29.9.12

Pedro A. González Moreno (Vinho turvo)






EL VINO TURBIO
 

No el vino que bebemos
para seguir creyendo, ni tampoco
el que piadosamente nos acoge
en agrias noches de taberna y frío;
ni aquel que con su roce sarmentoso
nos acaricia, ni
el que nos da su voz como en racimos
recién maduros: ese
vino que algunas veces pudo llamarse Claudio.
 

Hablo sólo del vino
que deja cicatrices;
no el que bebemos: ése que nos bebe,
cuya turbia gramática
siempre nos deja entre los labios
los más oscuros nombres
de la sed.


Pedro A. González Moreno

  
Não o vinho que bebemos
para continuar a crer, nem
o que piedosamente nos acolhe
em amargas noites de taberna e frio;
nem aquele que nos afaga
com seu toque de cortiça, nem
o que nos dá voz como em cachos
recém-maduros: esse
vinho que às vezes podia chamar-se Claudio.

Falo só do vinho
que deixa cicatrizes,
não o que bebemos, mas aquele que nos bebe,
cuja turva gramática
nos deixa nos lábios
os nomes mais obscuros
da sede.

(Trad. A.M.)
 
>>  Las afinidades electivas (4p) / Poesia del toro de barro (4p) / UCM (biblio) / Manuel Lopez Azorín (resenha ‘Anaqueles sin dueño’) / Manuel Lopez Azorín (resenha ‘Calendario de sombras’)
.

28.9.12

Ver (114)







Ángel González
Camilo José Cela
Enrique Vila-Matas


(Daniel Mordzinski)


.


Hugo Gutiérrez Vega (Um corpo tal uma ilha)






UN CUERPO COMO UNA ISLA




Por las arduas colinas de tu cuerpo
van mis ojos desnudos contemplando
los tersos panoramas, precipicios
y el bosque primordial que mi deseo
exalta en la constante ceremonia
de mirarte, llamarte desde el fondo del ser,
de contemplarte como se ven los campos en otoño
o las vertiginosas catedrales erguidas en la niebla
y entrevistas en la región sin nombre de la aurora.
Eres como una isla, te rodeo
y me ajusto a tus formas.
Me impide hacerles modificaciones
el antiguo temor de hacerte daño.
Por eso me mantengo en tus orillas
y tierra adentro sólo van mis ojos.


Hugo Gutiérrez Vega





Pelas árduas colinas do teu corpo
passeio os olhos a contemplar
as claras vistas, precipícios
e o bosque primordial que meu desejo
exalta na cerimónia constante
de te olhar, de chamar-te do fundo do ser,
de contemplar-te como aos campos no Outono
ou às catedrais erguidas na névoa,
no país sem nome da aurora.
És uma ilha, e eu rodeio-te
e ajusto-me às tuas formas.
O temor antigo de te fazer mal
impede-me de fazer modificações.
Por isso me mantenho nas tuas margens
e terra adentro vão só meus olhos.


(Trad. A.M.)

.


27.9.12

Manuel António Pina (Sob escombros)





SOB ESCOMBROS

 
Um tempo houve em que,
de tão próximo, quase podias ouvir
o silêncio do mundo pulsando
onde também tu eras mundo, coisa pulsante.

Extinguiu-se esse canto
não na morte
mas na vida excluída
da clarividência da infância

e de tudo o que pulsa,
fins e começos,
e corrompida pela estridência
e pela heterogeneidade.

Agora respondes por nomes supostos,
habitante de países hábeis e reais,
e precisas de ajuda para as coisas mais simples,
o pensamento, o sofrimento, a solidão.

A música, só voltarás a escutá-la
numa noite lívida,
uma noite mais vulnerável do que todas
(o presente desvanecendo-se, o passado cada vez mais lento)
um pouco antes de adormeceres
sob escombros.


Manuel António Pina


 
.

26.9.12

Miriam Reyes (Apegamo-nos demasiado)


 
 
 
 
Nos apegamos demasiado a los hombres
esas criaturas bidimensionales e inocentes
a su piel
adherente como una tela de araña.
 

Me quedaría allí hasta que no dejase nada de mí.
Nada.
 

