31.8.17

Luis Alberto de Cuenca (Abre todas as portas)





ABRE TODAS LAS PUERTAS



 Abre todas las puertas: la que conduce al oro,
 la que lleva al poder, la que esconde el misterio
 del amor; la que oculta el secreto insondable
 de la felicidad, la que te da la vida
 para siempre en el gozo de una visión sublime.
 Abre todas las puertas sin mostrarte curioso
 ni prestar importancia a las manchas de sangre
 que salpican los muros de las habitaciones
 prohibidas, ni a las joyas que revisten los techos,
 ni a los labios que buscan los tuyos en la sombra,
 ni a la palabra santa que acecha en los umbrales.
 Desesperadamente, civilizadamente,
 conteniendo la risa, secándote las lágrimas,
 en el borde del mundo, al final del camino,
 oyendo cómo cantan los ruiseñores,
 no lo dudes, hermano: abre todas las puertas.
 Aunque nada haya dentro.

Luis Alberto de Cuenca




Abre as portas todas, a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor; a que oculta o segredo insondável
da ventura, a que a vida te oferece
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre as portas todas, sem te mostrares curioso,
nem prestar importância às manchas de sangue
que salpicam as paredes das salas
proibidas, nem às jóias que cobrem os tectos,
nem aos lábios que na sombra buscam os teus,
nem à palavra sagrada que espreita no umbral.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, enxugando as lágrimas,
no limiar do mundo, ao fim do caminho,
não hesites, meu irmão: abre as portas todas.
Embora não haja nada dentro.

(Trad. A.M.)

.

30.8.17

Lucas Rodríguez (Marco Polo)





MARCO POLO



Soy un hombre de mundo
mis calzoncillos están hechos en China
mis pantalones en Tailandia
mis botas en Arnedo
el reloj que consulto es de Taiwan
y mi bolso fue cosido en la India
como el Marco Polo del siglo XXI
pero en versión imbécil.


Lucas Rodríguez

[Elkoalapuesto]




Eu sou um homem de mundo
os calções são feitos na China
as calças na Tailândia
as botas em Arnedo
o relógio que consulto é de Taiwan
e o bolso foi cosido na India
como o Marco Polo do séc. XXI
mas em versão imbecil.


(Trad. A.M.)

.

29.8.17

Amadeu Baptista (No aniversário da morte do Ruy Belo)





NO ANIVERSÁRIO DA MORTE DO RUY BELO



faz hoje anos que o ruy belo morreu.
nem imagino o que seja morrer um homem
a despenhar-se na cama, recém-chegado do mar

com o seu fato de mergulhador e os olhos cheios de peixes.
não imagino o que seja deixar de respirar um poeta,
ainda que saiba que sofrerei a mesma paragem

respiratória e também cairei de bruços sobre a cama.
faz hoje anos que o ruy belo morreu.
nunca o vi, nunca lhe ouvi a voz, nunca observei

a caprichosa sinuosidade da sua caligrafia, mas
amei este homem muito mais que amei meu pai
e minha mãe, digo-o tal como o sinto, sempre o senti

assim e assim o escrevo para que ressoe através de mim
como uma palavra sussurrada no capacete de um escafandrista
ou num coração. faz hoje anos que o ruy belo

morreu. deve ter sido num dia de muito calor, igual a este.
a coberta em que repousou a cabeça seria como esta,
verde-esmeralda, espessa e clara na exiguidade da cama

em que caiu. amei este homem, amo este homem
como a um irmão. presto homenagem
às suas dores mais dilacerantes, iguais às minhas, talvez,

ainda que um tudo nada mais graves, um tudo nada
mais agudas as que manteve, enquanto a pátria,
a serôdia pátria que tudo amesquinha,

lhe fazia o ninho atrás da orelha
e lhe espetava a faca nas costas com a habitual
agilidade com que a pátria mata os seus poetas,

o ruy belo e uns outros tantos, inumeráveis,
que o rol é demasiado grande para tão pequena pátria.
faz hoje anos que o ruy belo morreu. presumo

que uma nuvem lhe subiu à boca e lhe turvou o olhar,
uma nuvem de mar, ou de peixes, uma nuvem
verde-esmeralda. tudo foi instantâneo e quieto,

um alvoroço parado, uma tranquila vertigem.
essa nuvem inundou-lhe o quarto, a cama, a carne, a boca, os olhos,
enquanto pensava que deveria escrever algumas cartas

que esperava o não levassem à desonra de ter que roubar para comer,
num país que desde sempre mata à fome os seus poetas.
faz hoje anos que o ruy belo morreu. todo o silêncio é pouco para assinalar

