30.4.10

Vicente Gallego (O que requeiro ao dia)






LO QUE AL DÍA LE PIDO




Lo que al día le pido ya no es
que me cumpla los sueños, que me entregue
los deseos cumplidos de otros días,
porque al fin he aprendido que los sueños
son igual que las alas de un insecto
y al tocarlos el hombre se deshacen;
y es que un sueño al cumplirse es otra cosa
que no ayuda a volar.
Lo que al día le pido es ese sueño
que al rozarlo se parta en otros sueños
lo mismo que una bola de mercurio,
y que brille muy lejos de mis manos.
Lo que al día le pido empieza a ser
más difícil incluso de alcanzar
que los sueños cumplidos, porque exige
la fe antigua en los sueños.
Lo que al día le pido es solamente
un poco de esperanza, esa forma modesta
de la felicidad.



Vicente Gallego







O que requeiro ao dia não é já
que realize os meus sonhos, ou me dê
os desejos realizados dos outros dias,
porque aprendi afinal que os sonhos
são como as asas de um insecto,
que se desfazem quando o homem lhes toca;
aliás, um sonho ao realizar-se é já outra coisa,
que não ajuda a voar.
O que requeiro ao dia é aquele sonho
que ao tocar-lhe se parta em outros sonhos,
tal como um bola de mercúrio,
e brilhe longe das minhas mãos.
O que requeiro ao dia começa a ser
inclusive mais difícil de alcançar
do que os sonhos realizados, porque exige
a fé antiga nos sonhos.
O que requeiro ao dia é apenas
um pouco de esperança,
essa forma modesta de felicidade.



(Trad. A.M.)

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João Miguel Fernandes Jorge (Primeiro poema de Naxos)






PRIMEIRO POEMA DE NAXOS





Em Naxos sobre os meus dedos caiu a sombra.
Ergueste muito alto o meu incerto tempo.
Finita atenção à minha volta.
Em Naxos, as dunas sob o vento, eu sei
tudo aqui é possível.
As casas mal iluminadas. A música que sei
estar num quarto
o nome mudado sem qualquer necessidade de
mudar. Um pequeno quarto em Naxos.


Entro numa rua. Bem podia ser Óbidos, se
Óbidos fosse uma ilha
e se tivesse menos sardinheiras nas janelas.
Entro numa rua incerto nos meus anos
o meu nome escrito há muito muito tempo.
Em Naxos
enumerei o meu prazer os olhos e a vida.


O verão é uma coisa imóvel
e a vida tão quieta
nem um vulcão temeria alterá-la memória
de um derradeiro arbusto que
a Naxos pertence. Mas em Naxos não
existe nada
as ruas os astros os barcos
são a a minha cabeça o agitado sono onde quem
constrói constrói de novo.



João Miguel Fernandes Jorge

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29.4.10

Hilda Hilst (Prelúdios intensos)






PRELÚDIOS INTENSOS PARA OS DESMEMORIADOS DO AMOR



I

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.



Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.



Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.



Hilda Hilst

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Silvia Ugidos (Circe esgrime um argumento)






CIRCE ESGRIME UN ARGUMENTO




Si regresas, Ulises,
encontrarás allí en Ítaca una mujer cobarde:
Penélope ojerosa
que afanosa y sin saberlo
le teje y le desteje una mortaja
al amor. Ella pretende
aferrarse y aferraros a lo eterno.
Si regresas
hacia un destino más infame aún
que este que yo te ofrezco
avanzas si vuelves a su encuentro.
Más enemigo del amor y de la vida
que mis venenos
es vuestro matrimonio, vil encierro.


Quédate, Ulises: sé un cerdo.



Silvia Ugidos






Se voltares, Ulisses,
vais encontrar em Ìtaca uma mulher cobarde:
Penélope olheirenta
que afanosa e sem o saber
tece e destece uma mortalha
para o amor. Pretende
agarrar-se e agarrar-vos ao eterno.
Se voltares
para um destino mais infame ainda
que este que eu te ofereço
teu fim aproximas retornando ao seu encontro.
Mais inimigo do amor e da vida
que meus venenos
é esse matrimónio, vil clausura.