Hasta que empezamos a pesarles
como si de pronto engordásemos.
Entonces nos preguntamos
qué pasó y
cuándo.
Inevitablemente nos ponemos
éticas patéticas pelenpenpéticas
pesadas peludas pelenpenpudas
nos salen canas arrugas
caries estrías verrugas
la sangre no circula.
Nos explotan por dentro.
Se llevan nuestra piel pegada a tiras
y en sus manos algún órgano fácil de vender.
 

En realidad no saben lo que hacen
sólo quieren liberarse de la carga.

 
 Miriam Reyes

 
 

 

 
Apegamo-nos demasiado aos homens
essas criaturas inocentes, bidimensionais,
à sua pele
adesiva como teia de aranha.
 

Eu ficaria ali até não deixar nada de mim.
Nada.
 

Até que começamos a pesar-lhes
como se engordássemos de repente.
Então interrogamo-nos
o que é que aconteceu
e quando.
Inevitavelmente fazemo-nos
éticas patéticas pelempenpéticas
pesadas cabeludas pelempenpudas
aparecem-nos cãs e rugas
cáries estrias verrugas
o sangue não circula.
Exploram-nos por dentro.
Levam-nos a pele colada às tiras
e nas mãos algum órgão fácil de vender.
 

Na verdade não sabem o que fazem
querem só é  livrar-se da carga.

  
(Trad. A.M.)

25.9.12

Almeida Garrett (Mas basta de vale)






Mas basta de vale, que é tarde.  

Oh lá! venham as mulinhas e montemos.  

Picar para Santarém, que no ínclito alcácer de el-rei D. Afonso Henriques nos espera um bom jantar de amigo — e não é só a vaca e riso de Fr. Bartolomeu dos Mártires, mas um verdadeiro jantar de amigo, muito menos austero e muito mais risonho.

 — «Porquê? já se acabou a história de Carlos e de Joaninha?» diz talvez a amável leitora. 

— «Não, minha senhora» responde o autor mui lisonjeado da pergunta: «não, minha senhora, a história não acabou, quase se pode dizer que ainda ela agora começa: mas houve mutação de cena. Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo acto.»
 

 
- ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, XXVI.

 .
 
 

Luis Cernuda (Peregrino)





PEREGRINO

 


¿Volver? Vuelva el que tenga,
tras largos años, tras un largo viaje,
cansancio del camino y la codicia
de su tierra, su casa, sus amigos,
del amor que al regreso fiel le espere.


Mas ¿tú? ¿volver? Regresar no piensas,
sino seguir libre adelante,
disponible por siempre, mozo o viejo,
sin hijo que te busque, como a Ulises,
sin Itaca que aguarde y sin Penélope.


Sigue, sigue adelante y no regreses,
fiel hasta el fin del camino y tu vida,
no eches de menos un destino más fácil,
tus pies sobre la tierra antes no hollada,
tus ojos frente a lo antes nunca visto.


Luis Cernuda
 

 
 

 
Voltar? Volte quem tenha,
após longos anos, uma longa viagem,
fadiga do caminho e a cobiça
da sua terra, da casa, dos amigos,
do amor que fiel o espere na volta.
 

Mas tu, voltar? Regressar não pensas,
antes seguir livremente avante,
disponível sempre, moço ou velho,
sem filho que te busque, como a Ulisses,
sem Ítaca que aguarde e sem Penélope. 
 

Segue, segue em frente e não regresses,
fiel até ao fim do caminho e da vida,
não lamentes a falta dum destino mais fácil,
teus pés sobre a terra nunca antes pisada,
teus olhos diante do antes nunca visto.

 
(Trad. A.M.)

 

> Outra versão: Bizarrias e minudências (R.M.)
 
.
 
 

24.9.12

Ferreira Gullar (Traduzir-se)






TRADUZIR-SE

 


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

 
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

 
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
 

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

 
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

 
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.


Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão de vida ou morte -
será arte?

 

Ferreira Gullar

 

23.9.12

Luis Antonio de Villena (O fauno do parque)





EL FAUNO DEL PARQUE




¡Qué extraño el joven fauno que grita
su hermosura! Al viento el brazo aleve,
como agitando un tirso de flores y de espuma
parece que te mira o te habla o te invita.
Su cuerpo es una danza extática y curva,
su cabello es suave como tarde en un río,
hay una flor extraña prendida en su cintura
y un mudo deseo que hiere en sus pupilas.
¿Qué raro fuego guarda el fauno entre los labios?
Parece de su brazo desprenderse un perfume,
mientras en sangre eterna vence al polvo del aire.
Ideal como la dócil cauda de la tarde,
el joven semidiós triunfa del viandante.
Barro o mármol es oro y amor, solitario, en el parque.