esta perda, por mais que uns poucos a venham alardear
na configuração da noite que aqui se pôs, sem qualquer esperança
de manhã. eis o que digo tal e qual como sinto esta morte, ainda que

não seja escafandrista e tenha visto a consolação ao longe,
suspensa de um nevoeiro de abismos, demasiadamente perto
da nau dos corvos da nossa existência, uma praia cheia do nosso esterco,

cheia da nossa solidão, onde sempre nos caberá mergulhar
na morte para que a cabeça penda sobre o peito, sobre
a cobertura da cama verde-esmeralda, enquanto tudo em volta

não é mais que uma noite que nos fecha os olhos e a interrogação
inapelável nos confirma que de tudo morremos, vencidos
mas não convencidos de que o último inimigo seja a morte,

porque há ainda o que se não concilia, o que nos confronta na barbárie,
o que redime das sombras e põe um enunciado de estrelas
no que se escreve. faz hoje anos que o ruy belo morreu,

entra agosto nos seus inícios como um mês comum à nossa morte,
não mais que uma circunstância para forçar a guarda, levantar
as mãos acima da cabeça e, por uma vez, objurgar

quem lança um olhar estranho sobre nós sem que saiba
que os poetas não morrem, por mais que o lixo se amontoe
à nossa volta e o que é ignóbil nos magoe.


Amadeu Baptista


____________________

> Cantando o mesmo, a morte de R.B., aqui:
Fernando Assis Pacheco
Eugénio de Andrade

.

28.8.17

Leopoldo María Panero (O circo)





EL CIRCO



Dos atletas saltan de un lado a otro de mi alma
lanzando gritos y bromeando acerca de la vida:
y no sé sus nombres. Y en mi alma vacía escucho siempre
cómo se balancean los trapecios. Dos
atletas saltan de un lado a otro de mi alma
contentos de que esté tan vacía.
Y oigo
oigo en el espacio sonidos
una y otra vez el chirriar de los trapecios
una y otra vez.
Una mujer sin rostro canta de pie sobre mi alma,
una mujer sin rostro sobre mi alma en el suelo,
mi alma, mi alma: y repito esa palabra
no sé si como un niño llamando a su madre a la luz,
en confusos sonidos y con llantos, o bien simplemente
para hacer ver que no tiene sentido.
Mi alma. Mi alma
es como tierra dura que pisotean sin verla
caballos y carrozas y pies, y seres
que no existen y de cuyos ojos
mana mi sangre hoy, ayer, mañana. Seres
sin cabeza cantarán sobre mi tumba
una canción incomprensible.
Y se repartirán los huesos de mi alma.
Mi alma.
Mi hermano muerto fuma un cigarrillo junto a mí.


Leopoldo María Panero




Dois atletas saltam-me de um lado a outro da alma
contentes de ela estar tão vazia.
E ouço
ouço ruídos no ar
uma vez e outra o chiar dos trapézios
uma e outra vez.
Uma mulher sem cara canta de pé na minha alma,
uma mulher sem rosto sobre a minha alma no chão,
minha alma, alma minha: e repito a palavra,
como criança, não sei, chamando a mãe para a luz,
com prantos e ruídos confusos, ou muito simplesmente
para mostrar que não faz sentido.
Alma minha. Minha alma
é como terra dura pisada por
cavalos, carroças e pés, seres
que não existem e de cujos olhos
corre o meu sangue hoje, ontem e amanhã.
Seres sem cabeça cantarão na minha campa
uma canção incompreensível.
E dividirão entre si os ossos da minha alma.
Minha alma.
Meu irmão falecido fuma um cigarro a meu lado.

(Trad. A.M.)

.

27.8.17

León Felipe (Ninguém foi ontem)





Nadie fue ayer,
ni va hoy,
ni irá mañana
hacia Dios
por este mismo camino
que yo voy.
Para cada hombre guarda
un rayo nuevo de luz el sol...
y un camino virgen
Dios.


León Felipe




Ninguém foi ontem,
nem vai hoje,
nem amanhã
para Deus
por este mesmo caminho
que eu vou.
Para cada homem tem o sol
um raio novo de luz...
e Deus
um caminho virgem.


(Trad. A.M.)

.

26.8.17

Mário de Carvalho (Marta-2)





Pobre mana imerecida, que tantas vezes lhe suscitava a inconfessável raiva de não estar à altura, e ser incapaz de retribuir a atenção, o feitio e a solicitude. 

Desde sempre a vira sobrecarregada de trabalho, a desdobrar-se nos cuidados com os outros, com o pai, com a mãe, com o marido, com o filho, agora com o irmão, num sobrepeso de tarefas, ânsias, desvelos e fadigas.

