31.8.18

António Nobre (Minha capa vos acoite)





Minha capa vos acoite
Que é p'ra vos agasalhar:
Se por fora é cor da noite,
Por dentro é cor do luar...

Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobrais, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do céu! 

Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua água?
Qu'é dos prantos que eu chorei?

cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim:
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam assim.

Nossa Senhora faz meia
Com linha feita de luz:
O novello é a lua-cheia,
As meias são p'ra Jesus.

Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons...

Ó fogueiras, ó cantigas,
Saudades! recordações!
Bailai, bailai, raparigas!
Batei, batei, corações!


António Nobre

.

29.8.18

Paco Moral (Poética)






po   ética 

en la bondad del misericordioso
y la boca del compasivo

en la savia del árbol minúsculo
y el quejido del perro acurrucado en el miedo

en el ojo de ella hinchado por el golpe
en la mano abierta que me reclama
en el amigo arrinconado
en el hijo que aún se arrebuja a mi lado cuando duda

en mil
cosas
pequeñas

y en ese modo tuyo
de mirar en lo oscuro
mi boca en las mañanas
y decir buenos días mi amor
y estirarte
como una gata libre



Paco Moral






po ética

na bondade do misericordioso
e na boca do compassivo

na seiva da árvore minúscula
e no queixume do cão agachado no medo

no olho dela inchado da pancada
na mão aberta que me reclama
no amigo esquecido
no filho que a meu lado se cobre quando duvida

em mil
coisas
pequenas

e nesse modo teu
de olhar no escuro
minha boca manhã cedo
e dizer bom dia amor
e estirar-te
como uma gata vadia

(Trad. A.M.)

 .

27.8.18

Mário de Carvalho (Prosas pacatas)




(Prosas pacatas) 


Já vejo que estas personagens estão num momento miudamente agitado das suas vidas.

Os acontecimentos provocaram-nas e transtornaram-lhes o natural de hábitos e de pensamentos.

A continuar por aqui isto agora eram águas rápidas e cachoeiras, por socalcos penedosos, arriscados, sacudidos, inquietadores, a precipitar baldeamentos uivantes e trambolhões de lascar osso.


Eu sou mais pelas prosas pacatas e defendo-me dos frenesis literários.



MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)


.

25.8.18

Enrique García Máiquez (As armas e as letras)






AS ARMAS E AS LETRAS



Aqui onde me vêem
contar a minha experiência
sou um poeta compro-
metido até às sobrancelhas
na campanha audaz
de melhorar a terra.
E, diligente, meto
com vontade de luta
mãos à obra
no que encontro ao pé.
A batalha mais dura
trava-se-me na cabeça,
e tenho que esforçar-me
forçar-me nesta guerra
onde o que perde, ganha
e o que ganha se rende.
A luta é sem quartel,
sem mortos, sem violência,
sem inimigos, sem
armas além das letras…



Enrique García-Máiquez

(Trad. J.M.Magalhães)


.

24.8.18

Eloy Sánchez Rosillo (A cegueira)




LA CEGUERA



Mirar no es sólo asunto de los ojos.
Primero, ciérralos unos instantes
y dentro de ti busca –en tu sosiego–
la facultad de ver.
Y ahora ábrelos, y mira.
Es enero ahí afuera, pero está
muy hermosa la vida esta mañana.
Cuánto sol en los álamos
que en trémulas hileras van creciendo
en esta vieja plaza
de tu ciudad. Un día y otro día,
durante muchos años,
a su lado pasaste y no los viste,
ciego que dabas pena y que hoy, por fin,
de milagro has sanado y puedes ver
y en tu mirar te salvas.


ELOY SÁNCHEZ ROSILLO
Oír la luz
Tusquets Editores
(2008)

[Apología de la luz]




Olhar não é só coisa dos olhos.
Primeiro, fecha-os um instante
e busca dentro de ti - em teu sossego -
a faculdade de ver.
Agora abre-os e mira.
É Janeiro lá fora, mas a vida
está muito bela esta manhã.
Quanto sol nos álamos
que vão crescendo em filas trémulas
nesta velha praça
da cidade. Um dia e outro,
muito anos, passaste-lhes
ao lado e não os viste,
cego de todo que davas pena
e hoje, enfim, saraste por milagre
e consegues ver
e em teu olhar te salvas.