Luis Antonio de Villena






Que estranho o fauno jovem gritando
a sua beleza! Ao vento o braço ligeiro,
como se brandisse um ramo de flores e de espuma
parece que te olha ou te fala ou convida.
Seu corpo é uma dança estática e curva,
seu cabelo suave como tarde à beira rio,
há uma flor estranha presa à cinta
e um mudo desejo ferindo nas suas pupilas.
Que fogo estranho guarda nos lábios este fauno?
Um perfume parece soltar-se-lhe do braço,
enquanto vence em sangue a poeira do ar.
Ideal como a cauda dócil da tarde,
triunfa do viandante o jovem semi-deus.
Barro ou mármore é ouro e amor, solitário,
no parque.


(Trad. A.M.)

.

22.9.12

Helder Macedo (O capítulo mais difícil)





Já sei que este é o capítulo mais difícil do meu livro.

Por isso é melhor que seja breve.

Tentei escrevê-lo três vezes e três vezes desisti, ficando a saber, de cada vez, que com as mesmas palavras tanto se pode fingir a verdade como a mentira, o que aliás já sabia.

Tentei ir para diante sem ele, tive de voltar atrás.

Fica encaixado aqui.

O meu problema é conseguir tornar tão evidente que ninguém note como, a relação que necessariamente tem de haver entre Moncorvo e o meu pai ou, transpostamente em veracidade fictícia, entre estas duas partes da mesma África.



- HELDER MACEDO, Partes de África (9.), Edit. Presença, 1991.

.

Eduardo Mitre (Epílogo)





EPÍLOGO




El olor que deja
en la piel la ausencia.

El sabor de un nombre
que quema la lengua.

El dolor que queda
en la mujer y el hombre.

Y el tiempo que cuelga
las cuatro estaciones.


Eduardo Mitre




O odor que na pele
deixa a ausência.

O sabor de um nome
que queima na língua.

A dor que fica
na mulher e no homem.

E o tempo que suspende
as quatro estações.


(Trad. A.M.)




>>  A media voz (18p) / Letras Libres (12p) / Poemas de (8p)


.

20.9.12

Karmelo C. Iribarren (Intuição do frio)





INTUICIÓN DEL FRÍO




No es el de la niñez,
aquellas mañanas de diciembre,
a lo largo del río,
hacia el colegio,


ni se trata tampoco de aquel otro
que te sorprendería
años después
más de una madrugada
dando tumbos.


No, este es distinto, este
da miedo:
              viene
              del futuro.



Karmelo C. Iribarren



[Escrito en el viento]





Não é aquele da infância,
das manhãs de dezembro,
ao longo do rio,
a caminho do colégio,


nem tão pouco o outro
que havia de te surpreender
anos depois
aos trambolhões
em algumas madrugadas.


Não, este é diferente, este
dá medo,
               vem
               do futuro.


(Trad. A.M.)

.

19.9.12

Ver (113)







Pico / São Jorge > Açores



[Jorge Góis]



.

Baldomero Fernández Moreno (Então)





Entonces, Dios mío,
yo he tenido infancia,
y he tirado piedras
y he saltado vallas
y he robado quimas
de frutas cargadas?
¿Y que esto ha pasado
en una lejana
aldehuela de oro,
allá, por España?


Baldomero Fernández Moreno


[De sibilas y pitias]





Então, Deus meu,
eu tive infância,
e atirei pedras
e saltei valas
e roubei ramos
de fruta carregados?
E passou-se isto
numa distante
aldeola dourada,
lá longe, em Espanha?


(Trad. A.M.)



> Wikipedia (B.F.M.)


.

18.9.12

Luís Filipe Parrado (O que mais amo)





O QUE MAIS AMO




Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
de todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.


Luís Filipe Parrado


[Poesia & Lda.]


.

17.9.12

María Sanz (Sem título)





SEM TÍTULO




Encontrámo-nos em Washington
Square, tu e eu.
Convidaste-me para jantar
num clube, e a orquestra
tocou para nós
Indian summer... Dançámos
imersos na noite
novaiorquina. Mais tarde, o meu vestido
brilhava abandonado no chão
daquele apartamento, e aí era
bem diferente a música: palavras
e suspiros à mistura com sirenes
de barcos ao longe...