Pela vida, habituara-se a ver mulheres cansadas, estava farto de mulheres cansadas, até por não compreender a assustadora capacidade de se concentrarem em várias ocupações e de violentarem o corpo até à exaustão.


MÁRIO DE CARVALHO
A Sala Magenta-II
(2008)

.

25.8.17

Isabel Bono (O futuro acabará por chegar)





EL FUTURO ACABARÁ POR LLEGAR



malgastábamos el tiempo
ordenando en un álbum las fotos del verano
para mirarlas alguna vez con nostalgia

acumulábamos canicas piedras
libros cartas poemas

aplazábamos así la felicidad, la vida

todavía no sé por qué
todavía no sé para cuándo


Isabel Bono




desperdiçávamos o tempo
a ordenar num álbum as fotos do Verão
para as olhar um dia com saudade

juntávamos berlindes pedras
livros cartas poemas

adiávamos assim a felicidade, a vida

ainda não sei porquê
nem sei para quando


(Trad. A.M.)

.

24.8.17

Laura Wittner (Visto da banheira)





PERSPECTIVA DESDE UNA BAÑERA



Después habrá una discusión.
Por ahora todo es cerrar los ojos,
mantenerlos cerrados a la altura del agua,
respirar, volver a sumergirse.
El límite entre el agua y el aire
coincide con la línea de pensamiento
que lo que hace es fundir y refundir
en cualquier orden
un par de escenas o secuencias, fotografías
tomadas con una cámara automática,
siempre más o menos el mismo material,
- es lo que se ha podido reunir -
animales salvajes avanzando
hasta quedar en primer plano,
alguien que le enseña a una chica
a usar una pistola en el desierto,
o igual una persona en una bañera
- y aquí vendrá la discusión:
quién es la persona,
quién soporta
la línea de pensamiento, o quién
apretó el gatillo,
tomó la foto, quién señaló la posición
donde habría que ubicarse
para obtener una buena vista aérea
de la bañera.


Laura Wittner





Depois haverá discussão,
para já é só fechar os olhos,
mantê-los fechados à flor da água,
respirar, voltar a mergulhar.
O limite entre água e ar
coincide com a linha de pensamento
que tenta fundir e refundir
um par de cenas ou sequências,
fotos tomadas com câmara automática,
sempre o mesmo material mais ou menos
- o que se pôde arranjar -
animais selvagens avançando
até ficarem em primeiro plano,
alguém que ensina uma miúda
a usar pistola no deserto,
ou então uma pessoa numa banheira
- e aí virá a discussão:
quem é a pessoa,
quem suporta
a linha de pensamento, quem
apertou o gatilho,
ou tomou a foto, quem indicou
a posição melhor a tomar
para obter uma boa vista aérea
de banheira.


(Trad. A.M.)

.

23.8.17

João de Mancelos (Ars poetica)





ARS POETICA



os pequenos incidentes dos dias
não são mais do que dobras e vincos.

poema a poema, passo a alma a ferro. 



João de Mancelos

.

22.8.17

Karmelo C. Iribarren (A condição urbana)





LA CONDICIÓN URBANA



Detesto el autobús. La buena
educación que nos obliga
a ceder el asiento
a esas señoras
que hasta que no se sientan
puede darles
cualquier cosa fatal.
Los empujones. El olor. Que nadie
fume y tenga que aguantar
todos los pormenores
del infarto
que le dio a no sé quién.
Las leyendas que llevan
en los flancos.
Los frenazos. Y muchas
cosas más que ahora me callo
porque me bajo aquí.


Karmelo C. Iribarren




Detesto autocarro. A boa
educação que nos obriga
a ceder o banco
àquelas senhoras
que até se sentarem
pode-lhes dar
qualquer coisa fatal.
Os empurrões. Os cheiros. O não
fumar e o ter de aguentar
os pormenores todos
do enfarte
que deu a não sei quem.
Os reclames nos lados.
As travagens. E muitas
coisas mais que agora não digo
porque desço aqui mesmo.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Do trapézio (L.P.)


.

21.8.17

Juanjo Barral (O valor da palavra)





EL VALOR DE LA PALABRA



El otro día me pagaron
por recitar media docena de poemas, algunos
contra el propio sistema bancario.
Es la primera vez que cobro por las miles de horas extra
sin contrato ni derecho a subsidio por desempleo que llevo
desde que me inscribí en el gremio de artesanos del vaho
en esta profesión de vendedores de melancolía

en la que tanto se padece la siniestralidad
–hay versos cojos, poemas que se estrellan contra el cielo–

en la que sufrimos la flexibilidad laboral más dura
–quién no ha tenido que escribir en el autobús, camino del alba–

en la que somos víctimas del acoso moral de uno mismo en el trabajo
–cuántos suicidios ejemplares de los que se tiene constancia.

