30.9.16

José Alberto Oliveira (Democracia)





DEMOCRACIA



Corre afogueado o rio do tempo,
que lambe mazelas e alimenta
desastres. Ainda ontem eu lia
Marx, com devoção de neófito,
fugia da polícia com a pressa 
dos esganados e jurava mudar
o mundo, mesmo que este, como
aconteceu, não consentisse. Cedi 
a exaltação dos primeiros poemas
(seria simpático se também a inépcia),
amores que, por fortuna, quase acertei
e outros, que nasceram desacertados.
Acabei vencido pela descoberta de que
sou, como em oração fúnebre,
a melhor versão do pior de mim.


JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA
Como se nada fosse
(2015)

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29.9.16

Idea Vilariño (Ou nove)





O FUERON NUEVE



Tal vez tuvimos sólo siete noches
no sé
no las conté
cómo hubiera podido.
Tal vez no más que seis
o fueron nueve.
No sé
pero valieron
como el más largo amor.
Tal vez
de cuatro o cinco noches como esas
pero precisamente como esas
tal vez
pueda vivirse
como de un largo amor
toda una vida.


Idea Vilariño





Tivemos talvez sete noites só
não sei
não as contei
como podia ter feito.
Talvez não mais que seis
ou então nove.
Não sei
mas valeram
como o mais longo amor.
Talvez
com quatro ou cinco noites dessas
mas precisamente como essas
talvez
possa viver-se
como de um longo amor
uma vida inteira.


(Trad. A.M.)

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28.9.16

João Guimarães Rosa (Sertanejo)





Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal.
Sou muito pobre coitado.
Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração.
Não é que eu esteja analfabeto.
Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória.
Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)

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Homero Aridjis (Assombro do tempo)





ASOMBRO DEL TIEMPO              


(Estela para la muerte de mi madre, Josefina Fuentes de Aridjis)


Ella lo dijo: Todo sucede en sábado:
el nacimiento, la muerte,
la boda en el aire de los hijos.
Tu piel, mi piel llegó en sábado.
Somos los dos la aurora, la sombra de ese día.

Ella la dijo: Si tu padre muere,
yo también voy a morir.
Sólo es cosa de sábados.
Cualquier mañana los pájaros
que amé y cuidé van a venir por mí.

Ella estuvo conmigo. En mi comienzo.
Yo estuve con ella cuando murió, cuando nació.
Se cerró el círculo. Y no sé
cuándo nació ella, cuándo morí yo.
El rayo umbilical nos dio la vuelta.

Sobre la ciudad de cemento se alza el día.
Abajo queda el asombro del tiempo.
Has cerrado los ojos, en mí los has abierto.
Tu cara, madre, es toda tu cara, hoy que dejas la vida.
La muerte, que conocía de nombre, la conozco en tu cuerpo.

Dondequiera que voy me encuentro con tu rostro.
Al hablar, al moverme estoy contigo.
El camino de tu vida tiene muchos cuerpos míos.
Juntos, madre, estaremos lejanos.
Nos separó la luna del espejo.

Mis recuerdos se enredan con los tuyos.
Tumbados para siempre, ya nada los tumba.
Nada los hace ni deshace.
Palpando tu calor, ya calo tu frío.
Mi memoria es de piedra.

Hablo a solas y hace mucho silencio.
Te doy la espalda pero te estoy mirando.
Las palabras me llevan de ti a mí y de mí a ti
y no puedo pararlas. Esto es poesía, dicen,
pero es también la muerte.

Yo labro con palabras tu estela.
Escribo mi amor con tinta.
Tú me diste la voz, yo sólo la abro al viento.
Tú duermes y yo sueño. Sueño que estás allí,
detrás de las palabras.

Te veo darme dinero para libros,
pero también comida.
Porque en este mundo, dicen,
son hermosos los versos,
pero también los frutos.

Un hombre camina por la calle.
Una mujer viene. Una niña se va.
Sombras y ruidos que te cercan
sin que tú los oigas, como si sucedieran
en otro mundo, el nuestro.

Te curan de la muerte y no te salvan de ella.
Se ha metido en tu carne y no pueden sacarla,
sin matarte. Pero tú te levantas, muerta,
por encima de ti y me miras desde el pasado mío,
intacta.