Mas como é que eu não consigo
lembrar-me, agora,
enquanto abro os olhos,
como é que se chamava o filme
em que vi estas cenas?



María Sanz


(Trad. A.M.)


.

16.9.12

Almeida Garrett (Outra casta de capítulo)





Aí parámos, e acordei eu.

Sou sujeito a estas distracções, a este sonhar acordado.

Que lhe hei-de eu fazer?

Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo.

Francamente me confesso de sonâmbulo, de soníloquo, de...

Não, fica melhor com seu ar de grego (hoje tenho a bossa helénica num estado de tumescência pasmosa!); digamos sonílogo, sonígrafo...

A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar estas folhas, e passar ao capítulo seguinte, que é outra casta de capítulo.



- ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, IV.

.

José Luis García Martín (Universos)





UNIVERSOS




Narciso
Me gusto en el espejo de tus ojos.

*

Coimbra
Jadeantes callejas en tu busca, amor mío.

*

Barca con tres personajes
En el río del tiempo sonríen y se alejan.

*

El día después
Vuelve el sol. No sabe que te has ido.

*

Otoño
Un solitario fuma en el pretil de un puente.

*

Espejo de una casa de antiguedades
Sólo reflejo días olvidados.

*

Desnudo de espaldas
Tu rostro es el del tiempo que nos huye.

*

Domingo junto al mar
Todo lo manchan de ceniza mis ojos.

*

Vaso con rosas
Quien las cortó ya ha muerto.

*

Otra definición del amor
Sólo no estaba solo cuando estaba contigo.

*

El foro con lluvia. Roma.
Un murmullo de hexámetros.



JOSÉ LUIS GARCÍA MARTÍN
El pasajero
(1992)





Narciso
me miro no espelho de teus olhos.

*

Coimbra
arquejantes ruelas buscando-te, amor meu.

*

Três personagens num bote
sorrindo se afastam no rio do tempo.

*

No dia seguinte
volta o sol. Sem saber que te foste.

*

Outono
um solitário fuma no parapeito da ponte.

*

Espelho duma casa de antiguidades
reflicto só dias esquecidos.

*

Desnudo e de costas
teu rosto é o do tempo que nos foge.

*

Domingo à beira-mar
tudo meus olhos mancham de cinza.

*

Jarra com rosas
quem as cortou já cá não está.

*

Outra definição de amor
só não estava só quando estava contigo.

*

O foro com chuva. Roma.



(Trad. A.M.)

.

15.9.12

Luís de Camões (Se tanta pena tenho merecida)





Se tanta pena tenho merecida
Em pago de sofrer tantas durezas,
Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,
Que aqui tendes uma alma oferecida.


Nela experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores sofrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.


Mas contra vosso olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda,
Mas porei por escudo o coração.


Porque, em tão dura e áspera contenda,
É bem que, pois não acho defensão,
Com me meter nas lanças me defenda.



Luís de Camões

.



14.9.12

Jorge Riechmann (Louvor de ti)





ALABANZA TUYA




Es malo que haya
gente imprescindible.
No es muy buena
la gente que a sabiendas
se vuelve imprescindible.
La fruta
ha de continuar atesorando sol,
no ha de menguar la fuerza del torrente
si por acaso un día
se pierden unos labios.


Pero
-y este pero me abrasa-
no puedo
decir que sea malo
que tú seas imprescindible.


Jorge Riechmann





É mau haver
gente imprescindível.
Não é muito bom
quem deliberadamente
se torna imprescindível.
A fruta
deve continuar amealhando sol,
não pode minguar a força da torrente
se um dia por acaso
se perderem uns lábios.


Mas – e este mas escalda-me –
não posso
dizer que seja mau
tu seres imprescindível.


(Trad. A.M.)

.

13.9.12

Ver (112)




Fajã dos Cubres >São Jorge>Açores



[Jorge Góis]


.

Jorge Espina (E descobrir que a morte)





E descobrir que a morte
também tinha ali
servidão de passagem.



JORGE ESPINA
Volver al pan, llegar a casa
Canalla Ediciones (2012)


(Trad. A.M.)

.

