7.3.18

Ana Margarida de Carvalho (Partida)






(Partida)


É um clássico da descrição dos dias das partidas.

Diz-se que estava um dia de chuva oblíqua que fazia os homens vergarem a cabeça e caminharem com o tronco inclinado, ombros alçados, a protegerem o pescoço.

Ou então que estava uma bela e radiosa manhã que contrastava com o negrume envergado pela alma.

Ou então um dia abafado, com nuvens baixas e pastosas, que rimava com o clima de opressão que se abatia sobre os desterrados.

No dia em que Joaquim embarcou no navio Luanda no Cais da Rocha do Conde de Óbidos estava apenas um dia.

Os cais são saudades de pedra, diz-se, e estava deserto nessa manhã (afinal sempre se anuncia o estado ainda matinal desse dia – é inevitável).

Ninguém fala, as palavras são ingratas para uma ocasião em que a irreversibilidade de uma ida sem volta é a hipótese mais consistente.

As palavras arranham a garganta de quem as diz, poluem os ouvidos de quem as ouve.

Como num funeral.

De maneira que iam calados os homens e em fila indiana, a subirem o passadiço para o navio.

Sem qualquer banda sonora intradiegética, a não ser as vozes de comando e os miados das gaivotas.

Parece que, para além do intercâmbio vocabular, estas ensinam felinos a voar.

Mas chega de preambular, que vão pesarosos os homens, é caso para isso, e há, de súbito, um grito de mulher que não constava do guião. (11)


ANA MARGARIDA CARVALHO

Que importa a fúria do mar
(2013)


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