Ventana grande que deja entrar a tu cuarto
la ciudad de cemento.
Ventana grande del día que permite
que el sol se asome a tu cama,
y tú, entre tanto calor, tú sola tienes frío.

Así como se hacen años se hace muerte.
Y cada día nos hacemos fantasmas de nosotros.
Hasta que una tarde, hoy, todo se nos deshace
y viendo los caminos que hemos hecho
somos nuestros desechos.

Sentado junto a ti, veo más lejos tu cuerpo.
Acariciándote el brazo, siento más tu distancia.
Todo el tiempo te miro y no te alcanzo.
Para llegar a ti hay que volar abismos.
Inmóvil te veo partir, aquí me quedo.

El corredor por el que ando atraviesa paredes,
pasa puertas, pasa pisos,
llega al fondo de la tierra,
donde me encuentro, vivo,
en el comienzo de mí mismo en ti.

Número en cada puerta y tu ser pierde los años.
Tu cuerpo en esa cama ya sin calendarios.
Quedarás fija en una edad, así pasen los siglos.
Domingo 7 de septiembre, a las tres de la tarde.
Un día más, unos minutos menos.

En tu muerte has rejuvenecido,
has vuelto a tu rostro más antiguo.
El tiempo ha andado hacia atrás
para encontrarte joven. No es cierto
que te vayas, nunca he hablado tanto contigo.

Uno tras otro van los muertos, bultos blancos,
en el día claro.
Por el camino vienen vestidos de verde.
Pasan delante de mí y me atraviesan. Yo les hablo.
Tú te vuelves.

Pasos apesadumbrados de hombres
que van a la ceremonia de la muerte,
pisando sin pisar las piedras
de las calles de Contepec,
con tu caja al cementerio.

Tú lo dijiste un día:
todo sucede en sábado:
la muerte, el nacimiento.
Sobre tu cuerpo, madre, el tiempo se recuerda.
Mi memoria es de piedra.


Homero Aridjis





Ela o disse: Tudo acontece ao sábado,
o nascimento, a morte,
o casamento dos filhos.
Tua pele, minha pele veio num sábado.
Somos ambos a aurora, a sombra desse dia.

Ela o disse: Morrendo teu pai,
eu também vou morrer.
São coisas só dos sábados.
Um dia destes os pássaros
que eu amei e cuidei vêm por mim.

Ela esteve a meu lado, no começo.
E eu estive no fim, no momento da morte.
Fechou-se o círculo. E nem sei bem
quando nasceu ela, quando morri eu.
O cordão umbilical virou-nos.

Ergue-se o dia sobre a cidade do betão,
em baixo ficando o assombro do tempo.
Fechaste os olhos, e em mim os abriste.
Tua cara, mãe, é toda a tua cara, hoje que deixas a vida.
E a morte, que eu já conhecia de nome,
conheço-a agora em teu corpo.

Encontro teu rosto onde quer que vá,
ao falar, ao andar, ao mexer-me.
O caminho da tua vida tem muitos corpos meus.
Juntos, minha mãe, estaremos distantes,
porque nos separou a lua do espelho.

Minhas lembranças enleiam-se nas tuas,
derrubadas para sempre, nada mais as derruba,
nada as faz nem desfaz.
Palpando teu calor, o que acho é frio,
fria memória a minha, de pedra.

Falo sozinho nos confins do silêncio,
viro-te as costas mas fico a olhar-te.
Palavras me levam de mim para ti e de ti para mim
e eu não posso pará-las. Isto é poesia,
dizem, mas é também a morte.

Com palavras lavro a pedra da tua estela,
escrevendo com tinta o meu amor.
A voz tu ma deste, eu apenas a ergo ao vento,
tu dormes e eu sonho, sonhando que estás
ali, por detrás das palavras.

Estou a ver-te a dar-me dinheiro para livros,
mas também para comer.
Porque neste mundo, dizem,
os versos são belos,
mas também os frutos.

Um homem caminha pela rua,
uma mulher para cá, uma moça para lá,
sombras e ruídos que nos cercam,
sem os ouvirmos, como se fossem
de outro mundo, este nosso.

Da morte te curam, mas não te salvam dela,
que se te meteu na carne e não podem tirá-la
sem te matar. Mas tu ergues-te, já morta,
acima de ti e olhas-me, intacta, do meu passado.

Janela grande, a deixar entrar
em teu quarto a cidade de betão.
Janela grande do dia, permitindo
que o sol te bata na cama,
e tu, com tanto calor, só tu é que tens frio.