12.9.12

José Miguel Silva (Desire)





DESIRE




A fome, o desamor, o desabrigo,
nenhum mal é comparável à miséria
dum emprego, com horas escoltadas
por minutos, os minutos com lápis
afiados, rasurando dia a dia
o animoso galarim das faculdades.


A questão, uma vez mais, é recusar;
desde logo, a protecção dos que traficam
com a liberdade alheia, o conforto
de servir os mediáticos negreiros,
cuja sorte se cimenta no apelo
que dirigem ao pior de cada um.


Pois aquilo a que chamais liberdade
(a coleira do consumo para muitos,
para poucos a gestão do entreposto)
não é mais do que extorsão e propaganda,
centenária manobra de fidalgos
educados no prazer da injustiça.



JOSÉ MIGUEL SILVA
Walkmen
& etc



[O melhor amigo]


.

11.9.12

Joan Margarit (Amor e tempo)





AMOR Y TIEMPO




Recuerda cuando aún desconocías
que la vida no tendría piedad contigo.
Amor y tiempo: el tiempo nos habita
como arena del río que, despacio,
va cambiando la forma de la costa.
El amor, que ha copiado en tu mirada
la claridad de la isla del tesoro.
Sensual, solitaria, rodeada
por la sonora senectud del mar
y gritos militares de gaviotas.
El sueño clandestino de los cincuenta años.



Joan Margarit






Lembra-te quando não sabias ainda
que a vida não teria piedade contigo.
Amor e tempo: o tempo habita-nos
como areia do rio que, devagar,
vai mudando a forma do leito.
O amor, que copiou no teu olhar
a claridade da ilha do tesouro.
Sensual, solitária, rodeada
pela sonora senectude do mar
e gritos militares de gaivotas.
O sonho clandestino dos cinquenta anos.



(Trad. A.M.)


.



10.9.12

Helder Macedo (Férias sabáticas)





Estou com cinquenta e tal anos e em férias sabáticas, coisas que nunca me tinham acontecido ao mesmo tempo.

E foi assim que pude aceitar a hospitalidade do meu bom amigo Bartolomeu Cid dos Santos, na sua bela casa mais amada do que usada, entre serras que não mudam nunca e águas do mar que nunca estão quedas.

Excepto que, sendo Primavera e o mar ficando ainda longe, basta ir ao terraço para constatar que são as serras de Sintra que diariamente se transformam e as águas da Praia das Maçãs que parecem sempre fixas.

Não se deve ter demasiada confiança nas metáforas em segunda mão.

Em todo o caso já se sabe que as férias vão chegar ao fim logo que comece a habituar-me e a vida nem é bom pensar.



- HELDER MACEDO, Partes de África (1.), Edit. Presença, 1991.


.

Hugo Gutiérrez Vega (Finale)






FINALE




Debería callarme el hocico
y evitar las calles adyacentes.


Voy exhibiendo la cabeza rota,
los agujeros de los pantalones,
el corazón que por barroca vanidad
espero que algún día sea trasplantado
a un negro de sudáfrica.
Debería callarme el hocico
y escribir solamente en los retretes
alumbrado por fósforos,
hacer grandes graffiti con carbón
y terminarlos con la punta de la nariz.


Yo nací en un mundo tan solemne,
tan lleno de conmemoraciones cívicas,
estatuas,
vidas de héroes y santos,
poetas de altísimas metáforas
y oradores locales;
en la ciudad que tiene siempre puesta
la máscara de jade y de turquesa,
y como ahí nací
debería callarme el hocico
y pintar solamente en los retretes.


Hugo Gutiérrez Vega


[Noctambulario]





Eu devia calar o bico
e evitar as ruas vizinhas.


Vou mostrando a cabeça partida,
os buracos das calças,
o coração que por vaidade espero
seja um dia transplantado
num preto da África do Sul.
Devia calar o bico
e escrever só nas retretes
à luz de fósforos,
fazer com carvão graffitis enormes,
rematando-os com a ponta do nariz.


Nasci eu num mundo tão solene,
tão cheio de comemorações cívicas, estátuas,
vidas de heróis e de santos,
poetas de altíssimas metáforas
e oradores locais;
na cidade que nunca tira
a máscara de jade e turquesa,
e visto que ali nasci
devia era calar o bico
e pintar só nas paredes das retretes.



(Trad. A.M.)





