26.3.15

Alfredo Buxán (Enquanto puderes)





ENQUANTO PUDERES



Deixa que cada coisa, lentamente,
encontre seu amparo nas paredes
desta casa que começa a conhecer-te
pelo tom da voz e pelas pisadas
de pássaro na carpete, pela roupa
em seu canto à espera da madrugada,
pela penumbra cálida de um saxe
à meia-noite, pelo sono frágil também.
Cuida-a com tuas mãos cada dia
e escuta o que escreve em silêncio
cada objecto: nada é definitivo.
Agradece à idade este presente,
sê feliz sem deixar de ser tu mesmo
enquanto puderes. Lembra o medo
que passaste em tantos anos
de enganosa solidão. Lembra
tudo: o mar, o nome dos teus,
as mulheres e o cansaço infinito
de buscar uma luz por entre a bruma.
Não duvides mais, aceita que não é tarde
e que chegou a hora de um inventário
sossegado: tens aquilo que anelavas.
Talvez porque nada já necessitas
que se possa comprar com a mentira.
Não dês um passo atrás, não te rendas
nem renuncies tão pouco ao silêncio
que te trouxe, fiel, o primeiro verso
até à beira mesma desta casa
que começa - dá-lhe tempo - a ser tua.


ALFREDO BUXÁN
Las Palabras Perdidas
(Poesía 1989-2008)
Bartleby Editores (2011)

(Trad. A.M.)


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