1.3.21

Amadeu Baptista (Poema para o septuagésimo aniversário)



POEMA PARA O SEPTUAGÉSIMO ANIVERSÁRIO

 

Para a minha decrepitude peço bondade
E um resto de memória para que saiba quem fui.
Quanto aos apelos, quero que fiquem esquecidos,
Bem como o modo como a casa envelheceu. 

Se tive feridas, já as limpei algures
E delas nem a crosta sobre a pele quis ficar.
Com as mãos no andarilho faço força
Para me manter de pé, embora às vezes caia. 

Continuo a abrir a boca para a sopa
Mas isso é uma questão, digamos, não mais que técnica.
A árvore recebe a chuva e nada diz e eu
É desse silêncio fidedigno que sobrevivo. 

Quanto aos amores que tive o peito os cale
Como se de um sedimento se tratasse.
Cada uma das camadas permanece
E entre elas agora só há fósseis. 

Na gaveta de baixo guardo o lume
Que me afogueava os sentidos antigamente.
Por ora, com a ressaca, já não vibro,
Desmantelei as rosas com o tempo.

Só vejo construções paradas neste sítio,
Andaimes apodrecidos e pregos ferrugentos.
Algo está mal na cidade indefesa e, por prudência,
Contrariado obrigo-me a carregar a máscara insuportável. 

Na constelação do vazio há bizarrias
Que são de levar à loucura os heróis do dia-a-dia.
Nunca se sabe o que nos bate à porta, se Godot, se a fome,
Se o cobrador de impostos, se um monte de cadáveres. 

A vida é poderosa, um arrebatamento que não cessa,
A doce e amarga preposição que nos identifica.
Vivi ao abandono e será ao abandono que vou morrer,
A ouvir a mãe a chamar do outro lado do abismo. 

Como Cristo, não parti nenhum osso e se inclinei
A cabeça não por foi por reverência mas para conferir
Se o chão estava limpo, a altura do gelo, a quantidade
De destroços acumulados à minha volta. 

A decadência é só a decadência,
Uma vassoura gasta que é preciso deitar fora.
Não tenho pão nem vinho que possa repartir
E não creio que após esta noite ressuscite. 

Se alguma coisa devo à escrita
É o sabor da viagem que senti no comboio
Que me trouxe até aqui quase sem norte
Mas com a estrela polar no pensamento. 

Andei sempre ao contrário do ocaso
Ou andei sempre ao contrário do acaso?
Tomei os sinais do sacrifício por beleza
E é essa evocação que mais me interessa.

Digam de mim que ao olhar o horizonte
Confundi fúria com caminho, utopia com ímpeto
E dúvida com dádiva. Depois não digam nada,
Que eu hei-de ficar calado para sempre 


Amadeu Baptista

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