1.5.17

Machado de Assis (Sou toda sua)





Concluo que não se devem abolir as loterias.
Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar.
Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente.
Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica.
São retratos que valem por originais.
O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!"
O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..."
Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido.
Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão.
São como fotografias instantâneas da felicidade. 


MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
(1900)

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