acre e sobrenatural aroma das acácias.
Tentarei encontrar uma forma.
Com beijos antigos um momento ainda queimarei
o corpo solitário da amada, direi palavras
de uma ternura de azebre.
E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.



HERBERTO HELDER
A Colher na Boca
(1961)


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16.10.10

Fernando Pessoa / A. Caeiro (Eu nunca guardei rebanhos)






Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do Sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
É se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.


Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.


Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.


Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.


Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
   (...)


(O guardador de rebanhos)



Alberto Caeiro

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Gabriel Celaya (Devo ser algo tonto)






DEVO SER ALGO TONTO



Devo ser algo tonto
porque às vezes acontece-me falar sozinho
e dizer coisas loucas,
assim nomes bonitos de miúdas e barcos
ou títulos de livros que nunca ninguém escreveu.
Algo tonto devo ser.


Babo-me, choro e grito.
Os verbos absolutos enchem-me de ternura
e essas vogais soltas, inúteis, redondas,
que voam para nada,
deixam-me boquiaberto e no sétimo céu.


Sou feliz e, daí também, um bocado tonto.



Gabriel Celaya

(Trad. A.M.)


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15.10.10

Olhar (82)









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Carlos Drummond de Andrade (A palavra mágica)






A PALAVRA MÁGICA




Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.


Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.


Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.



Carlos Drummond de Andrade

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14.10.10

Vicente Gallego (Nas horas escuras)






EN LAS HORAS OSCURAS





En las horas oscuras
que van creciendo en nuestras vidas
al igual que la noche se alarga en el invierno,
en esas horas, a menudo,
una imagen tenaz y hermosa me consuela.
Regreso hasta una playa de otro tiempo
todavía cercano. Es un día precioso
de final de septiembre, brilla el mar
con su estructura lenta, sugestivo y exacto
como un cuchillo.
Y no estoy solo,
un grupo de muchachas me acompaña;
el sol dora sus cuerpos de diecisiete años,
y es ya fresca la brisa, y en sus nucas
la humedad reaviva el aroma a colonia.
La tarde es un clamor de tiempo invicto,
y las muchachas ríen, y me dan su alegría,
aunque no amo a ninguna,
y hay un aire de adiós en cada cosa:
en el verano aquel, en aquellas muchachas
que desconozco hoy, y en la luz de la playa.


Apuré aquel momento agradecido,
al igual que se goza un hermoso regalo,
en su dicha sereno, destinado a perderse
tras la felicidad frecuente de esos años.
Y ahora comprendo que en aquella tarde
algo más que belleza se ocultaba,
porque su luz me salva, muchas veces,
en las horas oscuras.
En las horas oscuras me consuela
una imagen tenaz de la alegría.
Y yo aún me pregunto por qué vuelve,
y qué es lo que perdí en aquella playa.



Vicente Gallego



[Cervantes]






Nas horas escuras
que vão crescendo em nossas vidas
tal como a noite fica maior no Inverno,
nessas horas, amiúde,
uma imagem me consola bela e tenaz.
Retorno a uma praia de outro tempo
ainda próximo. É um dia estupendo
de fim de Setembro, brilhando o mar
em sua estrutura lenta, sugestivo e exacto
como um punhal.
E eu não estou só,
há um grupo de raparigas;
o sol doura-lhes os corpos de dezassete anos,
é já fresca a brisa e a humidade
reaviva-lhes nas nucas o aroma de colónia.
A tarde é um clamor de tempo invicto,
riem as raparigas e dão-me a sua alegria,
embora eu não ame nenhuma,
e há um ar de adeus em cada coisa:
nesse Verão, nessas raparigas
que hoje desconheço e na luz da praia.


Saboreei agradecido tal momento,
assim como se goza um belo presente,
em sua ventura sereno, destinado a perder-se
após a felicidade frequente desses anos.
E agora compreendo que nessa tarde
ocultava-se algo mais que beleza,
porque a sua luz me salva, muita vez,
nas horas escuras.
Nessas horas escuras consola-me
uma imagem tenaz da alegria.
E eu pergunto-me ainda por que volta
e o que foi que eu perdi naquela praia.


(Trad. A.M.)

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Lawrence Durrell (Ruas que fogem das docas)






Ruas que fogem das docas, por entre montões de casas desmanteladas e apodrecidas, metendo-se umas pelas outras, voltando as costas umas às outras...

Balcões esteirados formigando ratos, e velhas cujo cabelo está cheio de crostas de feridas.

Paredes ébrias que cambaleiam para leste e oeste do seu verdadeiro centro de gravidade.

Cordões negros de moscas colando-se aos lábios e aos olhos das crianças, e larvas de moscas, como pérolas húmidas, por todo o lado; o peso dos cadáveres faz cair o papel mata-moscas nas portas dos cafés e das cantinas.

Odor dos berberes curtidos de suor, comparável ao cheiro de uma velha passadeira em decomposição.

