Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas de furriéis.
Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, construí Jerônimos de paus de fósforo admirados pelas escleróticas amarelas dos paraquedistas com hepatite.
Em Elvas, à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato, desejei evaporar- me nas muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de exílio feita de quadros abstrato e de poemas concretos, a que o Diário de Notícias da Casa de Portugal forneceria o lastro lusitano de anúncios de casamento castos como notários hipermétropes, e de missas do sétimo dia adoçadas pelo sorriso sem carne dos mortos.
E em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas bichas de soldados a caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando de felicidade assassina.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Os cus de Judas
(1979)
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