>>  Poemas de (8p) / Poeticas (10p) / Jornal de Poesia (perfil/Alfredo Fressia) / Literatura (perfil/Adriana Dorantes) / Wikipedia


.

9.9.12

René Char (Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud)







Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud! Tes dix-huit ans
réfractaires à l’amitié, à la malveillance,
à la sottise des poètes de Paris
ainsi qu’au ronronnement d’abeille stérile
de ta famille ardennaise un peu folle,
tu as bien fait de les éparpiller aux vents du large,
de les jeter sous le couteau de leur précoce guillotine.
Tu as eu raison d’abandonner le boulevard des paresseux,
les estaminets des pisse-lyres,
pour l’enfer des bêtes, pour le commerce des rusés et
le bonjour des simples.
Cet élan absurde du corps et de l’âme,
ce boulet de canon qui atteint sa cible en la faisant éclater,
 oui, c’est bien là la vie d’un homme !
On ne peut pas, au sortir de l’enfance,
indéfiniment étrangler son prochain.
Si les volcans changent peu de place,
leur lave parcourt le grand vide du monde
et lui apporte des vertus qui chantent dans ses plaies.
Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud !
Nous sommes quelques-uns à croire
sans preuve le bonheur possible avec toi.


René Char



Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!
Teus dezoito anos refractários à amizade,
à malevolência, à tontice dos poetas de Paris,
tal como ao zumbido de abelha estéril da tua família
ardenense meio louca, fizeste bem espalhá-los aos ventos
do largo, metê-los sob o fio da sua precoce guilhotina.
Tiveste razão em trocar a avenida dos preguiçosos,
os estaminés dos mija-tostões, pelo inferno das bestas,
o comércio dos manhosos, o bom-dia dos simples.
O absurdo élan do corpo e alma,
a bala de canhão que atinge o alvo e o rebenta,
é isso, nem mais, a vida dum homem!
Não se pode, ao sair da infância,
estrangular o próximo eternamente.
Os vulcões deslocam-se pouco,
mas a lava percorre o grande vazio do mundo,
outorgando-lhe virtudes que cantam nas suas chagas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud. Alguns por cá
teimamos em crer, sem provas, a felicidade possível
contigo.


(Trad. A.M.)



>  Outras versões: O melhor amigo (Yvette Centeno) / Raging-b / Eclipse Mental / Caquis caídos

.

8.9.12

Gsús Bonilla (Faremos o ódio)





haremos el odio
como nunca antes
se hizo.

excelsos,

desproporcionados.

fundiremos los cuerpos desnudos
en una pira
alimentada con el olvido
a los oprimidos
desde que el tiempo
fue tiempo;

las llamas, aun
siendo lenguas, salvajes
lamerán heridas viejas
y lesiones jóvenes

caldo y nutriente
en las mamaderas antiguas,
nuestro amparo, el sustento
de ayer;

sólo para hoy es necesario
estar atentos en el detalle,
ser amables, repartir amor
y aborrecer con el cariño
de las máquinas sexuales;

que vengados los amputados

caminaremos juntos
con una nueva y leve cojera,

propia de la rabia y el desprecio
en los héroes de poca edad;

haremos el odio, digo

para levantar el ánimo
y experimentar el placer inmenso
de escribir por las paredes:

que tiemblen los tiranos.

ya habrá un lugar para después
donde afrontar la fatiga

de las hazañas extraordinarias.



Gsús Bonilla





faremos o ódio
como nunca antes
foi feito.

excelsos,

desproporcionados.

fundiremos os corpos nus
numa pira
alimentada do esquecimento
dos oprimidos
desde que o tempo é tempo;

as chamas,
quais línguas, selvagens
lamberão antigas feridas
e lesões novas,

caldo e substância
nas mamadeiras antigas,
amparo nosso, sustento
de ontem;

só por hoje é necessário
estarmos atentos ao detalhe,
sermos amáveis, repartir amor
e aborrecer o carinho
das máquinas sexuais;

vingados os amputados

caminharemos juntos
coxeando levemente

como é próprio da raiva e do desprezo
em heróis de pouca idade;

faremos o ódio, digo

para erguer o ânimo
e gozar o prazer imenso
de escrever nas paredes:

que tremam os tiranos.

haverá um lugar depois
onde afrontar a fadiga

das façanhas extraordinárias.


(Trad. A.M.)

.

