29.8.17

Amadeu Baptista (No aniversário da morte do Ruy Belo)





NO ANIVERSÁRIO DA MORTE DO RUY BELO



faz hoje anos que o ruy belo morreu.
nem imagino o que seja morrer um homem
a despenhar-se na cama, recém-chegado do mar

com o seu fato de mergulhador e os olhos cheios de peixes.
não imagino o que seja deixar de respirar um poeta,
ainda que saiba que sofrerei a mesma paragem

respiratória e também cairei de bruços sobre a cama.
faz hoje anos que o ruy belo morreu.
nunca o vi, nunca lhe ouvi a voz, nunca observei

a caprichosa sinuosidade da sua caligrafia, mas
amei este homem muito mais que amei meu pai
e minha mãe, digo-o tal como o sinto, sempre o senti

assim e assim o escrevo para que ressoe através de mim
como uma palavra sussurrada no capacete de um escafandrista
ou num coração. faz hoje anos que o ruy belo

morreu. deve ter sido num dia de muito calor, igual a este.
a coberta em que repousou a cabeça seria como esta,
verde-esmeralda, espessa e clara na exiguidade da cama

em que caiu. amei este homem, amo este homem
como a um irmão. presto homenagem
às suas dores mais dilacerantes, iguais às minhas, talvez,

ainda que um tudo nada mais graves, um tudo nada
mais agudas as que manteve, enquanto a pátria,
a serôdia pátria que tudo amesquinha,

lhe fazia o ninho atrás da orelha
e lhe espetava a faca nas costas com a habitual
agilidade com que a pátria mata os seus poetas,

o ruy belo e uns outros tantos, inumeráveis,
que o rol é demasiado grande para tão pequena pátria.
faz hoje anos que o ruy belo morreu. presumo

que uma nuvem lhe subiu à boca e lhe turvou o olhar,
uma nuvem de mar, ou de peixes, uma nuvem
verde-esmeralda. tudo foi instantâneo e quieto,

um alvoroço parado, uma tranquila vertigem.
essa nuvem inundou-lhe o quarto, a cama, a carne, a boca, os olhos,
enquanto pensava que deveria escrever algumas cartas

que esperava o não levassem à desonra de ter que roubar para comer,
num país que desde sempre mata à fome os seus poetas.
faz hoje anos que o ruy belo morreu. todo o silêncio é pouco para assinalar

esta perda, por mais que uns poucos a venham alardear
na configuração da noite que aqui se pôs, sem qualquer esperança
de manhã. eis o que digo tal e qual como sinto esta morte, ainda que

não seja escafandrista e tenha visto a consolação ao longe,
suspensa de um nevoeiro de abismos, demasiadamente perto
da nau dos corvos da nossa existência, uma praia cheia do nosso esterco,

cheia da nossa solidão, onde sempre nos caberá mergulhar
na morte para que a cabeça penda sobre o peito, sobre
a cobertura da cama verde-esmeralda, enquanto tudo em volta

não é mais que uma noite que nos fecha os olhos e a interrogação
inapelável nos confirma que de tudo morremos, vencidos
mas não convencidos de que o último inimigo seja a morte,

porque há ainda o que se não concilia, o que nos confronta na barbárie,
o que redime das sombras e põe um enunciado de estrelas
no que se escreve. faz hoje anos que o ruy belo morreu,

entra agosto nos seus inícios como um mês comum à nossa morte,
não mais que uma circunstância para forçar a guarda, levantar
as mãos acima da cabeça e, por uma vez, objurgar

quem lança um olhar estranho sobre nós sem que saiba
que os poetas não morrem, por mais que o lixo se amontoe
à nossa volta e o que é ignóbil nos magoe.


Amadeu Baptista


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> Cantando o mesmo, a morte de R.B., aqui:
Fernando Assis Pacheco
Eugénio de Andrade

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