(Janela)
Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem
com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos,
vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta
de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da
noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela,
virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço;
voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte,
nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela
face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios;
abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança
remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca
aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao
longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo
de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de
criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e
pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já
perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara
ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da
janela e beber alegremente das goteiras.
Agora não. (XII)
CARLOS DE OLIVEIRA
Uma Abelha na Chuva
(1953)
Uma Abelha na Chuva
(1953)
.