Fica, Ulisses: antes porco.


(Trad. A.M.)

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28.4.10

Olhar (74)








Itapuã - Ba

(Brasil)

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Florbela Espanca (Realidade)






REALIDADE




Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...


Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra de um caminho...


Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...


Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...



FLORBELA ESPANCA
Charneca em Flor
(1930)

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27.4.10

Rosario Castellanos (Desterro)






DESTIERRO



Hablábamos la lengua
de los dioses, pero era también nuestro silencio
igual al de las piedras.
Éramos el abrazo de amor en que se unían
el cielo con la tierra.


No, no estábamos solos.
Sabíamos el linaje de cada uno
y los nombres de todos.
Ay, y nos encontrábamos como las muchas ramas
de la ceiba se encuentran en el tronco.

No era como ahora
que parecemos aventadas nubes
o dispersadas hojas.
Estábamos entonces cerca, apretados, juntos.
No era como ahora.


Rosario Castellanos





Falávamos a língua
dos deuses, mas também nosso silêncio
era igual ao das pedras.
Éramos o abraço de amor
em que se uniam céu e terra.

Não, não estávamos sós.
Sabíamos a linhagem de cada um
e os nomes de todos.
Ai, e encontrávamo-nos como se encontram
no tronco os muitos ramos da árvore.

Não era como agora
que parecemos arremessadas nuvens
ou folhas dispersas.
Estávamos perto então, chegados, juntos.
Não era como agora.


(Trad. A.M.)

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Fernando Pessoa (A Europa jaz)






A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.


O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,


A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.


O rosto com que fita é Portugal.



FERNANDO PESSOA
Mensagem


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26.4.10

Camilo Castelo Branco (Retaliava descaridosamente)







Afora este incidente, as boninas da vida campestre floriam imarcessíveis para o homem de bem, raro exemplo de compostura; salvo quando lhe beliscavam a estirpe, que então, como já disse, retaliava descaridosamente, e revelava a quebra contingente de todo o homem imperfeito de sua natureza.

Isto criou-lhe inimigos; mas detraidores de sua fidelidade marital nenhum tentou infamar-lhe o bom nome.

Das virtudes conjugais de Teodora até me treme a pena somente de escrever isto para encarecê-las!

Duvide-se da pureza das onze mil virgens, antes de maliciar suspeitas daquela matrona, em tudo romana, do puro estofo das Cornélias, Pônias e Arrias (mais feia, em todo o caso, do que pede a razão que seja uma senhora honesta).



- CAMILO CASTELO BRANCO, A queda dum anjo (X – O coração do homem).

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Rosana Acquaroni (Caminhar)






CAMINAR



Caminar

despojarse del camino trazado

Ser tenaz caminante
del abismo

abrir con cada paso
un nuevo acantilado

Una senda perenne
que borre los caminos.



Rosana Acquaroni






Caminhar

despojar-se do caminho traçado

Ser tenaz caminhante
do abismo

abrir com cada passo
uma nova escarpa

Uma senda perene
que apague os caminhos


(Trad. A.M.)

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25.4.10

Eugénio de Andrade (O sorriso)






O SORRISO




Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.



EUGÉNIO DE ANDRADE
O outro nome da terra



[Fundação Eugénio A.]


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24.4.10

Carlos Drummond de Andrade (Um boi vê os homens)







UM BOI VÊ OS HOMENS





Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Claro Enigma
(1951)

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Roque Dalton (O cínico)






EL CÍNICO




Claro es que no tengo en las manos
el derecho a morirme
ni siquiera en las abandonadas tardes de los domingos.


Por otra parte se debe comprender que la muerte
es una manufactura inoficiosa
y que los suicidas
siempre tuvieron una mortal pereza
de sufrir.