E, depois, os pregões e os ruídos da rua: os gritos e o tilintar do aguadeiro, batendo os pratos de metal para anunciar a sua passagem, e os gritos inesperados que, uma vez por outra, dominam a algazarra, tais como os de um pequeno animal de órgãos sensíveis que se estripa vivo.

Feridas como pântanos... a incubação da miséria humana toma tais proporções que nos confunde, transbordando e espalhando todos os sentimentos humanos numa vaga única de desgosto e terror.




- LAWRENCE DURREL, Justine (1.ª parte), trad. Daniel Gonçalves.


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13.10.10

Maria do Rosário Pedreira (De que serviu)






De que serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu


recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti


que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,


mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.



MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
Nenhum nome depois
(2004)



[Olhe que não]

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9.10.10

Rosario Castellanos (Saudade)






NOSTALGIA




Ahora estoy de regreso.
Llevé lo que la ola, para romperse, lleva
- sal, espuma y estruendo -
y toqué con mis manos una criatura viva;
el silencio.


Heme aquí suspirando
como el que ama y se acuerda y está lejos.



Rosario Castellanos






Agora estou de regresso.
Tomei o que a onda tem, para quebrar-se
- sal, espuma e estrondo –
e toquei com minhas mãos uma criatura viva,
o silêncio.


Aqui estou suspirando
como quem ama e se lembra e está longe.



(Trad. A.M.)

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Anne Carson (O casibeque azul)






FATHER'S OLD BLUE CARDIGAN




Now it hangs on the back of the kitchen chair
where I always sit, as it did
on the back of the kitchen chair where he always sat.


I put it on whenever I come in,
as he did, stamping
the snow from his boots.


I put it on and sit in the dark.
He would not have done this.
Coldness comes paring down from the moonbone in the sky.


His laws were a secret.
But I remember the moment at which I knew
he was going mad inside his laws.


He was standing at the turn of the driveway when I arrived.
He had on the blue cardigan with the buttons done up all the
way to the top.
Not only because it was a hot July afternoon


but the look on his face
- as a small child who has been dressed by some aunt early in the
morning for a long trip
on cold trains and windy platforms
will sit very straight at the edge of his seat


while the shadows like long fingers
over the haystacks that sweep past
keep shoeking him
because he is riding backwards.



Anne Carson



[Marcelo Leites]






Agora está pendurado nas costas da cadeira da cozinha
onde eu me sento sempre, tal como antes estava
nas costas da cadeira da cozinha onde ele sempre se sentava.


Ponho-o de cada vez que entro,
como ele fazia, sacudindo
a neve do calçado.


Ponho-o e fico sentada no escuro.
Ele não faria isso.
O frio aparece caindo lá do osso da lua no céu.


Suas regras eram um segredo,
mas ainda me lembro do instante em que percebi
que ele estava a enlouquecer dentro das suas regras.


Eu cheguei e ele estava de pé na rampa da garagem,
com o casibeque azul apertado até cima.
Primeiro era uma tarde quente de Julho


mas foi também a expressão do seu rosto
- como uma criança que a tia vestisse de manhã cedo
para uma longa viagem
de comboios gelados e estações ventosas
e se senta muito direita na borda do assento


enquanto as sombras como longos dedos
sobre os montes de feno que passam a correr
causam-lhe sobressalto
por estar a viajar de costas.



(Trad. A.M.)




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8.10.10

Ana Hatherly (A verdadeira mão)






A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se


O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita


O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende


E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta



ANA HATHERLY
O Pavão Negro
Assírio & Alvim
(2003)

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Luis Alberto de Cuenca (Advertência ao leitor)






ADVERTENCIA AL LECTOR




Oyendo a Dinah Washington - son las diez de la noche
de un veintitrés de octubre - se me ocurre decirle
al presunto lector de mi «literatura»
que procure evitarla como se evita a un huésped
molesto - un erudito, una rata en el baño -
y que si, por alguna razón que se me escapa,
quiere seguir leyendo, que entienda lo que lee
como lo que es: un grito (o un susurro) de angustia
y soledad.


LUIS ALBERTO DE CUENCA
Por fuertes y fronteras
(1996)






Escutando Dinah Washington – são dez da noite,
vinte e três de Outubro – ocorre-me dizer
ao putativo leitor da minha “literatura”
que procure evitá-la como se evita um hóspede
incómodo – um erudito, uma rata no banho –
e se, por alguma razão que me escapa,
quiser continuar a ler, que entenda o que lê
como isso que é, um grito (ou um sussurro)
de angústia e solidão.


(Trad. A.M.)

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7.10.10

Alexandre O'Neill (A uma oliveira)






A UMA OLIVEIRA




Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.


Pré-camoniana,
sazão a sazão,
foste varejada séculos a fio.


O pinho viajou.
tu ficaste.


Ao som bárbaro de um rádio de pilhas,
desdobram toalhas
na tua sombra rala.



Alexandre O'Neill



[Silva]


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