20.6.15

José Cardoso Pires (Salazar-2)





Durante dez meses bem contados, o cadáver do excelentíssimo esperneara numa cama, em debate com o Criador sobre a oportunidade ou não de lhe entregar a alma sem mais delongas e deixar o país aos perdulários.

E nem acreditava.

Dez meses, for Chrissake.

E o caso é que durante esses dez meses não houve um só dia em que não chegassem peregrinações de senhoras sociais a fazerem o acenozinho ao gemebundo, ministros que já não eram ministros e que fingiam que vinham a despacho, e soldados, soldados de África, uns condecorados, outros sem pernas, até esses lá iam deixar a assinatura em louvor da guerra contra os pretos.

Assim mesmo.

Nada disto era boato, podia ler-se nos jornais.

Os enfermos importantes nem na morte têm sossego e constava que à volta daquele pai da pátria só se viam curas de mãos postas, médicos a arrepelarem os cabelos e pides com microfones à coleira a fingirem de estetoscópios. (p.169)



JOSÉ CARDOSO PIRES
Alexandra Alpha
(1987)

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