Assim como se fazem anos se faz morte,
e nós em cada dia nos fazemos fantasmas de nós mesmos.
Até que uma tarde, como hoje, tudo se nos desfaz
e ao vermos os caminhos que percorremos
tornamo-nos nós nossos próprios restos.

Sentado a teu lado, vejo o teu corpo mais longe,
afagando-te o braço, sinto mais a tua distância,
todo o tempo te olho e não consigo alcançar-te,
pois teria de voar sobre abismos.
Imóvel assim te vejo partir e me quedo.

O corredor que percorro atravessa paredes,
passa portas, passa pisos,
chega até ao fundo da terra,
onde me encontro, vivo,
no começo de mim mesmo em ti.

Um número em cada casa e teu ser perde os anos.
Teu corpo na cama, já fora de calendário,
vai-te fixar numa idade, com o passar dos tempos.
Domingo, 7 Setembro, três da tarde,
um dia mais, uns minutos menos.

Rejuvenesceste na morte, tu,
tornando ao teu rosto mais antigo;
o tempo andou para trás
para te poder apanhar jovem.
E nem é verdade que te vás,
pois nunca eu falei tanto contigo.

Vão-se os mortos um a um, vultos brancos,
no dia claro.
Vêm pelo caminho vestidos de verde,
passam-me à frente e trespassam-me.
Eu falo-lhes e tu voltas-te.

Passos pesados de homens
a caminho da cerimónia da morte,
pisando sem pisar as pedras
das ruas de Contepec,
com o teu caixão para o cemitério.

Tu o disseste um dia,
tudo acontece ao sábado,
a morte, o nascimento.
Sobre o teu corpo, minha mãe,
o tempo recorda.
Minha memória, mãe, é de pedra.


(Trad. A.M.)


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27.9.16

Jorge Sousa Braga (Carta de amor-1981)





CARTA DE AMOR (1981)

            A Eugénio de Andrade



Eugénio de Andrade
Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração.



Jorge Sousa Braga



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26.9.16

Ernesto Pérez Vallejo (Se cair uma estrela)





SI PASA UNA ESTRELLA FUGAZ DIME TU NOMBRE



Tal vez no debía haber posado mis ojos en ti,
yo soy de esos que se enamoran tres veces al día
y ahora lo vuelvo a hacer cada vez que te recuerdo.
Ya van dieciséis en una hora.

Eres como una de esas actrices,
que consiguen con su belleza
que te acabes olvidando
de la trama de la película.
Ha sido observarte e ignorar por completo
el resto de mi vida.

Tan apretada a ti misma
que casi podía considerarse un milagro
que no te rompieras en la siguiente pisada.
Tanta curva en tan poco espacio
que incluso antes de acercarme un metro
ya me sabía a asfalto el cielo de la boca.

Y ya van veintiuna.

Has conseguido con tu presencia,
que vuelva a sentirme partícipe del género masculino.
Tan común como el carnicero de la tienda de la esquina,
tan sátiro como el viejo de la terraza del bar,
tan imbécil como el chico adicto a las abdominales,
tan obsceno como ese casado al que has girado como una peonza,
para poder luego pensar en tu culo
mientras le dice a su mujer que gima más bajo.

Eran mis ojos, los ojos del resto de los hombres,
la misma mente,
el mismo hambre.

Y he sentido la tristeza de una rosa entre las rosas,
la impotencia de un camino que se acaba en un barranco.

Te has marchado como hoja empujada por el viento,
con ese desfilar insultante solo permitido
en la estrecha pasarela de mis sueños.

Nos hemos mirado todos a la cara,
el viejo al carnicero,
yo al imbécil,
el imbécil al casado
y así sucesivamente.
Incluso en un patético instante hemos sonreído,
luego bajando la cabeza
hemos seguido con lo nuestro
como si no hubiera pasado nada.

Pero ha pasado.
Y yo ya llevo veintisiete.



Ernesto Pérez Vallejo

[Los lunes que te debo]





Eu não devia ter pousado os olhos em ti,
pois sou daqueles que se apaixonam três vezes ao dia
e agora é de cada vez que te recordo,
por exemplo nesta última hora já vou em dezasseis.