(Trad. A.M.)

.

23.8.18

João Guimarães Rosa (Integração)






INTEGRAÇÃO



Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
acompanho as pontas dos cipós que oscilam,
o respirar das folhas,
o saltitar de cócegas nas patas dos gafanhotos,
e o crescer rampante da trepadeira brava,
avançando em meus braços.
Oh! a canção viva
do liso verde-azul dos sanhaços nos galhos,
e o pio dos gaturamos maduros,
fino e gostoso como um caldo de fruta!…
O céu,
limpo, azul e côncavo, na altura,
é um recanto de corpo,
pronto a se contrair, ao primeiro contato,
num único espaço de volúpia sóbria…
Inútil erguer-me: mais alta é a gameleira…
Mas meus dedos afundam no chão amolecido,
como raízes nuas…
Desce-me ao fundo do peito a terra inteira,
no cheiro molhado da poeira,
e os meus olhos sobem, tateando os verdes…


João Guimarães Rosa

.

22.8.18

Efraín Huerta (Ai poeta)







AY POETA



Primero
que nada:
Me complace
enormísimamente
ser
un buen
poeta
de segunda
del tercer
mundo

Efraín Huerta




Antes
de mais,
adoro
ser
um bom
poeta
de segunda
do terceiro
mundo

(Trad. A.M.)

.

21.8.18

Eduardo Llanos (Renovação do estado de perigo)





RENOVACIÓN DEL ESTADO DE PELIGRO DE LA PAZ INTERIOR



Las metáforas y demás expresiones emitidas aquí
no representan necesariamente el estilo del hablante lírico.
Los versos presentes son de exclusiva responsabilidad
de cierto pulso alborotado, de cierto ahogo
producido por bombas lacrimógenas y balas
que unos policías dispararon al aire, al aire, a ese aire
que iba huyendo hacia los pulmones de un cesante aún no identificado,
al aire, al rumor que un poblador estaba propagando en su garganta
y que fue oportunamente desmentido por el plomo patriótico.

Los versos presentes no guardan el debido respeto
a los abnegados guardianes de la paz y del orden
tan peligrosamente amenazados por aquella estudiante
a quien se sugirió continuar su protesta en el más allá,
con los sesos salpicados en las paredes de su casa.
Estos poemas no representan el dolor de las viudas, el sollozo
entrecortado de aquellos huérfanos de costillas translúcidas,
las llamas de una choza incendiada en la noche
mientras sus ocupantes soñaban con un plato de arroz
o una sopa caliente.

Este poema está tergiversado: se inclina
descaradamente en favor de los caídos
y no refleja ni la menor serenidad de espíritu.

De seguro su autor lo escribió mientras volaba bajo, demasiado bajo,
como ave carroñera
sin más perspectiva
que la fosa común.


Eduardo Llanos




As metáforas e mais expressões aqui emitidas
não representam necessariamente o estilo do falante lírico.
Os presentes versos são da exclusiva responsabilidade
de certo pulso alvoroçado, de certo afogo
devido a bombas lacrimogéneas e balas
disparadas para o ar por alguns polícias, para o ar, esse ar
que estava entrando nos pulmões de um trânsfuga não identificado,
para o ar, visando o rumor que um paisano estava a propagar com a garganta,
muito oportunamente desmentido pelo chumbo patriótico.

Os versos presentes não guardam o devido respeito
aos abnegados guardiães da paz e da ordem
tão perigosamente ameaçadas por aquela estudante
a quem se sugeriu que fosse protestar mais para diante,
com os miolos salpicados nas paredes de sua casa.

Estes poemas não traduzem a dor das viúvas, o soluço
entrecortado desses órfãos de costelas translúcidas,
as chamas de um casebre incendiado na noite,
enquanto os moradores sonhavam comum prato de arroz
ou uma sopa quente.

Este poema está tergiversado, inclinando-se
descaradamente a favor dos caídos,
sem reflectir sequer a menor serenidade de espírito.

