26.3.23

Armando Silva Carvalho (Aqui)



AQUI

 
Aqui o inferno mata as profissões
que têm acesso ao ar.
Diz-se que deus se absteve
de criar servidores para os condenados
ao tédio.
Morre-se no emprego
com a garganta apertada por uma mão
sem ossos.
Aqui os anos crescem pouco ou nada.
Os dias e dias secam na raiz.
Não há horas felizes.
O sol sempre se deu bem com gente como esta
que salpica de chuva os seus pequenos
afazeres
para ficar em casa.
Gente com plenos poderes
para desmanchar a festa que se alonga
para lá da cabeça.
Diz um: eu sou o sábio de domingo.
Agora não me ocupo de dias úteis, de remendos d’alma,
de fragilidades.
Esperem por mim mas só depois
da missa.
Diz outro: a ética é grega de nascença
movemo-nos por números, já sentenciava Pitágoras.
Não cunhamos moeda, não sujamos as mãos
nos improvisados remos do naufrágio.
O nosso destino é perguntar.
Parece que deus quis que não nascesse a obra.
Nascer que nasça o sol
e é bastante.
Quem pergunta ao sonho pelo homem
de serviço?
Nos campos vicejam novamente as urtigas
são restauros agrícolas,
exemplos a seguir, ordens vindas de cima,
ao ouvido,
na sala dos banquetes.
O mar faz de cão velho e deixa-se ficar
à espera no patamar dos mitos.
Ninguém o suporta
nem ao seu uivar aos pés
da história.
Comovidos estamos, com um não sei quê,
um quanto, um como, uma dor
que levanta asas
e vai do vale à montanha
como vão os monges cavaleiros
à televisão.
Aqui a cidade abre-se para lá da noite
e é sempre belo ver a madrugada
a chorar os seus ídolos.
Aqui os que têm coração
têm desconto.


Armando Silva Carvalho

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