Así que voy a practicar un poco el absentismo
antes de volver a emplear el tiempo
jugándome la vida
a cuatro euros el poema.


Juanjo Barral





Noutro dia pagaram-me
para dizer meia dúzia de poemas, alguns
contra o próprio sistema bancário.
É a primeira vez que cobro pelos milhares de horas extra
que levo sem contrato nem direito a subsídio de desemprego
desde que me inscrevi no grémio de artesãos do bafo
nesta profissão de vendedores de melancolia

em que se sofrem tantos sinistros
- versos coxos, poemas que se despenham contra o céu –

em que suportamos a mais dura flexibilidade laboral
- quem se não viu obrigado a escrever no autocarro,
a caminho da aurora –

em que somos vítimas de assédio moral
de nós próprios no trabalho
- tantos suicídios exemplares que se conhecem.

Por isso vou entrar um pouco em absentismo
antes de voltar a ocupar o tempo
arriscando a vida
a quatro euros o poema.


(Trad. A.M.)


20.8.17

Mário de Carvalho (Marta)






Bonita que fora mana, doces lhe iam agora e entristecidas as feições, com dois arcos já descaídos melancolicamente sob os olhos, da linha dos lábios, mais resumida e vincada que outrora, nascia um irradiar de breves pespontos, ainda sumidos, não tão flagrantes como a pele do pescoço já a querer desaprumar. 

Ao fim de tantos anos, só agora reparava nos traços da irmã, figura tão naturalmente comparte da sua vida que não considerara sequer a eventualidade de lhe apreciar as feições, mormente pela inutilidade de fazer valer essa avaliação.


MÁRIO DE CARVALHO
A Sala Magenta-II
(2008)


.

19.8.17

Juan Vicente Piqueras (Nomes apagados)





NOMBRES BORRADOS 

             La mente no es un lápiz para tomar apuntes,
             es una goma de borrar.
                                                    (Marko Vesovič)


Mi padre fue perdiendo poco a poco el lenguaje. 
Y empezó por los nombres. Lo primero
que olvidó su cerebro no fueron los adverbios
ni los pronombres no los adjetivos,
como uno estaría tentado de creer,
ni las motas de polvo de las preposiciones,
sino los sustantivos.

La manzana dejó de ser manzana,
el vaso pasó a ser eso,
y quienes se acercaban dejaban de llamarse.

La muerte comenzó su labor minuciosa
robándole los nombres,
borrándolos, poniendo
 
en su lugar un esto o un aquello,
un dame, un balbuceo, un gesto de la mano.

Lo último que se pierde son los verbos,
los verbos que se mueven en la sangre
como peces hasta que acaba el mundo,
hasta que ya no puede el cuerpo con su alma.

Los adjetivos son afectuosos,
visten de amor lo que miran
y por eso perviven.

Pero los nombres se esfuman.
Y la sustancia de los sustantivos
es agua de borrajas, niebla, torres de humo.

La manzana deja de ser manzana.
La palabra dolor ,
quién nos lo hubiera dicho.
no significa nada.


Juan Vicente Piqueras






O meu pai foi a pouco e pouco esquecendo a língua.
E começou pelos nomes. O que primeiro esqueceu
não foram os advérbios,
nem os pronomes ou os adjectivos,
como podíamos pensar,
nem os grãos de pó das preposições,
mas os substantivos.

A maçã deixou de ser maçã,
o copo passou a ser isso
e as pessoas que se aproximavam
deixavam de ter nome.

A morte começou seu labor minucioso
por roubar-lhe os nomes,
apagá-los, pondo
no lugar deles um isto ou aquilo,
um dá-me, um balbuceio, um aceno da mão.

O que se perde por último são os verbos
os verbos que se movem como peixes
no sangue até que o mundo se acaba,
até que o corpo já não pode com a alma.

Os adjectivos são afectuosos,
vestem de amor aquilo que visam
e por isso pervivem.

Mas os nomes esfumam-se.
E a substância dos substantivos
não passa de água, de névoa, de onda de fumo.

A maçã deixa de ser maçã.
A palavra dor,
quem nos havia de dizer,
não significa nada.

(Trad. A.M.)


.