De certeza que o autor o escreveu a voar baixo, muito baixo,
como ave necrófaga
sem mais perspectiva
do que a vala comum.

(Trad. A.M.)

.

20.8.18

João de Mancelos (Açores)






AÇORES



os emigrantes que partiram
para a outra margem do atlântico
falam de cinzas vivas
e dizem em silêncio
que a saudade
é uma ilha de fogo


João de Mancelos


.

19.8.18

Javier Egea (Epigrama)






EPIGRAMA



Sueño y trabajo nos costó saberlo:
ternura es patrimonio de los rojos.
Pero los rojos, Claudia,
en estas noches bárbaras,
sólo somos tú y yo.

Javier Egea




Sono e trabalho nos custou sabê-lo:
a ternura é património dos vermelhos.
Mas os vermelhos, Claudia,
nestas noites bárbaras,
somos só nós, tu e eu.

(Trad. A.M.)


>>  Javier Egea (sítio/ tudo+algo) / A media voz (18p) / Wikipedia

.

18.8.18

Eduardo Dalter (Escutai o vento)






        (Escuchad el viento:
                         John Coltrane)


No quiero armonía;
       escuchad
el viento que saco entre mi lengua
       y mis dientes
y pasa cortante
       por mi saxo.
No quiero armonía;
       quiero
perforar el aire;
       quiero
rehacer el rumbo de la calle
y andar después
       grave, distante,
musitando y callando
a todo piano.

Eduardo Dalter





Não quero harmonia;
escutai
o vento que tiro entre a língua
e os dentes
e me passa cortante
pelo saxe.
Não quero harmonia;
quero
perfurar o ar;
quero
refazer o rumo da rua
e andar depois
grave, distante,
murmurando e calando,
piano, piano.

(Trad. A.M.)

.

17.8.18

Mário de Carvalho (Ó Eduarda!)






(Ó Eduarda!)



Quer-me parecer que o leitor, neste ponto, ávido de conhecimentos sobre o futuro de Joel Strosse manifesta alguma impaciência, que lha vejo na cara.

A que vem, irrita-se, esta Eduarda Galvão?

Peço-lhe serenidade e que não despegue do texto.

A literatura é coisa muito séria, onde não entra o zapping.

Eduarda tem um destino a cumprir e eu arranjarei maneira de a integrar na história, nem que tenha de fazer sair um deus duma máquina.

Por agora, traço-a assim em pinceladas rápidas, de zarcão, despachadamente, não me atardo nos pormenores, prescindo das espessuras, não me distraio com as cores e as luzes e vou muito direito à finalidade.

Mas lá que Eduarda faz falta, faz.

Depois verão.




MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)


.

16.8.18

Eduardo Chirinos (Quando a morte ronda)






CUANDO NOS RONDA LA MUERTE



Un león llorando
tras las naves incendiadas. El fuego
del incendio.
¿Qué león?,
¿qué naves incendiadas? Toda

separación es muerte: la carne
que amamos, los ojos, los cabellos,
la deseada piel. El tiempo

nos expulsa de lo que alguna
vez fue nuestro. El tiempo
incendia, el tiempo desvanece.
Y el poema dice su verdad.

Aunque nunca lo escuchamos
el poema arranca nuestros ojos

y dice en voz baja su verdad.

Eduardo Chirinos





Um leão a chorar
depois das naves incendiadas.
 O fogo do incêndio.
Que leão?
que naves incendiadas? Toda

separação é morte, a carne
que amamos, os olhos, o cabelo,
a desejada pele. O tempo

rouba-nos aquilo
que um dia foi nosso. O tempo
incendeia, o tempo desvanece.
E o poema diz sua verdade.

Mesmo que nunca o escutemos
o poema arranca-nos os olhos

e diz em voz baixa sua verdade.

(Trad. A.M.)


.