7.9.12

Ver (111)







[Hendrik Kerstens]



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Juanjo Barral (Mudança de tércio)





CAMBIO DE TERCIO



Antes eran los salteadores
quienes cubrían su rostro.
Ahora lo hace la policía.
Será que los que roban hoy
no necesitan poner la cara siquiera.
Será que la policía tampoco es de fiar.


Demasiado poco
claro
todo.


Juanjo Barral





Dantes quem tapava a cara
eram os assaltantes.
Agora é a polícia.
Se calhar os que roubam actualmente
não precisam sequer de pôr a cara.
Se calhar a polícia também não é de fiar.


Muito pouco
claro
tudo.



(Trad. A.M.)


.

6.9.12

José Gomes Ferreira (Que pena não ser eu)






Que pena não ser eu um dos primeiros
homens a inventar as palavras,
para criar a verdade!


Encontrei-as já todas feitas
umas doces, outras amargas,
estas rudes, aquelas imperfeitas,
acasos de som
- mar de espuma de gaivotas e vagas.


Com este cheiro tão bom
a realidade.



José Gomes Ferreira


.

5.9.12

Ángel González (Porvir)






PORVENIR




Te llaman porvenir
porque no vienes nunca.
Te llaman: porvenir,
y esperan que tú llegues
como un animal manso
a comer en su mano.
Pero tú permaneces
más allá de las horas,
agazapado no se sabe dónde.


!Mañana! Y mañana será otro día tranquilo
un día como hoy, jueves o martes,
cualquier cosa y no eso
que esperamos aún, todavía, siempre.



Ángel González


[Apología de la luz]






Chamam-te porvir
porque não vens nunca.
Chamam-te: porvir,
e esperam que tu venhas
como animal manso
comer-lhes à mão.
Mas tu permaneces
para além das horas,
agachado sabe-se lá onde.


Amanhã! E amanhã será outro dia tranquilo
um dia como hoje, terça-feira ou quinta,
uma coisa qualquer, não isto
que ainda esperamos, ainda e sempre.



(Trad. A.M.)

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4.9.12

Almeida Garrett (Mais dez anos de barões)





Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo.

Mas uma nação pequena, é impossível; há-de morrer.

Mais dez anos de barões e de regímen da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.

Creio isto firmemente.

Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo está são: os corruptos somos nós os que cuidamos saber e ignoramos tudo.



- ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, XLII.

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Ana Pérez Cañamares (Filho meu)





HIJO MIO




Que soy libre, me dicen.
Pero si quisiera tener otro hijo
tendría que llevarlo al Banco de la esquina
porque suya es mi casa.
Mi niño llamaría padre al director
y madre a la cajera
aprendería a andar con una silla de oficinista
dormiría en un cajón del archivador
y yo sólo sería un pariente lejano
que le sonreiría desde mi puesto en la cola.
Me pasaría de vez en cuando con la excusa de ampliar la hipoteca
sólo para ver qué tal me lo crían
cómo le afecta el aire acondicionado
si sabe poner un fax
y si el director le regala un juego de sartenes
por su cumpleaños.


Ana Pérez Cañamares


[Desde las lindes del sur]




Que sou livre, dizem-me.
Mas se eu quisesse ter outro filho
tinha de levá-lo ao Banco da esquina
porque é deles a minha casa.
O meu menino chamaria pai ao gerente
e mãe à senhora da caixa
aprenderia a andar com uma cadeira de escritório
dormiria num gavetão do arquivo
e eu seria só um parente distante
a sorrir-lhe do meu lugar na fila.
Passaria de vez em quando com a desculpa de ampliar a hipoteca
para ver apenas como é que mo criam
como se dá no ar condicionado
se sabe mandar um fax
e se o gerente lhe oferece no aniversário
um jogo de sertãs.


(Trad. A.M.)


>  Outra versão:  Do trapézio (L.P.)

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3.9.12

Ruy Cinatti (Linha de rumo)





LINHA DE RUMO




Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.


Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campos de flores
E silvas...


Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.


Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado.
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.