Además, debo
la cuenta de la luz…



Roque Dalton






É claro que não tenho na mão
o direito de morrer
nem mesmo nas abandonadas tardes de domingo.


Aliás, deve compreender-se que a morte
é uma manufactura inoficiosa
e que os suicidas
tiveram sempre uma preguiça mortal
de sofrer.


Além disso, estou a dever
a conta da luz...


(Trad. A.M.)

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22.4.10

Roberto Juarroz (Penso que neste momento)






Pienso que en este momento
tal vez nadie en el universo piensa en mí,
que solo yo me pienso,
y si ahora muriese,
nadie, ni yo, me pensaría.


Y aquí empieza el abismo,
como cuando me duermo.
Soy mi propio sostén y me lo quito.
Contribuyo a tapizar de ausencia todo.


Tal vez sea por esto
que pensar en un hombre
se parece a salvarlo.



Roberto Juarroz






Penso que neste momento
ninguém acaso no mundo pensa em mim,
que só eu me penso
e se agora morresse
ninguém, nem eu, me pensaria.


E aqui começa o abismo,
como quando adormeço.
Sou o meu próprio apoio e tiro-mo.
Contribuo para forrar tudo de ausência.


Será talvez por isto
que pensar num homem
é assim como salvá-lo.


(Trad. A.M.)

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Alexandre O'Neill (Poema pouco original do medo)






POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO




O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos


O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles


Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados


Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos Sim
a ratos


Alexandre O’Neill

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21.4.10

Alda Merini (Aos jovens)






AI GIOVANI




Bella ridente e giovane
con il tuo ventre scoperto,
e una medaglia d'oro
sull'ombelico,
mi dici che fai l'amore ogni giorno
e sei felice e io penso che il tuo ventre
è vergine mentre il mio
è un groviglio di vipere
che voi chiamate poesia
ed è soltanto tutto l'amore
che non ho avuto
vedendoti io ho maledetto
la sorte di essere un poeta.



Alda Merini








Ó bela sorridente e jovem
de barriga à mostra
e com uma medalha de oiro
no umbigo,
diz-me que fazes amor todos os dias
e és feliz, que eu penso que teu ventre
é virgem enquanto o meu
é um ninho de víboras,
o que vós chamais poesia
e é apenas todo o amor
que me faltou
ao ver-te eu maldigo
o destino de ser poeta.


(Trad. A.M.)

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Pedro Salinas (Ontem beijei-te nos lábios)






Ayer te besé en los labios.
Te besé en los labios. Densos,
rojos. Fue un beso tan corto,
que duró más que un relámpago,
que un milagro, más. El tiempo
después de dártelo
no lo quise para nada ya,
para nada
lo había querido antes.
Se empezó, se acabó en él.
Hoy estoy besando un beso;
estoy solo con mis labios.
Los pongo
no en tu boca, no, ya no...
-¿Adónde se me ha escapado?-.
Los pongo
en el beso que te di
ayer, en las bocas juntas
del beso que se besaron.
Y dura este beso más
que el silencio, que la luz.
Porque ya no es una carne
ni una boca lo que beso,
que se escapa, que me huye.
No.
Te estoy besando más lejos.



Pedro Salinas








Ontem beijei-te nos lábios.
Nos lábios. Densos,
vermelhos. Um beijo tão curto,
que durou mais que um relâmpago,
que um milagre, mais. O tempo
depois de to dar
já o não quis para nada,
antes para nada o quisera.
Começou e acabou nele.
Hoje estou beijando um beijo;
estou só com meus lábios.
Ponho-os
não em tua boca, não, já não...
- Aonde me fugiu? –
Ponho-os
no beijo que te dei
ontem, nas bocas juntas
do beijo que se beijaram.
E dura este beijo mais
que o silêncio, que a luz.
Porque não é já uma carne
nem uma boca o que beijo,
que se escapa, que me foge.
Não.
Estou-te beijando mais longe.


(Trad. A.M.)