15.8.18

David González (As coisas pelo nome)





LAS COSAS POR SU NOMBRE



en primer lugar
y ya desde el principio
y por espacio de años y años
y venga años
procedieron a llenar
mi cabeza
de pájaros

que razonan encerrados
en jaulas
aprendiendo a hablar

pájaros, sí

cientos y miles y cientos
de miles
de pájaros
de todas las especies
habidas y por haber
(algunas
ya extintas)

y después
más adelante
cuando ya ni siquiera tenía
migas de pan que echarles
me pusieron en las manos
una cartuchera
y una escopeta de caza

a esto
la sociedad lo tachará
de suicidio

yo prefiero
darle otro nombre,
su verdadero nombre:

asesinato



David González

[Javier Das]





em primeiro lugar
e para começar
por anos e anos
e mais anos
andaram a encher-me
a cabeça de pássaros

que discutem encerrados
em jaulas
a aprender a falar

pássaros, sim

centos, milhares e centos
de milhares
de pássaros
de todas as espécies
havidas e por haver
(algumas
já extintas)

e depois
mais adiante
quando não tinha já sequer
migalhas de pão para atirar
meteram-me nas mãos
uma cartucheira
e uma arma de caça

a isto
a sociedade tachará
de suicídio

eu prefiro
dar-lhe outro nome,
o nome verdadeiro:

assassínio


(Trad. A.M.)

.

13.8.18

Darío Jaramillo Agudelo (Da saudade-1)






DE LA NOSTALGIA (1)



Recuerdo solamente que he olvidado el acento de las más amadas voces, 
y que perdí para siempre el olor de las frutas de la infancia,
el sabor exacto del durazno, 
el aleteo del aire frío entre los pinos,
el entusiasmo al descubrir una nuez que ha caído del nogal.
Sortilegios de otro día, que ahora son apenas letanía incolora, 
vana convocatoria que no me trae el asombro de ver un colibrí entre mi cuarto, 
como muchas madrugadas de mi infancia.
¿Cómo recuperar ciertas caricias y los más esenciales abrazos?
¿Cómo revivir la más cierta penumbra, iluminada apenas con la luz de los Beatles,
y cómo hacer que llueva la misma lluvia que veía caer a los trece años?
¿Cómo tornar al éxtasis de sol, a la luz ebria de mis siete años,
al sabor maduro de la mora, 
a todo aquel territorio desconocido por la muerte,
a esa palpitante luz de la pureza,
a todo esto que soy yo y que ya no es mío?

Darío Jaramillo Agudelo




Recordo apenas que me esqueceu o som das mais amadas vozes
e perdi para sempre o cheiro das frutas da infância,
o sabor exacto do pêssego
o bater de asas do vento por entre os pinheiros,
o entusiasmo de achar uma noz caída da nogueira.
Sortilégios de outro tempo, agora apenas litania descolorida,
apelo vão que não me traz o assombro
de ver um colibri dentro do quarto,
como às vezes de madrugada em criança.
Como recuperar certas carícias e os abraços essenciais?
Como reviver a mais certa penumbra, iluminada só pela luz dos Beatles,
como fazer que chova a mesma chuva que via cair
nos meus treze anos?
Como voltar ao êxtase do sol, à luz ébria dos sete anos,
ao sabor maduro das amoras,
a todo esse território desconhecido da morte,
à palpitante luz da pureza,
a tudo isso que eu sou, mas que já não é meu?

(Trad. A.M.)


.

12.8.18

Pablo de Rokha (Canto da fórmula estética)




CANTO DE LA FÓRMULA ESTÉTICA


1
Al poema, como al candado, es menester echarle llave; al poema, como a la flor, o a la mujer, o a la ciudad, que es la entrada del hombre; al poema, como al sexo, o al cielo.

2
Que nunca el canto se parezca a nada, ni a un hombre, ni a un alma, ni a un canto.

3
No es posible hacer el himno vivo con colores muertos, con verdades muertas, con deberes muertos, con amargo llanto humano; acciones de hombres, no, transmutaciones; que el poema devenga ser, acción, voluntad, organismo, virtudes y vicios, que constituya, que determine, que establezca su atmósfera, su atmósfera y la gran costumbre del gesto, juicio del acto; dejad, al animal nuevo la ley nueva que él cree, que él es, que él invente; asesinemos la amargura y aun la alegría, y ojalá el poema se ría solo, sin recuerdos, ojalá sin instintos.