Tu és como essas actrizes
tão belas tão belas
que a gente acaba por esquecer
a trama do filme.
Comigo foi observar-te e passar a ignorar
por completo o resto da vida.

Tão cingida em ti mesma
que quase se podia haver por milagre
que não te quebrasses toda na passada seguinte.
Tanta curva em tão pouco espaço
que mesmo antes de me chegar um metro
já tinha o céu da boca a saber-me a alcatrão.

E vão já vinte e uma.

Com a tua presença tu conseguiste
que eu voltasse a encaixar-me no género masculino,
tão comum como o homem do talho da esquina,
tão sátiro como o velho da esplanada do bar,
tão imbecil como o moço viciado em abdominais,
tão obsceno como esse homem casado que fizeste
girar como um pião,
para depois se lembrar do teu rabo
enquanto diz à mulher que gema mais baixo.

Eram os meus olhos, os olhos dos outros homens,
a mesma mente,
a mesma fome.

E experimentei a tristeza de uma rosa no meio das rosas,
a impotência de um caminho que vai acabar num barranco.

Porque tu te foste como folha empurrada pelo vento,
com esse pisar insolente só permitido
na passarela dos meus sonhos.

Mirámo-nos todos na cara,
o velho e o homem do talho,
eu e o imbecil,
o imbecil e o homem casado
e assim sucessivamente.
Inclusive sorrimo-nos num patético instante,
baixando a cabeça
para depois irmos à nossa vida
como se nada tivesse acontecido.

Mas aconteceu.
E já cá cantam vinte e sete.


(Trad. A.M.)

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25.9.16

João Guimarães Rosa (GSV-Início)





– Nonada. 
Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.
Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego.
Por meu acerto.
Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.
Daí, vieram me chamar.
Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu; e com máscara de cachorro.
 Me disseram; eu não quis avistar.
Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa.
Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo.
Povo prascóvio.
Mataram.
Dono dele nem sei quem for.
Vieram emprestar minhas armas, cedi.
Não tenho abusões.
 O senhor ri certas risadas...
Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos.
O senhor tolere, isto é o sertão.


JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão: Veredas
(1956)


Sobre:Wikipedia
PDF: Stoa.usp

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Juan José Saer (Estado poético)






EL ESTADO POÉTICO



Estás en la ventana y cuando creías
haber perdido todo olvidado todo
he aquí que suena el llamado y oyes la voz
y anochece en un cielo verde como un árbol.

 Juan José Saer




Estás à janela e quando pensavas
ter perdido tudo esquecido tudo
eis que soa a chamada e ouves a voz
e a noite cai com um céu verde
como se fosse uma árvore.


(Trad. A.M.)


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24.9.16

Leda Selma (O silêncio)





O SILÊNCIO



O silêncio é sarcástico:
se cínico, entorta mentiras;
se cético, morde risos;
se sóbrio, camufla verdades
expostas em sorrisos
ocultos na alvura do nada.



Leda Selma

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23.9.16

Antonio Colinas (Encontro com uma rapariga sueca)





CITA CON UNA MUCHACHA SUECA
ENTRE EL SENA Y LOS CAMPOS ELÍSEOS



Mis ojos eran dos nostálgicas panteras.
¿Cómo era aquella luz que endiosaba mis horas?
Agria luz esmeralda del Ganjes y del Nilo.
La luz de las manzanas salpicadas de lluvia.
La luz que hay en las puertas con picaportes de oro.
La luz que hay en los párpados de las águilas muertas.
Yo esperaba tus ojos con ojeras violáceas
mientras callaban todas las fuentes y en el cielo
mastines de azabache olfateaban las nubes.
(Qué festín el del cielo, qué gran fruto podrido)
Escuchando la lluvia que cesaba en los techos
de cinc, con los cabellos mojados, olorosos
aún por los pinares del Grand Bois de Boulogne,
-las manos escocidas de remar en el lago-
esperando en el pórtico umbroso del museo,
con los pies en la alfombra llena de vino y faunos,
quieto entre las columnas, pálido, distraído
por el gas enfermizo de aquel primer farol,
y por los carruajes, fúnebre y aristócrata
como un poeta inglés de la Romantic Revolt,
pensando en los abetos de tu país al alba,
sonriendo tristemente por no llorar tu ausencia,
cercando con mis dientes tu nombre -Kerstin, Kerstin-
mis ojos como dos nostálgicas panteras
esperaban tus ojos entre los matorrales.