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Alberto Nessi (Litania da erva)






LITANIA DELL’ERBA




L’erba che cresce tra le pieghe
dell’asfalto
l’erba che cura le piaghe

l’erba comune che punge
sulle scarpate
nido d’ombra d’estate

l’erba della siepe
dove guizza il ramarro
l’erba di maggio

l’erba tra i binari
e le traversine
l’erba dei ferrovieri

l’erba che nasce dalle nebbie
basse di novembre
l’erba di sempre

l’erba amara
sotto la scarpa della vecchia
l’erba miseria

l’erba di giugno che suona
sulle labbra del bambino
l’erba che trema

l’erba forte piegata
dal vento
l’erba d’argento

l’erba che non ha nome
l’erba che ha tanti nomi
che non ricordo

l’erba di tutte le ore
l’erba che non muore.



Alberto Nessi






A erva que cresce nas pregas
do asfalto
a erva que cura as chagas

a erva vulgar que pica
nas encostas
nicho de sombra estival

a erva da sebe
onde desliza o lagarto
a erva de Maio

a erva entre as linhas
e as travessas
a erva das ferrovias

a erva que nasce das névoas
baixas de Novembro
a erva de sempre

a erva amarga
sob as galochas da velha
a erva miséria

a erva de Junho assobiando
nos lábios da criança
a erva a tremer

a erva robusta
dobrada pelo vento
a erva de prata

a erva sem nome
a erva de tantos nomes
que nem me lembram

a erva de todas as horas
a erva que não morre.


(Trad. A.M.)

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20.4.10

Camilo Castelo Branco (Todos ressabem a ervilhaca)






O morgado acrescentava:

- Não sei, por ora, de qual dos lados da câmara se fala pior a língua pátria.

Tenho ouvido os quinhentistas à la moda, e os galiparlas.

Todos ressabem a ervilhaca; uns estão gafados de francesia, outros tresandam nos seus dizeres a bafio que os bons seiscentos rejeitaram.

Carecem de cunho nacional estes homens.

O mau português principia a sê-o, desde que mareia a pureza de sua língua.

Dêem-me portugueses de língua, e eu me bandearei com eles, como com portugueses de coração.

Com aquele Doutor Libório do Porto nem para o céu.

Tenho medo que Deus o não entenda, e nos ponha ambos fora de cambulhada.



- CAMILO CASTELO BRANCO, A queda dum anjo (IX – O doutor do Porto).

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Pablo Neruda (À noite, amada)






De noche, amada, amarra tu corazón al mío
y que ellos en el sueño derroten las tinieblas
como un doble tambor combatiendo en el bosque
contra el espeso muro de las hojas mojadas.


Nocturna travesía, brasa negra del sueño
interceptando el hilo de las uvas terrestres
con la puntualidad de un tren descabellado
que sombra y piedras frías sin cesar arrastrara.


Por eso, amor, amárrame al movimiento puro,
a la tenacidad que en tu pecho golpea
con las alas de un cisne sumergido,


para que a las preguntas estrelladas del cielo
responda nuestro sueño con una sola llave,
con una sola puerta cerrada por la sombra.


Pablo Neruda



[Corte na Aldeia]







À noite, amada, amarra ao meu teu coração
e que ambos no sonho derrotem as trevas
como um duplo tambor combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.


Nocturna travessia, brasa negra do sonho
interceptando o fio das uvas terrestres
com a pontualidade dum trem descabelado
arrastado pela sombra e pelas pedras frias.


Por isso, amor, amarra-me ao puro movimento
à tenacidade que em teu peito se bate
com as asas de um cisne submerso,


para que às perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma chave só,
com uma só porta fechada pela sombra.


(Trad. A.M.)


>>  Gato Pingado (Outra versão)

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19.4.10

A.M.Pires Cabral (Uma criança)






Uma criança
aproxima-se e diz: É só um velho,
e sai a correr desapontada.