4
¿Qué canta el canto? Nada. El canto canta, el canto canta, no como el pájaro, sino como el canto del pájaro.
   (...)


Pablo de Rokha




1
Ao poema, como ao cadeado, é preciso pôr-lhe chave; ao poema, assim como à flor, ou à mulher, ou à cidade, que é a entrada do homem; ao poema, como ao sexo, como ao céu.

2
Que nunca o canto se pareça com nada, nem um homem, uma alma, um canto sequer.

3
Não se pode compor o hino novo com cores mortas, com verdades mortas, com deveres mortos, com amargo humano pranto; actos de homens, não, transmutações; que o poema se faça ser, acção, vontade, organismo, virtude e vício, que constitua, que determine, que estabeleça sua atmosfera, sua atmosfera e o grande costume do gesto, juízo do acto; deixai, ao animal novo, a lei nova que ele criar, que ele for, que ele inventar; assassinemos a amargura, mas também a alegria, e oxalá o poema se ria só, sem recordações, queira Deus sem instintos.

4
O que canta o canto? Nada. O canto canta, o canto canta, não como o pássaro, mas sim como o canto do pássaro.
   (...)

(Trad. A.M.)



>>  El amigo piedra (blogue dedicado) / Escritores (bio) / Memoria chilena (tudo+algo) / Wikipedia


.

11.8.18

Mário de Carvalho (Ó Joel!)




(Ó Joel!)



Mas Joel não estava para conversas.

Fulminara-o um apelo no caminho de Damasco e não tinha que dar satisfações a ninguém.

Na semi-obscuridade não explodiram labaredas pirotécnicas nem ressoaram vozes divinais, mas impuseram-se, súbitas, vibrantes, imperativas, reminiscências de canções e trechos de letras mal recordadas.

E foi como (este ‘como’ não introduz metáforas, por ora, que as reservo para mais tarde, talvez dedicando-lhes meio capítulo ou um inteiro, para conferir um toque de literaridade petite-bourgeoise, muito vendável, a este texto...) a sala se enchesse de pequenas multidões juvenis, vestidas de bombazina e cabedal, que em coro, balanceando os corpos, cantassem arrebatados louvores à Revolução de Outubro, a Lenine e à Maria da Fonte.

MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)


.

10.8.18

Cysko Muñoz (A mirar-me)






MIRÁNDOME



Lleva toda la mañana
amenazando lluvia
pero aún
no ha caído ni una gota.

Los días como hoy

tan raros

me quitan el hambre

debo masticar muy bien
para no atragantarme
con mi parte de culpa.

Cysko Muñoz





Esteve toda a manhã
a ameaçar chuva
mas não caiu ainda
sequer uma gota.

Os dias assim

indecisos

tiram-me a fome

tenho de mastigar muito bem
para não me engasgar
com a minha parte da culpa.

(Trad. A.M.)

.

9.8.18

Cristina Peri Rossi (Alegria de viver)





ALEGRÍA DE VIVIR



Me levanto
con la certeza
de estar sola:
bajo a la calle
silbo un airecillo
camino contra el viento
enciendo uno de los cigarrillos
que el médico me prohibió
—Estoy sola—
tan contenta
que empiezo a echar monedas
en la máquina del bar
gáname perra,
gáname, tragaperras,
el patrón me mira satisfecho
(Ríete, estúpido, dinero
es lo único que me puedes ganar)
cuando estoy contenta
soy espléndida
tan alegre de estar sola
que enseguida me pongo a conversar
con gente que no me interesa
(Nunca sabrán cuán contenta estoy)
escucho tonterías
no me afectan: tengo alegría interior
soy generosa: digo piropos
a gente que no se los merece
¿Qué voy a hacer si estoy contenta?
Con la felicidad no se puede hacer nada
No se puede escribir poemas
No se puede hacer el amor
No se puede trabajar
No se puede ganar dinero
ni escribir artículos de periódico
La felicidad es esto:
caminar contra el viento
saludar a desconocidos
no comprar comida
(la felicidad es el alimento)
ser espléndida
como el viento gratis que limpia la ciudad
como esta llovizna repentina
que me moja la cara
me resfriaré
pero a mí qué me importa.