18.8.17

Juan Luis Panero (Epitáfio diante do espelho)





EPITAFIO FRENTE A UN ESPEJO



Dura ha de ser la vida para ti,
que a una extraña honradez sacrificaste tus creencias,
para ti, cuya única certidumbre es tu recuerdo
y por ello, tu más aciaga tumba.
Dura ha de ser la vida, cuando los años pasen
y destruyan al fin la ilusa patria de tu adolescencia,
cuando veas, igual que hoy, este fantasma
que tiempo atrás te consoló con su belleza.
Cuando el amor como un vestido ajado
no pueda proteger tu tristeza
y motivo de burla, de piedad o de asombro,
a los ojos más puros sólo sea.
Duro ha de ser para tu cuerpo ver morir el deseo,
la juventud, todo aquello que fuiste,
y buscar sin pasión tu reposo
en la sorda ternura de lo débil,
en la gris destrucción que alguna vez amaste.
«Es la ley de la vida», dicen viejos estériles,
«y nada sino Dios puede cambiarlo», repiten,
a la luz de la noche, lentas sombras inútiles.
Dura ha de ser la vida, tú que amaste el mundo,
que con una mirada o una suave caricia soñaste poseerlo,
cuando la absurda farsa que tú tanto conoces
no esté más adornada con lo efímero y bello.
Dura ha de ser la vida hasta el instante
en que veles tu memoria en este espejo:
tus labios fríos no tendrán ya refugio
y en tus manos vacías abrazarás la muerte.

Juan Luis Panero




Dura há-de ser a vida para ti,
que sacrificaste as crenças a uma estranha honradez,
para ti, cuja única certeza é a lembrança
e, por isso, a tumba mais aziaga.
Dura há-de ser a vida, quando os anos passarem
e destruírem por fim a pátria ingénua da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que antes te consolou com sua beleza.
Quando o amor, como um vestido rasgado,
não te possa cobrir a tristeza
e seja apenas aos olhos mais puros
um motivo de zomba, piedade ou assombro.
Duro há-de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo aquilo que foste,
e procurar sem paixão o repouso
na surda ternura do que é débil,
na destruição que algum dia amaste.
«É a lei da vida», dizem velhos estéreis,
«e só Deus pode o pode mudar» repetem,
à luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há-de ser a vida, tu que o mundo amaste,
que sonhaste possuí-lo com um olhar ou suave carícia,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
não estiver já enfeitada do belo e efémero.
Dura há-de ser a vida até ao instante
em que velares tua memória neste espelho:
não terão já refúgio teus frios lábios
e com as mãos vazias abraçarás a morte.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Luz & sombra (José Bento)

.

17.8.17

Fernando Assis Pacheco (Então agora vamos ficar sem o Ruy Belo?)




ENTÃO AGORA VAMOS FICAR SEM O RUY BELO



Quando morre um poeta é fatal a ANOP
«sempre em cima do evento» debita o seu telegrama
tantos anos uma «obra ímpar» etc.
foi assim com o Ruy Belo mas o flash
pedia para se não dar a notícia o que me levou
à conclusão irresistível de que mais uma vez este
se entretinha a reinar aos cowboys
ó Ruy tu mascarado de Jesse James o vingador vingando
as malas-artes da retórica idiota
o que me levou à conclusão irresistível de que
esperaria mais pormenores para «confirmação da informação»

seguiram-se telefonemas de recurso a localizar em férias
o João Miguel Fernandes Jorge não estava
no Bombarral em casa dos pais não estava na Consolação
Lisboa: ele próprio atende e diz
que o Ruy Belo foi-se em Queluz de não entende o quê
asma ou parecido há o problema do funeral quando
mas certamente para a aldeia «João» e ele
responde baixo «sozinho» «tinha vindo tratar de una papéis»
a porra da a triste da a caca da vida que levamos sacudida sobre os ombros
passa esse dia do telegrama da ANOP os jornais afinal noticiam
redijo setenta linhas que acompanho com uma chamada de primeira página em positivo sobre rede pensando muito na hipótese de um dia um colega meu sacar da máquina um telex ou ouvir ao bigophone olha o gajo marchou dá lá recados
e o chefe (o meu sucessor de carteira) breve a «duas colunas com foto» havendo apesar de tudo um certo cuidado porque era da «malta»
e tu que eras da malta não tive cuidado nenhum fui um coiro devia esmerar-me
devia mesmo esmerar-me

então agora ficamos sem o Ruy Belo


Fernando Assis Pacheco


.

16.8.17

Efraín Huerta (Seis da manhã)





SEIS A.M.



Y así
Murmuraba:
«Ya es lunes
Mañana martes
Y el miércoles
Está encima
Pronto
Será jueves
Y luego
Viernes
Y aún
No he
Hecho
Nada
         De trabajo».

Efraín Huerta




E assim
murmurava:

“Estamos
na segunda,
amanhã terça,
quarta
está quase,
em breve
será quinta
e depois
sexta
e eu ainda
não fiz
a ponta
      de um corno”.


(Trad. A.M.)

.