Antonio Colinas




Meus olhos, duas panteras saudosas.
Aquela luz como era, que adoçava meus dias?
Acre luz esmeralda do Nilo e do Ganges,
a luz das maçãs salpicadas de chuva.
A luz das portas de puxadores doirados,
a luz das pálpebras das águias mortas.
Eu esperava teus olhos com olheiras violáceas
enquanto as fontes silenciavam e no céu
mastins de azeviche farejavam as nuvens.
(O céu, que festim, que grande fruto apodrecido)
Escutando a chuva a parar no telhado
de zinco, o cabelo molhado, a cheirar ainda
aos pinheiros do Bois de Boulogne
- as mãos esfoladas de remar na lagoa -
esperando no portal ensombrado do museu,
com os pés na alcatifa cheia de vinho e de faunos,
parado entre as colunas, pálido, distraído
com o gás doentio daquele primeiro candeeiro
e das carruagens, fúnebre e aristocrata
como um poeta inglês da Romantic Revolt,
pensando nos abetos da tua pátria ao amanhecer,
sorrindo triste por não chorar tua ausência,
mordendo com os dentes teu nome – Kerstin, Kerstin -
meus olhos, duas panteras saudosas,
esperavam teus olhos no meio do mato.


(Trad. A.M.)

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22.9.16

José Carlos Barros (O caminho de casa)





O CAMINHO DE CASA




A minha avó trazia o cântaro
e enchia vagarosamente
os púcaros com água.
Eu ficava a olhar e
por um instante acreditava
que não havia mundo
fora dos muros do pátio
e que o estrangeiro era uma invenção
dos que perdem as chaves
ou o caminho de casa.


José Carlos Barros

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21.9.16

Ramón Irigoyen (Arte poética)





ARTE POÉTICA



Un poema si no es una pedrada
-y en la sien-
es un fiambre de palabras muertas
si no es una pedrada que partiendo
de una honda certera
se incrusta en una sien
y ya hay un muerto.


Ramón Irigoyen





Um poema se não for uma pedrada
– e na testa –
é um molho de palavras mortas
se não for uma pedrada atirada
por uma funda certeira
enfia-se numa testa
e já temos um morto.

(Trad. A.M.)

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20.9.16

Ricardo Silvestrin (Dança)





DANÇA



Sim, existe a dança:
o corpo solto avança
e recua leve nos passos
matemáticos, um, dois, um,
como se fosse mais fácil
viver num tempo menor,
brincadeira de criança
que sabe de cor o roteiro
e ri na hora marcada.

Fora da dança, o infinito
nos convida, nos seduz
com passos improváveis,
mas temos dois olhos,
apenas duas pernas,
e, sobretudo, duas mãos
onde só cabe um punhado
de estrelas.


Ricardo Sivestrin


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19.9.16

Eloy Sánchez Rosillo (Corpo adormecido)





CUERPO DORMIDO



A veces recuerdo la tibieza de aquellos días,
la gracia de aquel cuerpo dormido,
la blancura del lecho en un rincón del cuarto,
el libro abandonado, entreabierto,
la lámpara sumisa, la ventana,
el sonido lejano de la lluvia,
los lentos rumores de la noche.
Y pienso entonces que fue hermosa la vida,
y acaricio en mi pecho las heridas del tiempo.


Eloy Sánchez Rosillo




Às vezes recordo aqueles dias mornos,
a graça daquele corpo adormecido,
a brancura do leito num canto do quarto,
o livro abandonado, entreaberto,
a lâmpada submissa, a janela,
o barulho da chuva ao longe,
os lentos rumores da noite.
E penso então que foi linda a vida
e afago no peito as feridas do tempo.



(Trad. A.M.)

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18.9.16

Leda Selma (As mães)





AS MÃES



Mães são manhãs
a colher lembranças
deixadas nas frestas
de tantos silêncios.
São fios de noites
a cerzir saudades
nos beirais do vento.



Leda Selma



>>  Leda Selma (blogue) / Antonio Miranda (5p) / Poetas siglo XXI (11p) / Jornal de poesia (5p)

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17.9.16

Eduardo Chirinos (O que meu pai quer)





LO QUE MI PADRE QUIERE REALMENTE DE MÍ



1
Anoche tuve un sueño. Acompañaba a mi padre
por un camino de tierra. Los dos íbamos a caballo
y apenas cruzábamos palabras. A lo lejos se veía
la sombra de unos sauces, las luces de un pueblo
desconocido y remoto. De pronto, mi padre detuvo
su caballo y preguntó si yo sabía a dónde íbamos.
Le contesté que no. Entonces vamos bien, me dijo.