Cristina Peri Rossi

[Emma Gunst]




Levanto-me
com a certeza
de estar só,
desço à rua
assobio uma música
caminho contra o vento
acendo um cigarro
que o médico me proibiu
- Estou só -
tão contente
que começo a meter moedas
na máquina do bar
anda, cadela,
dá-me mais, cachorra,
o patrão olha para mim satisfeito
(Ri-te, estúpido, dinheiro
é a única coisa que me podes levar)
quando estou contente
sou o máximo
tão alegre de estar só
que a seguir me ponho a conversar
com pessoas que não me interessam
(Nunca saberão o contente que estou)
escuto disparates
não me afectam: tenho alegria interior
sou generosa: digo piropos
a pessoas que não o merecem
O que lhe vou fazer, se estou contente?
Com a felicidade não se pode fazer nada
Não se podem escrever poemas
Não se pode fazer amor
Não se pode trabalhar
Não se pode ganhar dinheiro
nem escrever artigos de jornal
A felicidade é isto,
caminhar contra o vento
cumprimentar desconhecidos
não comprar comida
(a felicidade já é alimento)
ser esplêndida
como o vento grátis que limpa a cidade
como esta chuvisca repentina
que me molha a cara
vou-me constipar
mas que me importa a mim.

(Trad. A.M.)

.

8.8.18

Eugénio de Andrade (Anunciação da alegria)






ANUNCIAÇÃO DA ALEGRIA



Devia ser verão, devia ser jovem:
ao encontro do dia caminhava
como quem entra na água.

Um corpo nu brilhava nas areias
- corpo ou pedra?, pedra ou flor?

Verde era a luz, e a espuma
do vento rolava pelas dunas.

De repente vi o mar subir a prumo,
desabar inteiro nos meus ombros.

Aprendia a falar de boca em boca,
mordendo as palavras de alegria.

Sem muros era a terra, e tudo ardia.


Eugénio de Andrade


.

7.8.18

Cristian Aliaga (Se estás no escuro)






SI TIENES OSCURIDAD



Si tienes oscuridad,
en algún lugar debe existir
la luz.
En tu lugar, los perros duermen
como algunas personas,
convencidos de que nada pasa.
Es mejor así:
la muerte llega por acumulación,
no por impacto.
Hay evidencias
de que nada pasará,
de que todo viento será en vano.

La verdadera caída es hacia arriba.

Cristian Aliaga




Se estás no escuro,
em algum lado há-de
haver luz.
No teu lugar, os cães dormem
como certas pessoas,
convencidos de que nada acontece.
Melhor assim,
a morte vem por acumulação,
não por impacto.
Há provas
de que nada vai acontecer,
de que todo o vento será em vão.

A verdadeira queda é para cima.

(Trad. A.M.)


.

6.8.18

Claudio Bertoni (Acabo de virar)






"cause I'll be back in my feet someday"
 (Ray Charles) 

acabo de dar vuelta
uno de esos bichitos negros
que aquí en Concón
siempre quedan patas para arriba.
meando un rato después
pienso en lo bueno que sería
que apareciera un dedo gigante
y me diera vuelta
a mí también. 

Claudio Bertoni





acabo de virar
um desses bichinhos negros
que aqui em Concón
ficam sempre de patas para cima,
no chão.
a seguir, urinando, ponho-me a pensar
como seria bom
aparecer um dedo gigante
que me virasse
também a mim.

(Trad. A.M.)


.

5.8.18

Agustina Bessa-Luís (Camilo dizia)






(Camilo dizia)


Camilo dizia: ‘Não quero acostumar o meu espírito a luxos de entusiasmo, que não posso sustentar-lhe’.
Nem eu.
Pelo que este assunto termina aqui. (III)



AGUSTINA BESSA-LUÍS
Fanny Owen
(1979)
.

4.8.18

Claribel Alegría (Quero ser tudo)




Quiero ser todo en el amor
el amante
la amada
el vértigo
la brisa
el agua que refleja
y esa nube blanca
vaporosa
indecisa
que nos cubre un instante.