15.8.17

Claudio Bertoni (Lar doce lar)





HOGAR DULCE HOGAR



el cáncer
la muerte no sería tan mala
si se pudiera traer a casa
si no hubiera que levantarse
si no hubiera que salir de la cama
si no hubiera que subirse a una ambulancia
si no hubiera que vivir en un hospital
si no hubiera que vivir entre desconocidos
si no hubiera que prescindir de las frazadas
del color de las frazadas de la casa
de la temperatura del color de las frazadas de la casa.

morir no sería tan malo si todo pasara en la casa
y con los de la casa
si uno tuviera la suerte de tener una casa.

lo peor del cáncer y de la muerte son la burocracia y el ajetreo
de los cambios de ropa y el frío de los pasillos y el frío de
las miradas de los extraños (de los que no sufren porque tú sufres
de los que no sufren porque tú vas a morir)
y la indiferencia de las calles y de los muros de las calles
y la indiferencia mortal del hospital y de todo lo que lame
y cubre por dentro a un hospital.

morir no sería tan malo
sufrir no sería tan malo
si se sufriera en la casa
si se supiera que nada ni nadie nos sacará
-en caso de morir o sufrir-
de la casa


Claudio Bertoni




o cancro
a morte não seria tão ruim
se eu pudesse trazê-la para casa
se não tivesse de levantar-me
se não tivesse de sair da cama
se não tivesse de ir de ambulância
se não tivesse de ficar internado
de viver no meio de gente desconhecida
de prescindir das cobertas
da cor das cobertas de casa
do calor e da cor das cobertas de casa.

morrer não seria tão ruim se tudo se desse em casa
e com os de casa
se eu tivesse a sorte de ter uma casa.

o pior do cancro e da morte é a burocracia e a agitação
das mudanças de roupa e o frio dos corredores e o frio
do olhar dos estranhos (dos que não sofrem porque tu sofres,
dos que não sofrem porque tu vais morrer)
e a indiferença das ruas e dos muros das ruas
e a indiferença mortal do hospital e de tudo o que lambe
e cobre por dentro um hospital.

morrer não seria tão ruim
sofrer não seria tão ruim
se a gente sofresse em casa
se soubesse que nada nem ninguém nos tirará
- em caso de morrer ou sofrer -
                                               de casa.


(Trad. A.M.)


>>  Memoria chilena (tudo+algo+obra toda ou quase) / Angelfire (12p) / Wikipedia

.


14.8.17

Helder Moura Pereira (Esse vidro)





ESSE VIDRO



Janelas rompem
na casa, uma flor
no vestido, esse vidro
nos olhos. Janelas
sobre o que vês,
apenas o breve
relance de uma face
perdida, apenas
uma frase de jardim
ou uma rosa de julho.
Janelas rompem
nos teus olhos
e a roda do vestido
ilumina esta manhã.
Quando apontas
sou eu que venho
subindo as escadas,
sou eu que sinto
todas as mãos
por esta pele.
Aqui começa a cor
das telhas, o verde
musgo, a orientação
das imagens. Chegas
do lado mais esperado
da cidade e não
te encobre a bruma
definindo a linha
das janelas. A que
hesito entre o gesto
de mostrar a face
que regressa e adivinha.
No vidro dos olhos
a flor do vestido, nos
degraus o súbito
desejo de janelas
tapando a morte.



Helder Moura Pereira

.

13.8.17

Juan José Saer (A arte de narrar)





EL ARTE DE NARRAR



Cada uno crea
de las astillas que recibe
la lengua a su manera
con las reglas de su pasión
-y de eso, ni Emanuel Kant estaba exento.


Juan José Saer
 


  



Cada um cria
das lascas que recebe
a língua a seu modo
com as regras da sua paixão
- e disso, nem Kant estava isento.


(Trad. A.M.)

.

12.8.17

Juan Gelman (Regressos)





REGRESOS



Así que has vuelto.
Como si hubiera pasado nada.
Como si el campo de concentración, no.
Como si hace 23 años
que no escucho tu voz ni te veo.
Han vuelto el oso verde, tu
sobretodo larguísimo y yo
padre de entonces.
Hemos vuelto a tu hijear(*) incesante
en estos hierros que nunca terminan.
¿Ya nunca cesarán?
Ya nunca cesarás de cesar.
Vuelves y vuelves
y te tengo que explicar que estás muerto.


Juan Gelman




Com que então, voltaste.
Como se nada se passara.
Como se o campo de concentração, não.
Como se há 23 anos
que eu não te ouço nem te vejo.
Voltaram o urso verde, o teu
sobretudo longuíssimo e eu
pai de então.
Voltamos ao teu filhar incessante
nestes ferros que nunca acabam.
Nunca já cessarão?
Nunca já cessarás de cessar.
Voltas e voltas a voltar
e eu tenho que te explicar que estás
morto.