2
Los caballos del sueño sabían de memoria
el recorrido. Era cuestión de abandonar las
riendas, de dejarse llevar. Eso me causaba un
poco de aprensión, incluso un poco de miedo.
Mi padre, en cambio, parecía muy tranquilo.
Pensé, parece tranquilo porque está muerto.

3
Aquí es donde vivo, dijo como si me quitara
una venda. Fue muy poco lo que vi. Sólo un
páramo de piedras, remolinos de arenisca,
huesos de caballos amarillos. ¿Qué te parece?
No supe qué decir. Tenía sed y me dolía un
poco la garganta. Es un lugar hermoso, dijo,
pero a veces me gustaría regresar. ¿Por qué
no regresas, entonces?, pregunté. Porque es
más fácil que tú vengas, me dijo. Y desapareció.


Eduardo Chirinos




1
Tive um sonho esta noite, ia com meu pai
por um caminho de terra, ambos a cavalo
e quase sem trocar palavra. Ao longe,
a sombra de alguns salgueiros, as luzes de um povo
desconhecido e remoto. De repente, meu pai estacou
o cavalo, perguntando se eu sabia onde íamos.
Respondi que não. E vai ele: então vamos bem.

2.
Os cavalos do sonho sabiam de cor o caminho,
era só soltar-lhes a rédea, deixá-los ir.
O que me dava alguma apreensão, até medo.
Meu pai não, parecia muito sossegado,
e eu cá a pensar: parece sossegado porque está morto.

3.
É aqui que eu vivo, disse ele como se me tirasse
uma venda. E foi muito pouco o que vi,
um campo de pedras, remoinhos de pó,
ossos de cavalos amarelos. Então, que te parece?
E eu não soube que dizer, tinha sede e uma dor
na garganta. É um lindo lugar, acrescentou,
mas eu às vezes gostava de voltar. E porque
não voltas então? perguntei. Porque
é mais fácil vires tu cá, disse ele. E desapareceu.


(Trad. A.M.)

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16.9.16

João Habitualmente (As raparigas da aldeia)





AS RAPARIGAS DA ALDEIA



Tenho sonhado às vezes
com as coradas raparigas da aldeia
trazem um leve cheiro à palha
e preenchem-me a necessidade
de mamas abundantes.
Convidam-me
mesmo quando olham para o chão

Tenho a impressão
de que fodem como animais antigos:
na lentidão de enormes carapaças
num fragor de pedras
cravando espinhos ao rebolar

Preferem a luz turva
do fim do dia
retornam ao povoado discretas
na companhia dos bois
e um botão a menos na blusa

Gosto das raparigas da aldeia.
Aos domingos de manhã
varrem o lar e dão lustro às panelas
de tarde andam em ranchos
dão gritinhos, fogem para o mato

Quem me dera pôr-me nelas!



João Habitualmente


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15.9.16

José Emilio Pacheco (A véspera)





LA VÍSPERA



A fuerza de explotar a los esclavos
y robarse dinero público,
hubo auge en los negocios. Así los ricos
se volvieron más ricos, mientras los pobres
redoblaban su hambre y su miseria. La ciudad
desbordó sus antiguos límites, perdió sus rasgos
originales, fue construida
según los lineamientos del imperio. También el habla
se corrompió con los hablantes. Y el lujo
entró como la hiedra en muchas partes.
Combatieron el tedio con la droga.
Nos legaron imágenes de sus actos sexuales
como extraño presentimiento
de su fragilidad. Y entre robos
y asesinatos por dondequiera, el terror
extendió su dominio. Miedo en la alcoba
y pánico en la calle. Furias y penas.
Sobre todo odio
proliferante. Porque el bien camina
pero el Mal corre (y no se sacia nunca).
Todo esto sucedió en Pompeya, la víspera
del estallido del Vesubio.