Claribel Alegria




Quero ser tudo no amor
o amante
a amada
a vertigem
a brisa
a água que espelha
e essa nuvem branca
vaporosa
indecisa
que nos cobre um instante.


(Trad. A.M.)

.

3.8.18

Chantal Maillard (O desencanto de Quixote)





EL DESENCANTO DEL QUIJOTE

  1. Memoria del viaje


Miré al cielo. Dije
un sueño espera ser soñado.

Venía de otro sueño.
Compartido. Hermoso.
Me asfixiaba. Era tan
limpio el aire
que un grito de dolor hubiese
resplandecido.
Miré al cielo. Cogí mis armas.
Las de ellos eran otras, pero
no había diferencia:
de una verdad a otra, ¿cuánto dista?
¿Cuánta ignorancia las separa
y cuánta las designa?
Es la verdad el nombre
que damos al impulso
con que la vida quiere ser soñada.

Cogí mis armas. Atrás quedó
el hogar. Abierto, el horizonte.

Fue hace mucho tiempo. Ahora…
ahora ya no son tiempos de espejismos.
   (...)


Chantal Maillard




Olhei o céu. Disse
um sonho espera ser sonhado.

Vinha de outro sonho.
Partilhado. Belo.
Asfixiava-me. Era tão
limpo o ar
que um grito de dor teria
resplandecido.
Olhei o céu. Peguei nas armas.
As deles eram outras, mas
não havia diferença:
de uma verdade a outra, qual a distância?
Quanta ignorância as separa
e quanta as designa?
É a verdade o nome
que damos ao impulso
com que a vida quer ser sonhada.

Peguei nas armas. Deixei a casa
para trás. Aberto, o horizonte.

Foi há muito tempo. Agora...
agora não é já tempo de miragens.
   (...)

 (Trad. A.M.)

2.8.18

Erri de Luca (Encosto a fronte à tua)





Accosto la fronte alla tua, si toccano,
dico: «È una frontiera».
Fronte a fronte: frontiera,
mio scherzo desolato, ci sorridi.
Col naso ci riprovo, tocco il naso,
per una tenerezza da canile:
«E questa è una nasiera», dico
per risentire casomai
un secondo sorriso, che non c’è.
Poi tu metti la mano sulla mia
e io resto indietro di un respiro.
«E questa è una maniera», mi dici.
«Di lasciarsi?», ti chiedo. «Sì, così»

Erri de Luca




Encosto a fronte à tua e digo,
ao tocarem-se: ‘É uma fronteira’.
Fronte a fronte, fronteira,
brinco, sem graça, sorrimos.
Depois insisto, agora com o nariz,
numa meiguice canina:
‘E isto é uma narigueira’, digo,
à espera de um novo sorriso,
que não aparece.
Então, tu pões a tua mão na minha
e eu paro, a respiração suspensa.
‘E esta é uma maneira’, dizes tu.
E eu pergunto: ‘De deixar-se?’
‘Sim, assim mesmo’.

(Trad. A.M.)




.

1.8.18

César Vallejo (Beiras de gelo)





BORDAS DE HIELO



Vengo a verte pasar todos los días,
vaporcito encantado siempre lejos...
Tus ojos son dos rubios capitanes;
tu labio es un brevísimo pañuelo
rojo que ondea ¡en un adiós de sangre!

Vengo a verte pasar; hasta que un día,
embriagada de tiempo y de crueldad,
vaporcito encantado siempre lejos,
¡la estrella de la tarde partirá!

Las jarcias; vientos que traicionan;
¡vientos de mujer que pasó!
Tus fríos capitanes darán orden;
¡y quien habrá partido seré yo...!


César Vallejo




Venho todos os dias ver-te passar,
vaporzinho encantado sempre longe...
Teus olhos são dois loiros capitães,
teu lábio um brevíssimo lenço
encarnado a ondular num adeus de sangue!

Venho ver-te passar, até que um dia,
embriagada de tempo e crueldade,
vaporzinho encantado sempre longe,
a estrela da tarde partirá.

Os aparelhos, ventos traiçoeiros,
ventos de mulher que passou!
Teus frios capitães darão a ordem
e quem terá partido serei eu!...

(Trad. A.M.)


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