(Trad. A.M.)

________________


(*) Corrigido ‘hijar’ (que não existe) para ‘hijear’ (deitar filhos ou rebentos>filhar).

.

11.8.17

Mário de Carvalho (A sala magenta)




Dantes, tudo era um peso ancestral de quietação e vagar pelas matas de sobreiral e pinho em redor das águas represadas a que chamam Lagoa Moura, havendo perto umas ruínas que a memória popular não assinala além dos mouros. 

Então, carregavam-se de silêncio as formas, pasma­vam lassos os ramos, pendiam restos de carumas, tombavam as pinhas de velhas, empastavam-se as folhas mortas, deixavam-se as portadas entreabertas. 

Em chegando a noite, com o rarear dos pássaros, alteavam-se as sombras, delineavam-se os contornos, adensava-se o espaço, vibrava subtilmente o ar e milhentos pequenos rumores emergiam do solo num restolhar de sobrevivência.

Na dobra do século, as brisas, mais rijas de ano para ano, entraram a balancear as copas, a revolver os gravetos, a frisar as águas, a desinquietar o silêncio e a fazer a demonstração prática e local de que o clima desvariava.


MÁRIO DE CARVALHO
A Sala Magenta-I
(2008)


>>  Mário de Carvalho / Recensão-1 (Teresa Sousa Almeida) / Recensão-2 (Manuel Portela) / Recensão-3 (Nelson Ferreira) / Recensão-4 (Beja Santos)

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10.8.17

Juan Carlos Mestre (Página com cão)





PÁGINA CON PERRO



Los carabineros detuvieron a mis amigos,
les ataron las manos a los raíles,
me obligaron como se obliga a un extranjero
a subir a un tren y abandonar la ciudad.

Mis amigos enfermaron en el silencio,
tuvieron visiones en la cercanía de lo sagrado.

No la herida del inocente,
no la cuerda del cazador de reptiles,
en mi pensamiento la crueldad tiene nombre.

Me llamaron judío,
perro judío,
comunista judío hijo de perro.

Este no es asunto que se pueda solucionar con tres palabras,
porque para cada uno de nosotros
esas palabras tampoco significan lo mismo.

Yo he tenido un perro,
he hablado con él,
le he dado comida.

Para alguien que ha tenido un perro,
la palabra perro es fiel como la palabra amigo,
hermosa como la palabra estrella,
necesaria como la palabra martillo.


Juan Carlos Mestre


[El juego de la taba]




A guarda deteve os meus amigos,
ataram-lhes as mãos aos carris,
 e a mim obrigaram-me, como se fosse estrangeiro,
a entrar no comboio e a deixar a cidade.

Meus amigos adoeceram no silêncio,
tiveram visões na orla do sagrado.

Não a chaga do inocente,
não a corda do caçador de serpentes,
em meu pensamento a crueza tem nome.

Chamaram-me judeu,
cachorro judeu,
judeu comunista filho de um cão.

Não é este um caso que possa resolver-se
com três palavras,
pois estas palavras não significam o mesmo
para cada um de nós.

Eu tive um cão,
eu falei com ele,
eu dei-lhe de comer.

Para alguém que teve um cão,
a palavra cão é fiel tal como a palavra amigo,
é bela como a palavra estrela,
é necessária como a palavra martelo.


(Trad. A.M.)

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9.8.17

Josep M. Rodríguez (Primeira visita ao zoo)





PRIMERA VISITA AL ZOO



Tenía doce años y mi madre
me regalaba un mundo para mí:

‒¿Si la tristeza fuese un animal?

‒Si la tristeza fuese un animal...
pues un escarabajo.

Y entonces le contaba que había días
en que ese escarabajo fabricaba
una bola muy grande en mi garganta.

Los ojos de mi madre eran de búho.
Parecía entenderme sin hablar.

‒¿Y cómo te imaginas ser mayor?

No sé qué respondí,
tenía doce años:

aún no comprendía que crecer
es ir al zoo
y sólo ver barrotes.


Josep M. Rodríguez

[La estafeta del viento]



Tinha doze anos e a minha mãe
oferecia-me um mundo só para mim:

- Se a tristeza fosse um animal?

- Se a tristeza fosse um animal...
seria um escaravelho.

E contava-lhe então que havia dias
em que esse escaravelho fabricava
uma bola muito grande na minha garganta.

Os olhos da minha mãe eram de coruja.
Pareciam entender-me sem falar.

- E como imaginas que é ser mais velho?

Não sei o que respondi,
tinha doze anos:

ainda não compreendia que crescer
era ir ao zoo
e só ver grades.


(Trad. I.D.)