José Emilio Pacheco





À força de explorar os escravos
e de roubar as receitas públicas,
os negócios entraram em alta. Daí que os ricos
se fizessem mais ricos, enquanto os pobres
dobravam sua fome e miséria. A cidade
transbordou dos limites antigos,
perdeu a traça original,
assim como as linhas do passado.
Também a fala
se corrompeu com os falantes. E o luxo
entrou como hera por todo o lado.
Combateu-se o tédio com a droga.
Legaram-nos imagens de seus actos sexuais,
estranho pressentimento
de sua fragilidade. E por entre roubos
e assassinatos aqui e além, o terror
alargou seu domínio. Medo em casa,
pânico na rua. Fúrias e penas.
Ódio, sobretudo, a espalhar-se.
Porque o bem caminha
mas o Mal corre (e jamais se sacia).
Tudo isto se deu em Pompeia, na véspera
da explosão do Vesúvio.


(Trad. A.M.)

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14.9.16

João Guimarães Rosa (Gargalhada)





GARGALHADA



Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...


Guimarães Rosa

[Poemblog]

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13.9.16

José Corredor-Matheos (Algumas vezes aborreces-te)





Unas veces te enfadas,
y otras también.
Y, de pronto, sonríes.
Todo está bien.
Me gusta como eres,
estés tú como estés.
El amor no repara:
es.

José Corredor-Matheos





Algumas vezes aborreces-te
e de outras também.
E de repente sorris.
Está tudo bem.
Gosto como és,
estejas tu como estejas.
O amor não repara,
é.

(Trad. A.M.)


12.9.16

Vitorino Nemésio (A nascente)





A nascente, aquele atrevimento de Cíbele queimada ia muito mais longe, e floria laranjeiras, enchia de ouriços os pequenos soutos de castanheiros serviçais, estendendo-se, para o norte, em folhas de terras de semeadura e, depois dos ‘roedoiros’ ou pascigos mais pobres, nos pastos dormentes que alimentam de queijo a rua da Prata.
Ao sul, para variar – as vinhas dos Casteletes, naquela quadra do ano já sem um bago ou uma folha, reduzidas a um fio de seiva adormecido nas varas agarradas aos bicos sangrentos do ‘biscoito’.



VITORINO NEMÉSIO
Mau Tempo no Canal
(Pastoral)

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José Alcaraz (Parábola)





PARÁBOLA



Era morena,
piel clara como el frío.

Le gustaba decir
palabras como nieve,
ginebra o callejón.

En su cabello negro,
en el abismo
de su cabello negro,
enredaba preguntas,
un sí y un no.

Era morena,
piel clara como el frío
y un pubis de oro viejo:

la mejor muestra
de sus contradicciones.


José Alcaraz




Morena,
pele clara como o frio.

Gostava de dizer
palavras como neve,
genebra ou azinhaga.

No cabelo negro,
no abismo
do seu cabelo negro,
enredava perguntas,
um sim e um não.

Morena,
pele clara como o frio
e um púbis de ouro velho:

a melhor prova
das suas contradições.

(Trad. A.M.)


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11.9.16

Helder Moura Pereira (Ah, não sabem)






Ah, não sabem o que é
o sentido verdadeiro da vida?
Só um momento, que já vos digo.


Helder Moura Pereira


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10.9.16

José Ángel Valente (Vazio)





VACÍO



Todo está roto, mutilado, mudo,
caído a ciegas
desde un cielo sombrío.
Nada
me alumbra en esta hora.
El otoño destila delgadas babas pálidas
que amenazan la tenue
cintura de los álamos,
grises los álamos de plata gris al borde
de tanta y tanta noche.
-¿Dónde estás tú?, pregunto, y sólo
ese yo que soy tú podría responderme.
Hay un eco infinito en los vacíos
desvanes tristes de la infancia perdida.
Y no encuentro las huellas de tu paso,
que tal vez fuera el mío.
¿Cuándo?
¿Dónde?

José Ángel Valente





Tudo está gasto, mudo, mutilado,
caído às cegas
do alto do céu sombrio.
Nada
me alumia nesta hora.
O Outono destila finas babas pálidas,
ameaçando a ténue
cintura dos álamos,
cinzentos álamos de prata cinza
à beira de tanta e tanta noite.
Onde estás tu? interrogo, mas só
esse eu que sou tu poderia dar-me a resposta.

Há um eco infinito nos vazios,
tristes desvãos da infância perdida.
E não encontro as marcas dos teus passos,
que talvez fossem os meus.
                               Quando?
                                               Onde?

(Trad. A.M.)


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