Esperaria acaso
que fosse uma vida mais recente
colhida antes do tempo?


Não foi pois a morte
que, riscando
o cristal da sua infância,
a pôs em fuga:
foi a velhice abatida.


Faz a sua diferença,
parecendo que não.



A.M. Pires Cabral

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Vinicius de Moraes (Poema de Natal)






POEMA DE NATAL



Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.


Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.


Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.


Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.



Vinicius de Moraes

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18.4.10

Pablo García Casado (Poema de Jane)






EL POEMA DE JANE



él me enseñó a beber a pasar largas temporadas
en la cama a provocar la ira del vecindario a no sentir
en demasiadas cosas ningún tipo de vergüenza


con él también aprendí los gritos el miedo los fracasos
el olor a colonia de otros cuerpos y una frase:
cualquier forma de amor conlleva desperdicio


después de luis no me supo tan amarga la cerveza



PABLO GARCÍA CASADO
Las Afueras
(1997)






ele ensinou-me a beber a passar longas temporadas
na cama a provocar a ira da vizinhança a não sentir
em muitas coisas qualquer tipo de vergonha


com ele aprendi também os gritos o medo os fracassos
o cheiro de colónia de outros corpos e uma frase:
qualquer forma de amor implica desperdício


depois de luís não me parece tão amarga a cerveja


(Trad. A.M.)

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Sophia de Mello Breyner Andresen (Ausência)






AUSÊNCIA




Num deserto sem água
numa noite sem lua
num país sem nome
ou numa terra nua



Por maior que seja o desespero
nenhuma ausência é
mais funda do que a tua



Sophia de Mello Breyner Andresen


.

17.4.10

Olhar (73)








(Gente)

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Octavio Paz (Dizer, fazer)






DECIR, HACER




Entre lo que veo y digo,
Entre lo que digo y callo,
Entre lo que callo y sueño,
Entre lo que sueño y olvido
La poesía.
Se desliza entre el sí y el no:
dice
lo que callo,
calla
lo que digo,
sueña
lo que olvido.
No es un decir:
es un hacer.
Es un hacer
que es un decir.
La poesía
se dice y se oye:
es real.
Y apenas digo
es real,
se disipa.
¿Así es más real?
Idea palpable,
palabra
impalpable:
la poesía
va y viene
entre lo que es
y lo que no es.
Teje reflejos
y los desteje.
La poesía
siembra ojos en las páginas,
siembra palabras en los ojos.
Los ojos hablan,
las palabras miran,
las miradas piensan.
Oír
los pensamientos,
ver
lo que decimos,
tocar
el cuerpo
de la idea.
Los ojos
se cierran.
Las palabras se abren.



Octavio Paz







Entre o que vejo e digo,
Entre o que digo e calo,
Entre o que calo e sonho,
Entre o que sonho e olvido
A poesia.
Desliza entre o sim e o não:
diz
o que calo,
cala
o que digo,
sonha
o que olvido.
Não é um dizer,
mas um fazer.
Um fazer
que é um dizer.
A poesia
diz-se e ouve-se,
é real.
E mal eu digo
é real,
dissipa-se.
É mais real assim?
Ideia palpável,
verbo
impalpável,
a poesia
vai e vem
entre o que é
e o que não é.
Tece reflexos
e destece.
A poesia
semeia olhos na página,
semeia palavras nos olhos.
Os olhos falam,
as palavras olham,
os olhares pensam.
Ouvir
o pensamento,
ver
o que dizemos,
tocar
o corpo
da ideia.
Os olhos
fecham-se.
Abrem-se as palavras.


(Trad. A.M.)

.

16.4.10

Um verso (76)













Um verso de Nava
(novo aqui):





A pele é o espelho da memória.





Luís Miguel Nava

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Ruy Belo (Povoamento)






POVOAMENTO




No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera



RUY BELO
Aquele Grande Rio Eufrates


.