Ruy Cinatti



[nEscritas]


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2.9.12

Álvaro Valverde (Viagem a Lisboa)





UN VIAJE A LISBOA



Huíamos en vano de la ciudad cerrada
y acabamos perdidos en la ciudad perfecta.
El piso luminoso, el suelo blanco,
los cuartos despojados y en penumbra,
los pocos pero doctos libros juntos,
acogieron serenos el cansancio.
Luego llegaron días de paseos y calma
donde todo se hizo tan lento como suele
ser todo en un lugar acompasado a un río.
Tranvías y avenidas y barcos y comercios
fueron haciendo el resto.
Ya no éramos los mismos
que piensan desde el puente lo que cualquier suicida.
Los que ven desde el puerto parecidos naufragios.
Ni los que entre las ruinas de nobles edificios
se dan a ese discurso del fracaso y la muerte.
En la decrepitud, entre la suciedad, bajo la herrumbre,
lo que vimos fue el fuego de una vida distinta.
Todavía nos quema cuando hacemos recuento
y evocamos las tardes sosegadas de junio
en la casa de Ángel, y aquel sol de poniente
hundiéndose, muy rojo, sobre el Tajo.
Volvemos a menudo al sitio donde fuimos
si no felices siquiera afortunados.
Con la melancolía viaja una mirada
que nos devuelve aquello que ensayamos vencido.


Álvaro Valverde


[Antón Castro]






Fugindo em vão da cidade fechada,
acabámos perdidos na cidade perfeita.
O andar luminoso, o solo branco,
os quartos despojados e na penumbra,
os poucos mas doutos livros conseguidos,
acolheram serenos o cansaço.
Depois vieram dias de passeio e de calma
com tudo a passar tão lento como é costume
num lugar a compasso dum rio.
Carros eléctricos e avenidas, barcos e estabelecimentos
foram tratando do resto.
E já não éramos os mesmos
postos a pensar na ponte como
um suicida qualquer.
Ou os que vêem do porto naufrágios parecidos.
Nem os que entre nobres ruínas
se entregam ao discurso do fracasso e da morte.
Decrépito, no meio da porcaria, por baixo da ferrugem,
o que vimos foi o fogo de uma outra vida.
Ainda nos queima quando olhamos para trás
e evocamos as tardes sossegadas de Junho
em casa de Àngel, e aquele sol do poente
a afundar-se no Tejo, muito vermelho.
Voltamos amiúde ao lugar onde fomos,
se não felizes, pelo menos afortunados.
Um olhar viaja com a melancolia
e devolve-nos aquilo que temos por perdido.



(Trad. A.M.)

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1.9.12

Ver (110)







Pico / São Jorge > Açores


[Jorge Góis]


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Amalia Bautista (Dragões)





DRAGONES




Ha llegado la hora de matar al dragón,
de acabar para siempre con el monstruo
de las fauces terribles y los ojos de fuego.
Hay que matar a este dragón y a todos
los que a su alrededor se reproducen.


Al dragón de la culpa y al dragón del espanto,
al del remordimiento estéril, al del odio,
al que devora siempre la esperanza,
al del miedo, al del frío, al de la angustia.
Hay que matar también al que nos tiene
aplastados de bruces contra el suelo,
inmóviles, cobardes, desarraigados, rotos.


Que la sangre de todos
inunde cada parte de esta casa
hasta que nos alcance la cintura.
Y cuando ese montón de monstruos sea
sólo un montón de vísceras y ojos
abiertos al vacío, al fin podremos
trepar y encaramarnos sobre ellos,
llegar a las ventanas, abrirlas o romperlas,
dejar que entren la luz, la lluvia, el viento
y todo lo que estaba retenido
detrás de los cristales.


Amalia Bautista


[La memoria de Cain]





Chegou a hora de matar o dragão,
de acabar para sempre com este monstro
de fauces terríveis e olhos de fogo.
Há que matar este dragão e todos
que à sua volta se reproduzem.


O dragão da culpa e o do espanto,
o do remorso estéril, o do ódio,
o que sempre devora a esperança,
o do medo, do frio, da angústia.
Há que matar também o que nos esmaga
de bruços contra o chão,
imóveis, cobardes, quebrados, sem raízes.


Que o sangue de todos inunde
cada parte da casa
até nos chegar à cinta.
E quando essa pilha de monstros
for só um monte de vísceras
e olhos abertos para o vazio,
enfim poderemos trepar, montar-nos sobre eles,
chegar às janelas, abri-las ou quebrá-las,
deixar entrar a luz, a chuva, o vento
e tudo o que estava retido
atrás dos vidros.


(Trad. A.M.)


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