(A verdade magoa)
Nunca sabemos o que sabemos, onde começa a nossa recordação
e acaba a dos outros, o que lembramos hoje é sempre o que da última vez
lembrámos, são falsas todas as memórias.
E tudo se mistura, um sonho, um facto, uma recordação, vários
pontos acrescentados que formam uma constelação defeituosa – tudo feito da
mesma matéria, uma esponja, cheia de lapsos e interstícios, e às vezes quando
se espreme sai uma gota a custo, outras, um jorro torrencial.
Eugénia não era pessoa de andar a pesar ovos de mosca em
balança de aranha.
Entre a verdade e a verosimilhança, escolhia sem hesitar a
verosimilhança.
Entre o que ocorrera e o que poderia ter ocorrido, optava
pela segunda hipótese, tendo em conta que o excepcional encontra mais fácil e
acolhedora morada na realidade do que na ficção, em que muito rapidamente ruem
os alicerces do precário abrigo do que é apenas verosímil.
Além do mais, não valia a pena ocultar: a verdade magoa.
A verdade pode muito bem estar enganada.
É só uma questão de tempo.
E de a manter avisada.
ANA MARGARIDA CARVALHO
Que importa a fúria do mar
(2013)
Que importa a fúria do mar
(2013)
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