17.3.18

Ana Margarida de Carvalho (A verdade magoa)




(A verdade magoa)


Nunca sabemos o que sabemos, onde começa a nossa recordação e acaba a dos outros, o que lembramos hoje é sempre o que da última vez lembrámos, são falsas todas as memórias.

E tudo se mistura, um sonho, um facto, uma recordação, vários pontos acrescentados que formam uma constelação defeituosa – tudo feito da mesma matéria, uma esponja, cheia de lapsos e interstícios, e às vezes quando se espreme sai uma gota a custo, outras, um jorro torrencial.

Eugénia não era pessoa de andar a pesar ovos de mosca em balança de aranha.

Entre a verdade e a verosimilhança, escolhia sem hesitar a verosimilhança.

Entre o que ocorrera e o que poderia ter ocorrido, optava pela segunda hipótese, tendo em conta que o excepcional encontra mais fácil e acolhedora morada na realidade do que na ficção, em que muito rapidamente ruem os alicerces do precário abrigo do que é apenas verosímil.

Além do mais, não valia a pena ocultar: a verdade magoa.

A verdade pode muito bem estar enganada.

É só uma questão de tempo.

E de a manter avisada.


ANA MARGARIDA CARVALHO
Que importa a fúria do mar
(2013)


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