15.4.10

Nuria Mezquita (Canção de amor)







CANCIÓN DE AMOR




“Entonces yo darée la meedia vuelta.
Me irée con el sol cuaando muera la tarde...”
pero que conste que la tarde no se muere,
siempre la asesina la noche,
y yo le presto el cuchillo.



Nuria Mezquita






“Então darei meeia-volta.
E hei-de partir com o sol, quaando a tarde morrer...”
conste porém que a tarde não morre,
é a noite que a mata,
e eu empresto-lhe a faca.


(Trad. A.M.)

.

Rui Pires Cabral (Gnossienne n.º 1)






GNOSSIENNE Nº 1




Eu acreditei que podia amar
o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração
nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite
sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar
essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos
mas crescias fora de alcance no teu próprio
pensamento. Uma distância que só serviria
aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas.


Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio
em que me mantinhas era mais urgente
que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo
mas eu perdia sempre alguma coisa
quando te ganhava. Às vezes era só
a minha vontade, outras vezes era toda a frase
do meu nome.



Rui Pires Cabral

.

14.4.10

Ver (41)






[Hermann]

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Miriam Reyes (Amo este homem misógino)






Amo a este hombre misógino.
Deseo su sexo descarado que pasea de aquí para allá
que entra donde como y cuando él lo desea
vomita su odio en mí y se va.
Yo, maravillosa artesana,
hago de su asco mi mejor creación:
una réplica suya mejorada.
Del vómito incubado en el más repugnante de los seres
nacerá la criatura que lo iguale en fuerza
y sea capaz de destruirlo por envidia
como yo no pude hacerlo por amor.


Miriam Reyes







Amo este homem misógino.
Desejo seu sexo descarado, sempre a passear
de um lado para outro,
que entra onde, como e quando lhe apetece,
vomita seu ódio em mim e vai embora.
Eu, artesã maravilha,
faço de seu asco a melhor criação,
uma réplica sua melhorada.
Do vómito incubado no mais repugnante dos seres
nascerá a criatura que o iguale em força
e seja capaz de o destruir por inveja,
já que eu não posso fazê-lo por amor.


(Trad. A.M.)



>>  Miriam Reyes (sítio oficial: antologia, etc)  /  Antonio Miranda (6p-bilingue)  /  Ciudad del Hombre (entrevista)

.

13.4.10

Rui Knopfli (Baldio)






BALDIO



O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras aos galagalas
e salta sobre as velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.



Rui Knopfli

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Camilo Castelo Branco (Legitimista quieto)






Em suma, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de empecer a roda do progresso, contanto que ele não lhe entrasse em casa, nem o quisesse levar consigo.

Prova cabal de sua tolerância foi ele aceitar em 1840 a presidência municipal de Miranda.

Na primeira sessão camarária falou de feitio e jeito que os ouvintes cuidavam estar escutando um alcaide do século XV levantado do seu jazigo da catedral.

Queria ele que se restaurassem as leis do foral dado a Miranda pelo monarca fundador.

Este requerimento gelou de espanto os vereadores; destes, os que puderam degelar-se riram na cara do seu presidente, e emendaram a galhofa dizendo que a humanidade havia já caminhado sete séculos depois que Miranda tivera foral.



- CAMILO CASTELO BRANCO, A queda dum anjo (I - O herói do conto).

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12.4.10

Nicanor Parra (A poesia)






A POESIA
MORRERÁ
SE NÃO
A
OFENDERMOS


temos
que possuí-la
e humilhá-la em público


depois veremos
o que fazer



Nicanor Parra


(Trad. A.M.)

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Carlos de Oliveira (Elegia em chamas)






ELEGIA EM CHAMAS




Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:


Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.



CARLOS DE OLIVEIRA
Terra de Harmonia



[O tempo das cerejas]


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11.4.10

Rosa Alice Branco (Arte poética)






ARTE POÉTICA





Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.



O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?



Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.



Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.



O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!




ROSA ALICE BRANCO
Soletrar o Dia. Obra Poética
(Quasi, 2002)

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