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8.8.17

Gil T. Sousa (Maré)





MARÉ


(14)

quando a maré se afasta
é possível escrever tudo

outra vez




GIL T. SOUSA
Agua Forte
(2005)


[Canal de poesia]

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7.8.17

Josefa Parra (À mão armada)





A MANO ARMADA



Le robamos amor al amor
porque no hay más amor que el asignado
la cifra invariable que te entregan
al nacer, como el pelo o la estatura.
Mueves los montoncitos de cariño,
puñados de deseo, algunos besos,
de un lado para otro, vas sisando,
mordisqueando el montante de tu afecto.
Robándole al amor, amor, qué simple,
qué inútil además.
Cuando anochece,
necesitado y triste y pordiosero,
vuelves hasta una casa en la que apenas
te queda más que el hueco
para acostar tu alma.

Josefa Parra





Roubamos amor ao amor
porque não há mais amor que o dado,
a soma invariável que te dão
ao nascer, como o cabelo ou a estatura.
Moves os montinhos de carinho,
punhados de desejo, uns beijos,
de um lado para outro, vais tirando,
rafando o teu montante de afecto.
Roubar ao amor, amor, que simples,
e ademais que inútil.
Ao anoitecer,
precisado, e triste, e pedinte,
regressas a uma casa em que mal
tens mais do que um buraco
para deitar a alma.


(Trad. A.M.)

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6.8.17

José María Zonta (Um tipo sai do trabalho)





Uno sale del trabajo proporcionalmente feliz,
ojos contaminados
y compra unos vasos
casualmente dos.
Paga impuestos
recibe malas noticias y contra enfermedades.
Uno piensa improperios
para callárselos,
no acaba de entender la íntima relación
entre la juventud y la muerte.
Uno estudia filosofía
porque entiende que la vida es un tranvía,
recibe la lección y no la enciende,
uno es totalmente libre de hacer lo que quiera
dentro de su jaula.
Uno grita, quiere amar,
toma una cerveza,
no recoge el guante que dios le tira.
Envuelve la noche en hojas de soledad
y se aposenta en los bordes de alguna canción.
Uno hace esto y cree que es vivir,
pero se engaña quedamente.
Hasta que una mujer lo mira
lo aplaca, lo prende,
le atraganta la vida en los ojos.
Entonces uno ríe de sí
controla los gastos
ya no envidia a los gatos
y esparce amor.

José María Zonta




Um tipo sai do trabalho moderadamente feliz,
os olhos contaminados
e toma alguns copos
por acaso dois.
Paga os impostos
recebe más notícias
e contrai doenças.
Um tipo pensa impropérios,
mas cala-se,
não conseguindo entender a íntima relação
entre a juventude e a morte.
Um tipo estuda filosofia
porque vê a vida como um eléctrico,
recebe a lição e não a entende,
um tipo é totalmente livre de fazer o que quiser
mas dentro da jaula.
Um tipo grita, quer amar,
bebe uma cerveja,
não levanta a luva que deus lhe atira.
Embrulha a noite em folhas de solidão,
instalando-se nas margens de uma canção.
Um tipo faz isto tudo pensando que é viver,
mas engana-se redondamente.
Até que uma mulher olha para ele,
amansa-o, prende-o,
entala-lhe a vida nos olhos.
Um tipo então ri de si mesmo
passa a controlar as despesas
deixa de ter inveja dos gatos
e esparze amor.

(Trad. A.M.)

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5.8.17

João de Mancelos (Depois do amor)





DEPOIS DO AMOR



às vezes, depois do amor,
quando feras dóceis rondam o nosso sono,
e afastam os passos dos teus amantes,

às vezes, quando me encosto à nudez,
exausto, e tomo o peso às tuas palavras,
e fico sempre devedor,

às vezes, quando me inventas um nome
para que a madrugada chegue
e eu não tenha de morrer nunca mais,

às vezes, penso no deus que te perdeu,
beijo-o e choro, às escondidas,
por ele.


João de Mancelos



 >>  João de Mancelos (tudo+algo)

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4.8.17

Isabel Bono (Tenho uma pedra)





llevo una piedra en el coche
llevo una piedra en el bolsillo
llevo una piedra en el puño
llevo una piedra en el estómago
llevo una piedra en el corazón

estoy preparada
para cualquier catástrofe


Isabel Bono






tenho uma pedra no carro
tenho uma pedra no bolso
tenho uma pedra na mão
tenho uma pedra no estômago
tenho uma pedra no coração

estou preparada
para qualquer catástrofe



(Trad. A.M.)


>>  Isabel Bono (blogue /de blogues/4) / Las afinidades electivas (3p) / Poemas del alma (resumo)

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